Professora do curso de editoração, da
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Marisa Midori
Deaecto nos brinda com uma bela obra publicada pela Edusp, em 2011. O livro, fruto de seu doutoramento no
Programa de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, foi preparado com um capricho pouco comum
nesses tempos de leitura rápida no ciber espaço, em que o contato com a obra de
arte está cada vez mais rara e preciosa. O cuidado com a produção da obra, vai
desde a capa, com o bom gosto da cor e do modelo, o papel “Chamois Book”, as 448 páginas com ilustrações de época, contando
com tabelas, imagens (com retratos, charges, paisagens), gráficos, mapas e o
marcador de página (infelizmente pouco comum nos dias de hoje). Desse modo, todo
o conjunto da obra faz o leitor entrar no espírito da época do Oitocentos.
Com rica pesquisa em acervos
documentais na cidade de São Paulo e na França, a autora reconstitui a economia
do livro em um contexto no qual a população leitora era restrita e que fazia
desse objeto ainda mais raro, precioso e distante da leitura de massa.
Logo de início conta com o prefácio de
Jean-Yves Mollier que fornece um petisco da trajetória intelectual da autora,
do seu conhecimento da historiografia internacional sobre o tema e o assunto da
constituição da biblioteca pública, os caminhos e descaminhos das bibliotecas
particulares.
Dividido em quatro partes, a autora
retrata de maneira simples e refinada, sempre realizando questões importantes
para a problematização dos dados da pesquisa levantada. Logo, na introdução
questiona-se: “...até que ponto o livro atua como força transformadora em nossa
sociedade? Ele já teve um dia esse papel?”. (p.23)
Para responder essas perguntas, Marisa divide
a obra em quatro capítulos. No primeiro, trata das mudanças urbanas econômicas
e sociais da cidade, como o crescimento populacional e o aumento do consumo e
de instituições como a primeira Biblioteca Pública de São Paulo, em 1824, a
Faculdade de Direito, em 1827.
Nota-se, que no primeiro momento, os
livros do início do século XIX, em sua maioria, tratavam de temas religiosos.
Apesar da maioria dos temas de seus livros não fossem dessa temática, o acervo
formador da Biblioteca Pública era da Biblioteca do Bispo D. Mateus de Abreu
Pereira (1741-1824), com um total de 1.059 volumes. Dentre estes, destacam-se
livros de Racine, Molière, Voltaire, Montesquieu, além dos autores antigos,
Horácio, Virgílio e Homero. Dos ingleses, o padre tinha um exemplar de História
da Inglaterra de Hume. No que diz respeito às obras de Coimbra e religiosas,
não faziam parte da maiorias obras do acervo. Outra Biblioteca fundadora da
Biblioteca Pública, era a dos Frades Franciscanos, com 3.196 títulos. Diferentemente,
da primeira, na segunda instituição, os temas religiosos predominavam.
Os intelectuais foram o objeto do segundo capítulo. É com certa melancolia
que a autora constata a precária vida intelectual da cidade de São Paulo. Dessa
maneira, conforme Midori
“No final, nem ‘república de sábios’, nem uma universidade. A
instalação da Academia de Direito vinha compensar o insucesso de projetos
promissores, como os apresentados pelos intelectuais paulistas no momento em
que precederam a Independência e, depois, junto à Assembleia Constituinte. Tais
são, como afirmamos acima, as dissensões entre os projetos intelectuais e os
interesses das elites políticas. Basta lembrar que o projeto de uma
universidade só se tornou possível um século mais tarde, novamente como reação
paulista à nova composição dominante na política nacional. Nesse sentido, a
Academia deve ser interpretada como a última – e talvez a única, em termos
científicos – realização possível da geração de políticos e letrados que
expirou nos anos de 1830”. (pp. 116-117).
Nessa vida acadêmica precária, a falta
de livros era uma constante, assim como poucas pessoas possuíam fortunas com
esses artefatos. Assim, Midori também
aborda o consumo de livros por meio dos inventários post mortem, que aliás eram produzidos na região desde o século
XVI. Também, conforme análise dessa fonte, os livros eram presentes na vila já
em meados do século XVII.
Como exemplo de uma fortuna livresca,
estava no inventário post mortem de
Genebra de Barros Leite de 1838, o qual contava com 326 livros. E, na análise
dessas fortunas, a autora aponta que
“(...) Em São Paulo (...) a presença de livros, assim como
de toda sorte de objetos que revelam certo refinamento no gosto dos
inventariados, estava condicionada mais ao nível cultural do que ao montante
bruto de suas fortunas – esta relação, no caso analisado, é totalmente
aleatória. (...)”. (p. 147).
No terceiro, discute com maestria o
espaço as transformações do espaço urbano e o circuito dos livros. Nesse
momento, a autora se utiliza da leitura cartográfica e realiza uma feliz
conexão entre a História do Livro e a Cartografia. Nesse ponto, observa:
“as cidades brasileiras que tiveram expressão no mercado
literário do século XIX foram justamente aquelas que exerceram alguma função no
sistema internacional de comércio. De tal modo que uma cartografia do circuito
do livro, dos grandes circuitos, consiste, em uma cartografia que integre o
livro às grandes redes comerciais da época. Tudo isso com os devidos ajustes à
natureza ambivalente do objeto. Afinal, os fatores econômicos que nos permitem
identificar as redes de comércio que cruzam o Atlântico – sendo o livro,
certamente, mercadoria inexpressiva do ponto de vista do capital que ele agrega
– somam-se, logicamente, os fatores culturais e, a estes, outras particularidades
que definem circuitos diferenciados de produção – intelectual e industrial – e
difusão livresca. (...)”. (p.186)
Ainda nesse capítulo, Midori reconstitui
o circuito dos livros integrados ao cotidiano da população da urbes
paulistana que se transformava e modernizava principalmente a partir da segunda
metade do Oitocentos. Exemplo disso, é o estabelecimento de uma Sociedade
Germia, fundada em 1868, bem como a presença do transporte ferroviário, do
bonde, dos primeiros lampiões a gás, do crescimento populacional da região. E,
entre 1870 e 1900 “multiplicaram-se as instituições de leitura na cidade”.
(p.229)
Nesse processo, foram fundados o
Instituto Histórico e Geográfico (1894), com um acervo de apenas vinte títulos,
a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e a Faculdade de Medicina (1913).
Contudo, a precariedade das condições livrescas nas bibliotecas era uma constante, obtendo pouco
apoio das elites, pautadas pela “tradição e conservadorismo”. (p.246).
Na
tradição bacharelesca da cidade, a Biblioteca da Faculdade de Direito ganhava
luz elétrica e aumentava consideravelmente seu acervo livresco . Os leitores
também recebiam um espaço maior para os estudos, permanecendo mais tempo na
instituição.
No último, sobre a circulação e consumo
do livro, aborda dentre outros as aspectos, o papel do empreendedor Antole
Louis Garraux (1833-1904), que importava artigos de luxo da França. Dentre os
artefatos, destacam-se os livros. Importantes obras eram trazidas para a
cidade. No catálogo de 1872, os domínios de Literatura e Direito eram
numericamente superiores. O primeiro
assunto era mais consumido pelos bacharéis do curso do Largo São Francisco. Os
livros de Literatura eram dominantes. Provavelmente, consumidos pelos
mesmos, mas também as moças das famílias importantes da cidade. Sobre isso, a
autora ressalta que
“o modelo tão propriamente burguês de organização familiar –
no qual as moças se reuniam na sua placidez cotidiana para a leitura e
bordados, todas tuteladas pela governanta ou pela irmã mais velha – era um
convite à aquisição de livros ilustrados, de romances e de revistas de
costumes, não raro de conteúdo moral. Alguns destes mandados vir da Europa, mas que poderiam ser
encomendados junto aos livreiros da Corte e de São Paulo. Tais hábitos se
refletem nos catálogos livreiros, que anunciam seções dedicadas à leitura
feminina ou, de forma mais ampla à juventude e às famílias” (p. 347).
Na cidade, o consumo de livros parece
ter crescido nas últimas décadas do Oitocentos, com o aumento das tipografias,
juntamente com a comercialização de artigos de luxo. Dessa maneira, a autora
entrecruza as transformações urbanas com as atividades livrescas, encontrando
no Almanak Laemert (1903-1904) 19 casas do ramo. (p. 375)
Pode-se pensar, a partir das suas
pesquisas, em outros temas e livros a serem estudados: as bibliotecas
religiosas, o consumo de livros no período colonial e o posterior no século XX.
Nesse último período, a autora, embasada em Edgard Carone, aponta para a
necessidade de estudar o público leitor de esquerda. Essa pesquisa indicada
ajudaria ainda mais a responder a questão formulada no início da obra e aqui se
repetindo: “...até que ponto o livro atua como força transformadora em nossa
sociedade? Ele já teve um dia esse papel?”. (p.23) Provavelmente, a resposta
seria diferente para o contexto do século XX.
Em suma, o livro da Marisa nos fornece
uma multidão de obras de artes que estão prontas para serem apresentadas. E esse
é, na forma e no conteúdo, uma preciosa
obra de arte.
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