quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

NOTAS SOBRE O ILUMINISMO. Igor de Lima

Pierre Chaunu, em A civilização da Europa das Luzes, discute a cronologia do período iluminista, como os anos de 1680 até 1770. Para o mesmo “na sua curta cronologia, a filosofia das Luzes desfez-se em pouco menos de um século. A coerência interna e a dinâmica própria das ideias, no seio de um sistema de pensamento, seja ele a filosofia mecanicista ou a filosofia das Luzes, tem a história de aceitar e o discurso histórico tem de as integrar. (...)”. (CHAUNU, 1985, p. 31)
Também “as luzes, entenda-se as ideias postas em marcha”, formavam a partir das “estruturas mentais da idade clássica”, as quais “modificam-se lentamente, fazem nascer uma nova civilização, rica, diversa e múltipla. A política e a religião postas em causa, a entrada da história na primeira fila do conhecimento. A autonomia é o primado devorador das ciências. (...)”. (Idem, pp. 40-41)
 No que diz respeito ao espaço das Luzes, Chaunu afirma que “nunca, face ao resto do mundo, a Europa das Luzes, descentrada em relação à Europa mediterrânica do tempo do Renascimento, nunca ela foi objetivamente mais vasta. A tomada de consciência desta dilatação do espaço europeu exprime-se paradoxalmente no cosmopolitismo das Luzes, um cosmopolitismo restritivo que nunca ultrapassou o âmbito da Europa e que repousa no esquecimento implícito do resto do mundo. É de algum modo a antecipação da conquista em profundidade dos continentes pela civilização – mundo de componente europeia. É, portanto, simultaneamente, a tomada de consciência desta mutação, o esquecimento das outras culturas e das outras civilizações para lá das fronteiras alargadas do espaço europeu, a percepção generosa duma cidade dos homens confundida com a grande Europa”. (Idem, 47-48)
Limitando o espaço europeu, o autor nota que “a Europa, espaço cultural, é também o movimento, o progresso. Fora dela tudo é imóvel, fixo e bárbaro. (...) (Idem, p. 49] Nesse continente, a França destacava-se pela sua ascensão no interior e a Inglaterra no seu desenvolvimento econômico. Contudo, no século XVIII, os filhos da aristocracia inglesa viajavam ao continente. “A Europa da viagem inglesa é, antes de mais nada, francesa: prolonga-se até Veneza, desvia-se eventualmente até os Países Baixos, Remo e uma facção da Alemanha, ignora a Espanha. França e Inglaterra confessam assim, através de elementos duma viagem pedagógica, o seu domínio cultural sobre a Europa iluminada. A viagem inglesa ao continente contribuiu para afrancesar com certa profundidade, no século XVIII, a própria língua inglesa. O inglês da rainha, o sotaque de Oxford com as sílabas marcadas e as entonações continentais, nascem em larga medida do estado no continente dos filhos da gentry britânica, isso enquanto o inglês americano da Virgínia e da Nova Inglaterra dos ‘cabeças-redondas’ protegidos pela distância e pela rude casca provinciana, conserva as entonações anteriores ao cosmopolitismo europeu e francófono do século XVIII”. (Idem, p. 48)
Ainda conforme o autor sobre o espaço das luzes, “no espaço-tempo duma Europa dilatada, as dimensões do homem são, pela primeira vez, realmente transformadas. A dilatação do homem é o primeiro objetivo que a filosofia das Luzes assumirá. Esta anima-o a penetrar no domínio reservado da política e da religião. Esta dilatação do homem guia, do exterior, o pensamento do Aufklärung; é indissolúvel do Estado, agente activo, agente eficaz desta conquista do homem sobre si próprio.
Pela sua vontade de espaço, de poder, o Estado deu um empurrão para a frente às franjas pioneiras, pela preocupação de melhor se apoderar, de melhor contar o homem, construiu os dados estatísticos de base. Não fosse isso, não fosse o Estado e não haveria assimetria social nem, à falta de dados, expansão dos espírito científico mecanicista, na direção do homem. O Estado (assim como a ratazana, o rato cinzento da Noruega), deram cabo da peste. (...) A fome tornou-se mais rara e a guerra humanizou-se”. (Idem, p. 165)
O pensamento iluminista do século XVIII era ao mesmo tempo fruto do Ancien Regime e crítico ao mesmo. E no centro da crítica das Luzes estava o debate sobre as ideias políticas. A partir da morte de Richelieu, da consolidação do governo de Mazarino e a ascensão de Luis XIV, o rei Sol, os investimentos institucionais, principalmente nas artes, começaram a formar um fermento cultural erudito promovido pelo Estado para promovê-lo.  Em outras palavras, a crítica social realizava-se no interior da própria monarquia.
Nas reflexões políticas e filosóficas estavam incluídas as ideias de Reforma, o Despotismo Esclarecido, até as ideias do “estabelecimento da igualdade jurídica e moral’ e a ‘consciência da liberdade’. Dentre os filósofos, Rousseau representava a doutrina da bondade natural, que, segundo Cassier significava uma questão central: ‘Como o mal e a culpa podem ser imputados a natureza humana, se ela própria, em sua constituição original está livre de todo o mal e de toda a culpa que desconhece toda perversão radical”. Nesse eixo de pensamento, o filósofo, de origem suíça e calvinista, chegava a Paris com mais de trinta anos. Ele ainda criticava a instalação das ostentações e dos deveres sociais, pois Paris, conforme Cassier, “representava o auge e o momento áureo da cultura palaciana – e a verdadeira virtude desta cultura consiste na cortesia refinada com a qual se recebia todo estrangeiro”. (CASSIER, p. 44). Neste sentido, no Discurso sobre a origem da desigualdade, aparecia essa procura pela exigência simples e pelo fim do peso de “toda a ostentação do conhecimento”. (Idem, p. 45)
Contudo, Franco Venturi critica a análise de Cassier sobre o iluminismo ao “colocar o problema do impacto da tradição republicana no desenvolvimento do iluminismo”. Este objetivo levava à abordagem da “relação entre utopia e reforma”. (VENTURI, p. 28). Neste contexto, a França voltava-se para a compreensão da “forma antiga à tradição republicana européia”. (Idem, 45). Resumindo esta preocupação com os estudos das ideias políticas no centro do poder monárquico, Venturi observa que
“(...) Na década de 1680, a França, sob Luis XIV, empreendeu uma ação muito mais ágil e articulada visando desmembrar a velha república. A política francesa interferiu de cima a baixo na escala social, procurando usar as mais antigas famílias feudais, os Fiesch, por exemplo, e ao mesmo tempo, a nobreza mais recente, bem como os burgueses, ou seja, procurando usar aquela camada que à sombra dos privilégios patrícios continuara a existir e a se desenvolver depois da cristalização da constituição de Gênova. Luís XIV procurava, em suma, se apoiar sobre a mesmas forças que estavam na base do seu poder na França, da nobreza – atraída à corte – a todos que se demonstravam capazes de se inserir no Estado absolutista por meio de venda de cargos e da política mercantilista de Coubert.”
“(....) Logo, em Paris, ao conservadorismo do poder, foi se contrapondo com a Encyclopédie, uma crítica cada vez mais radical e um início da interpretação iluminista da inquietação sempre mais extensa e do descontentamento sempre mais difuso”. (VENTURI, p. 92)
Em 1748, Montesquieu publicava o Espírito das Leis com, segundo Venturi, “diagnóstico pessimista” e “ideal republicano”. (VENTURI, p. 95)
As ideias sobre o conceito de república suscitava debates e reflexões. Conforme Venturi,
“(...) embora fora da história ativa e imediata, fora dos conflitos e das batalhas, as ideias republicanas eram ainda capazes de suscitar uma vontade de independência e de virtude que os Estados Monárquicos, como explicava Montesquieu, com sua autoridade, em 1748, não estavam em condições de satisfazer. Em meados do século, a palavra república ainda tinha um eco profundo no ânimo de muitos, mas como forma de vida e não como forma política. Havia toda uma investigação a fazer sobre o significado da palavra república, por volta de 1750, entre livros e jornais, entre evocações do passado e germes de remanescentes utopias. Admiração e caricatura se alternavam nas imagens do republicano diligente e ativo, solene e livre. Existia, certamente, a moral  republicana quando as formas estatais que a haviam acompanhado pareciam antigas e decadentes ruínas. Sobrevive uma amizade republicana, um sentido republicano do dever, um orgulho republicano mesmo em um mundo agora mudado, até mesmo no próprio coração do Estado monárquico, na corte, no mais profundo ânimo de homens poderia parecer completamente integrado ao mundo do absolutismo”. (VENTURI, p. 140)
Venturi destaca a ideia de que havia um “fermento republicano” na França durante meados do século, com as reflexões de Alexandre Daleyere, que se repugnava com o estado de Paris e encontrava Rousseau. Para Venturi,
“De 1758 a 1793, dos Pensées républicaines à guilhotina, trinta e cinco anos haviam transcorridos. Valeria a pena seguir Deleyre passo a passo ao longo do seu caminho solitário. Ver-se-ia como foram acumulando os pensamentos que transformaram um philosophe num jacobino. Toda a sua insociabilidade e rebelião, toda sua melancolia ou renúncia, nos conduzia a um canto oculto do mundo dos enciclopedistas e nos poria em contato com aqueles  contrastes e aquelas contradições que estavam fermentando entre Diderot e Rousseau, entre a França do contrato social e a Itália da Beccaria, e que terminaram por desaguar na revolução. Deleyere, com sua sensibilidade exasperada e a sua cultura cosmopolita, é um dos melhores testemunhos da transformação que poucos outros viveram tão intensamente”. (VENTURI, p. 159)
O fermento intelectual na década de 1740 ocorria na França, com a formação da Encyclopédie, o Esprit des lois de Montesquieu e Pensées Philosophiques de Diderot, em 1746. E no centro deste movimento intelectual estava Paris, cidade que estava em um “ambiente já cosmopolita, ainda que imposto de obscuros professores alemães como Sellius, e de outros tantos ignotos escritores ingleses como John Mills. Também Diderot e Rousseau, de resto, são todos desconhecidos no início dos anos quarenta. É uma nova geração, e é também um ambiente social totalmente diferente de um Fontenelle, de um Montesquieu, de um Volteire, para somente nomear os homes que dominam então o horizonte intelectual da França. É um mundo extraordinariamente vivaz de boêmios, de tradutores, de gente que vive da própria pena e para as próprias ideias. Nos anos que Voltaire procura se avizinhar da corte e da academia e em que se chega de maneira surpreendente a estabelecer um modus vivendi até mesmo com o papa Benedito XIV, em que Montesquieu trata e discute quase como um poder com o governo francês e com a igreja da política do seu tempo – algumas vezes fazendo concessões outras não, de acordo com as circunstancias, qual verdadeiro juiz e grande senhor, distante e genial – esse grupo de jovens era vigiado de perto pela política e arriscava terminar encarcerado no castelo de Vincennes como aconteceu com Diderot em 1748, no momento geral aos elementos heterodoxos. Nos anos em que o país estava finalmente saindo da guerra, esses jovens estavam em continua guerra com a censura, com as regras corporativas da librarie, até mesmo com a própria família, e com o ambiente do qual provinham. É o grupo extraordinariamente livre, interna e externamente. Diderot é animador, d’Alembert segue-o com relutância. Rousseau interpreta a seu modo as ideias e os entusiasmos do grupo. Eles recusam toda proteção para a nascente Encyclopédie, bem como qualquer rígida organização interna. Não eram dependentes do Estado. Não eram uma academia. Eram um grupo de filósofos livres”. (VENTURI, pp. 222-223)
Tratando do movimento destes filósofos, Foucault, em uma série de conferências sobre Kant e a Ilustração realiza uma arqueologia da racionalidade política, discutindo uma “geneaologia dos políticos modernos da razão”, interpretada por intermédio de uma crítica do discurso da existência e reprodução do poder. (Apresentação de Silvio Maltoni in: FOUCAULT, 1996, pp. 9-15)
Para Foucault, uma das tarefas centrais da Ilustração era “multiplicar os poderes da razão”. Os homens desse movimento pensavam sobre o indivíduo e suas liberdades, assim como na sua espécie de sobrevivência. (Idem, pp. 17-18)
Para Kant era preciso sobrepor a razão à experiência. E, naquele momento, isto significava a necessidade de pensar racionalmente e em termos críticos o “desenvolvimento dos Estados Modernos, e a organização política da sociedade”, vigiando os abusos de poder da racionalidade política. (Idem, p.18)
O caminho de estudar os “vínculos entre a racionalização e o poder” eram por meio de:
1.              Tratar da racionalização da sociedade e da cultura, analisando os “processos em seus vários domínios – que se arraigam cada um deles em uma experiência fundamental: loucura, enfermidade, morte, crime, sexualidade, etc;
2.              Ao estudar a racionalidade é preciso entender que “tipo” de e “princípios” de racionalidade se apresentam;
3.              A Ilustração foi uma faze histórica com extrema relevância para a compreensão do “nosso próprio processo histórico”. Ou seja, estudar o passado Ilustrado, segundo Foucault é fundamental para se explicar o presente. (Idem, p. 19)
Foucault pensa em várias temáticas relacionadas à história da modernidade e ilustração, como a “organização do Estado”, a administração do mesmo, a burocracia e as técnicas de poder.  Sobre este último ponto, destaca o “poder individualizador”, isto é, a maneira continua e permanente da maneira dos indivíduos dirigirem a forma política de um poder centralizado chamado de Estado. (Idem, p. 20)
Discutindo os Estados Modernos e a organização das cidades, Foucault critica tal fato, como um “jogo de pastor e rebanho”, ou, como formas “demoníacas”. Em outras palavras, apesar de entender a formação do estado no sentido moderno (determinado predominantemente pela racionalidade política), critica tal relação como sendo um jogo de domínio e poder. Segundo o mesmo, “surpreendente é que a racionalidade do poder do Estado era reflexiva e perfeitamente consciente de sua singulariedade. Não estava encerrada em práticas espontâneas e cegas, e não ascendeu a luz alguma análise retrospectiva. Foi formulada em particular em dois corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da política. Estas duas expressões seguem sentidos estreitos e prerrogativos. Todavia, durante os quase cento e cinquenta ou duzentos anos que levou a sua formação, os estados modernos conservaram um sentido muito mais amplo do que hoje”. (Idem, pp. 44-45)
A doutrina da razão do Estado tentava definir os princípios e métodos do governo estatal, como a maneira em que Deus governava o mundo, o padre, a família, ou um superior, sua comunidade. Dessa forma, a doutrina política definia a “natureza dos objetos da atividade racional do Estado, definindo a natureza dos objetos que este perseguia...”(Idem, p. 45)
De acordo com Foucault, a “razão do Estado” é considerada como uma “arte”, ou seja, uma “técnica, a qual se submete a determinadas regras. Essas regas não atraem simplesmente o costumes, ou as tradições, mas também o conhecimento – o conhecimento racional”. A racionalidade de governo de estado para nós é considerada arbitrária e violenta, contudo, para os que a vivenciavam fazia parte da “razão de Estado”. E essa “arte de governar racional” era fruto da observação da “natureza do que se governa, neste caso, o Estado.” (Idem, p. 47) O fim desse governo é demarcar sua potência em um “marco extensivo e competitivo”. (Idem, p.51)
A preocupação do Estado estava em assistir e controlar a polícia, o exército, a fazenda e a justiça. Esses temas foram reformados durante os governos monárquicos de José II e Catarina, a Grande, por intelectuais que pensavam a política e a intervenção do Estado. (Idem, p. 59)
O nascimento deste Estado, em termos foucautianos, mantinha um projeto e uma prática policialesca, em uma maneira e constituição “individualizante e totalitária. Essa racionalidade política desenvolveu-se e se impulsionou no fio da história das sociedades ocidentais. Arraigou-se primeiro na ideia de poder pastoral, logo na razão de Estado. A individualidade e a totalização não pode prevenir mais do ataque a um ou a outro de seus efeitos, se não de raízes mesmas da racionalidade política”. (Idem, p. 65)
Refletindo  o que é a ilustração, Foucault discute o texto de 1784 de Kant, na ideia da uma história universal do ponto de vista político, um texto sobre o Aufklárung. Em resumo, o presente é considerado um acontecimento filosófico, que pertence ao filósofo que discorre sobre o mesmo. Se considera a filosofia como “prática discursiva”, problematizando o presente discursivo pertencente a uma “comunidade humana” que se remete, por sua vez, a um “conjunto cultural”. (Idem, pp. 69-70)
Essa filosofia como problematização da atualidade e como interrogação do acontecimento filosófico a situava como “um discurso da modernidade e sobre a modernidade”, segundo Foucault. (Idem, p. 70) Nessa linha de pensamento, a trajetória das ideias eram provenientes da filosofia de Decartes e Kant, os fundadores da “filosofia moderna”. Ou seja, a filosofia que pensa em atuar na sua própria contemporaneidade. A partir daí pensa-se na genealogia da noção de modernidade, ou seja, do “processo cultural que tomava consciência de si mesmo”, Aufklárung. (Idem, pp. 72-73)
Conforme Foucault, Aufklárung foi um momento histórico que se formulava a história geral do pensamento, relacionando-a com o presente e as “formas de conhecimento, de saber, de ignorância, de ilusão, nas quais sabe reconhecer sua própria situação histórica”. A questão da “Auflárung” é manifestar-se sobre a maneira de filosofar ao longo dos séculos. “Uma das grandes funções da filosofia chamada de moderna (cujo conhecimento pode situar-se em meados do século XVIII) é interrogar-se sobre sua própria atualidade”. (Idem, p. 72)
Esse movimento inaugurava a modernidade europeia, para Foucault, que o entendia como um “processo permanente”, manifestado na “história da razão e no desenvolvimento e na instauração de formas de racionalidade e técnica, autonomia e autoridade de saber”, sendo “uma questão filosófica inscrita desde o século XVIII no nosso pensamento”. (Idem, p. 80) Esta filosofia inaugura a modernidade.
Definindo modernidade, Foucault afirma que é “uma vontade de glorificar o presente, contudo, esta heroificação é irônica”. A ironia está em que o homem moderno busca a compreender e elaborar-se a si mesmo. Desse modo, o ethos filosófico da modernidade é criticar-se continuamente a si mesmo de maneira reflexiva, histórica e crítica. Essa crítica, portanto, é a profissão de fé da ilustração. (Idem, pp. 85-11)
Lothar Kreimendal, em A filosofia do século XVIII como a filosofia do Iluminismo, afirma que “o século XVIII é considerado o século do Iluminismo”, marcando este “período, que engloba a secularização da política, na cultura, na literatura e na religião, ou seja em todas as manifestações da atividade humana”. (KREIMENDAHL, p. 7) Para o mesmo, “o conceito de Iluminismo pode não ser tomado no sentido histórico como designativo de uma determinada época, como também se adapta como conceito pragmático para a caracterização de certa postura espiritual que transparece no dito horaciano Sapere aude e que não foi utilizada pela primeira vez por Kant em seu conhecido ensaio iluminista de 1784, quando o elegeu como lema para o Iluminismo e para o qual talhou a seguinte famosa tradução. Tem coragem de fazer uso da tua própria inteligência!”. (Idem, pp. 8-9).
De acordo com Kreimendahl o Iluminismo abrangia a cultura europeia a partir de 1680. Nesse momento inicial, encontra-se o Tratactus Theologico-Politicus de 1670 de Spinoza. A partir dai, o movimento abrange um maior número de cidadãos, abrangendo também a classe média, como exemplo maior a Encyclopédie, publicada por Diderot e d’Alembert em 1751. Neste último momento, já se encontra desgastado com o aparecimento do “Romantismo inicial”. (Idem, pp. 10-11)
Na Inglaterra, a partir da Revolução Gloriosa de 1688, a “democracia parlamentarista” e a tolerância religiosa marcavam o avanço dos livres pensamentos iluministas. Voltaire, em exílio londrino (1726-1729) declarava sua admiração pelos ingleses. Os Principia de Newton e Essay de John Locke marcaram o movimento. Segundo Kreimendahl,
“(...) Fundamentado em seu princípio básico e empírico, Locke sondava as ideias do intelecto e tentava explicar suas origens por meio da experiência. De acordo com seus contemporâneos, ele teve sucesso a ponto de transformá-lo na autoridade máxima da filosofia do seu tempo”. (Idem, p. 14)
Na França, de acordo com o mesmo, florescia a cultura aristocrática já em 1682 com Pierre Bayle, combatente da “superstição” e o “preconceito”. Para Robert Darton, entretanto, o Iluminismo restringia-se a Paris no início do século XVIII. (Idem, p. 16) Contrapondo-se a isso, Kreimendahl declara que
“Diferentemente da linha empírica da ciência (natural) do Iluminismo britânico, o francês tem orientação sociocrítica e dirige-se contra a Igreja, contra instituições repressivas e contra a burguesia. No terreno metafísico, representa um materialismo que acaba evoluindo religiosa e filosoficamente para o ateísmo”. (Idem, pp. 17-18)
Na Alemanha, de acordo com o mesmo autor, o Iluminismo atingia seu ápice com as obras de Kant e Mendelssohn, publicadas no Periódico Mensal Berlinense, e, podia ser imitado por quatro gerações, abrangendo os anos de 1680 à 1790. (Idem, pp. 22-23)
Sintetizando a definição do movimento iluminista, Kreimenahl afirma que
“A enorme expansão do pensamento iluminista estava ligada a uma série de pressupostos e condições. Considerando a atualidade dos temas propostos, a comunicação entre os simpatizantes do Iluminismo ocorria inicialmente apenas por via oral. Círculos privados, os salões e os cafés eram os lugares em que as conversas conspiradoras podiam ser mantidas. No início, especialmente na França, onde havia forte censura em oposição ao que ocorria na Inglaterra, a documentação escrita circulava apenas de mão em mão. Obras impressas eram executadas, quando muito, em impressoras clandestinas de lugares fictícios na Holanda liberal. Isso explica a relativamente elevada incidência de obras francesas na literatura clandestina. As obras tinham de ser adaptadas ao público-alvo, qual seja, os cidadãos cultos. Gradativamente o latim era substituído pela língua nacional, dando-se preferência às formas mais agradáveis de leitura, como os ensaios, dialógicos ou relatos de viagens, sobre volumosos tratados. O progresso da técnica da imprensa possibilitava maior rapidez e, consequentemente, uma reação mais rápida dos iluministas a acontecimentos atuais, além de baratear os custos, o que permitia atingir círculos mais amplos. O mercado livreiro internacionalizava-se, e a crescente tendência ao jonarlismo contribuiu para a eficácia do movimento iluminista”. (Idem, p. 27)
Como característica do Iluminismo, Kreimendahl destaca os combates ao “preconceito” e à “superstição”. No primeiro caso, para superá-lo era necessário recorrer ao conhecimento histórico, como no caso de Voltaire e Hume. (Idem, p. 30)
Outro valor marcante do Iluminismo é a liberdade de pensamento e a profusão de debates, o que fazia com que houvessem muitas diferenças entre os seus pensadores. Em termos de região, de maneira geral o “Iluminismo alemão é mais orientado na metafísica, em oposição à orientação científica e empírica inglesa e a sócio-crítica e materialista francesa”. (Idem, p. 33)
Não obstante, o século XVIII também possuiu opositores ao movimento, na França, Rousseau com Nouvelle Héloise (1761) e o movimento do Sturm und Drang (tempestade e ânsia) na Alemanha, foram contrários ao Iluminismo. (Idem, pp. 36-37)
Todorov, em O espírito das Luzes, defende a ideia de que nesta época o debate era muito mais valorizado do que o consenso, havendo um projeto de emancipação e autonomia intelectual. Segundo o mesmo, no “mundo desencantado das luzes” havia uma crítica maior com as relações entre religião e Estado. A religião tornava-se uma decisão individual. O autor também valoriza a liberdade do conhecimento da ciência, da tolerância e o “combate pela liberdade de consciência” (TODOROV, 2008, p. 17)
Todorov entende que a liberdade humana e na capacidade de escolha encontravam em Rousseau seu maior ícone. Havia, assim, uma revolução no pensamento iluminista, na qual a crítica tornava-se o principal mote. “A máxima de pensar por si mesmo é as Luzes”, afirma o autor. (Idem, pp. 49-51) Discutindo o papel da autonomia iluminista, afirma que “paralelamente à libertação do povo, o indivíduo adquire também sua autonomia. Ele se engaja no conhecimento do mundo sem se inclinar diante das autoridades precedentes, escolhe livremente a religião, tem o direito de exprimir seu pensamento no espaço público e organizar sua vida privada como bem entende. Não é preciso crer que, um papel privilegiado com relação às tradições, os pensadores das Luzes prolonguem essa exigência com uma hipótese sobre a natureza dos homens: eles sabem muito bem que nossa espécie não é racional. (....)”. (Idem, p. 52)

Essa autonomia, de acordo com Todorov, “é desejável, mas autonomia não significa auto-suficiência. Os homens nascem, vivem e morrem em sociedade; sem ela, eles não seriam humanos. É o olhar sobre a criança que está na origem da consciência, é o comando dos outros que o desperta para a linguagem. O próprio sentimento de existir, ao qual ninguém pode subtrair-se, porém da interação com os outros. Todo ser humano é acometido de uma insuficiência congênita, de uma incompletude, à qual busca preencher afeiçoando-se a seres que o cercam e solicitando o afeto deles. É ainda Rousseau que exprimiu mais fortemente essa necessidade. Seu testemunho é particularmente precioso, pois, enquanto indivíduo, fica constrangido entre os outros e prefere fugir deles. Mas a solidão é ainda uma forma de vida comum que não  é nem possível, nem desejável abandonar”. (Idem, p. 53)

Bibliografia
CASSIER, Ernst. A questão de Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: Unesp, 1999.
CRAMPE-CASNABERT, Michéle. A mulher no pensamento filosófico do século XVIII. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: do Renascimento à idade Moderna. Porto: Afrontamento, 1991, Vol.3, pp. 369-407.
CAHUNU, Pierre. A civilização da Europa das Luzes. Lisboa: Editorial Estampa, 1985.
DULONG, Claude. Da conversação à criação. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: do Renascimento à idade Moderna. Porto: Afrontamento, 1991, Vol.3, pp. 467-495.
FOUCAULT, Michel. Que es la ilistración. Madrid: La Piqueta, 1996.
KREIMENDAHL, Lothar. Introdução. A filosofia do século XVIII como filosofia do Iluminismo. In: KREIMENDAHL, Lothar (Org.). Filósofos do século XVIII. Uma introdução. Unisinos, 2004, pp. 7-47.
SONNET, Marline. Uma filha para educar. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: do Renascimento à idade Moderna. Porto: Afrontamento, 1991, Vol.3, pp. 141-179.
TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Ed. Barcelona, 2008.
VENTURI, Franco. Utopia e Reforma. Bauru, SP, 2003.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Revolução Francesa: observações históricas e historiográficas. Igor de Lima

                  “Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas principalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas socioeconômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas aldeias, o ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política européia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical democracia para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as ideias europeias inicialmente através da influencia francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa”. (Hobsbawn. pp. 83, 84)
                   Abordando da crise do final do Setecentos, Hobsbawn afirma que esta  atingiu “os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando o ponto de revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto de secessão; não só nos EUA (1776-83) mas também na Irlanda (1782-84), na Bélgica e em Liège (1787-90), na Holanda (1783-7), em Genebra e até mesmo – conforme já se discutiu – na Inglaterra (1779). A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma era de ‘revolução democrática’, em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora mais dramático e de maior alcance e repercussão”. (Idem, p. 84)
                    Para Hobsbawn a Revolução Francesa foi “fundamental”, obtendo “consequências mais profundas”. (Idem, p. 85) Seus ideais atingiam o socialismo e comunismo modernos. (Idem, p. 85) Conforme o mesmo, “é a revolução de seu tempo, e não apenas uma, embora a mais proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da França. Sua peculariedade é talvez melhor ilustrada em termos internacionais. Durante todo o século XVIII, a França foi o maior rival econômico da Grã-Bretanha. Seu comércio externo, que se multiplica quatro vezes entre 1720 e 1780, causava ansiedade; seu sistema colonial foi em certas áreas (como nas Índias Ocidentais) mais dinâmicas que o Britânico. Mesmo assim a França não era uma potência como a Grã-Bretanha, cuja política externa já era substancialmente determinada pelos interesses da expansão capitalista. Ela era o mais poderoso, e sob vários aspéctos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes”. (Idem, p. 86)
                    A crise do século XVIII francesa foi agravada pelos “problemas financeiros da monarquia. A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta (...), a tentativa de remediar a situação através das reformas de 1774-76 fracassou, derrotado pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçado pelos parlaments. Então a França envolveu-se na guerra de independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtida a custo da bancarrota final, e assim a revolução americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa. Vários expedientes foram tentados com sucesso cada vez menor, mas sempre longe de uma reforma fundamental que, mobilizando a considerável capacidade tributável do país, pudesse enfrentar uma situação em que os gastos excediam a renda de pelo menos 20% e não haviam quaisquer possibilidades de economias efetivas. Pois embora a extravagância de Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte só significavam 6% dos gastos totais em 1788. A guerra, a marinha e a diplomacia constituíam 1/4 , e metade era consumida pelo serviço da dívida existente. A guerra e a dívida – a guerra americana e sua dívida – partiram a espinha da monarquia”. (Idem, pp. 89-90)
                  A crise monárquica, de acordo com Hobsbawn, forneceu á aristocracia e aos parlaments a sua chance. Eles se recusavam a pagar pela crise se seus privilégios não fossem estendidos. A primeira brecha no fronte do absolutismo foi uma ‘assembléia de notáveis’, escolhidos a dedo, mas assim mesmo rebeldes, convocadas em 1787 para satisfazer as exigências governamentais. A segunda e decisiva brecha foi a desesperada decisão de convocar os Estados Gerais, a velha assembleia feudal do reino, enterrada desde 1614. Assim, a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Essa foi mal calculada por duas razões: ela substimou as intenções independentes do ‘Terceiro Estado’ – a identidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero, mas de farto dominada pela classe média – e desprezou a profunda crise sócio-econômica no meio da qual lançava suas exigências políticas”. (Idem, p. 90)
                   O grupo social predominante revolucionário para Hobsbawn era a burguesias, sendo que “suas ideias eram o liberalismo clássico, conforme formuladas pelos ‘filósofos’ e ‘economistas’ e difundidas pela maçonaria e associações informais. Até este ponto os ‘filósofos’ podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples lapso de um velho regime e sua substituição rápida e efetiva por um novo”. (Idem)
                    Não obstante, continua o historiador, no geral, a burguesia era apenas devota de um “constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantidas para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários”. (Idem, p. 91) Ainda conforme o mesmo, “oficialmente esse regime expressaria não apenas seu interesse de classe, mas também a vontade geral do ‘povo’, que era por sua vez (uma significativa identificação) ‘a nação francesa’. O rei não era Luis, pela Graça de Deus, rei de França e Navarra, mas Luis, pela graça de Deus e do direito constitucional do Estado, Rei dos Franceses. ‘A fonte de toda a soberania’, dizia a Declaração, ‘reside essencialmente na nação’. E a ‘nação’, conforme disse o Abade Sieyès, não reconhecia na terra qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade que não a sua – nem a da humanidade como um todo, nem a de outras nações. Sem dúvida, a nação francesa, como suas subsequentes imitadoras, não concebeu inicialmente que seus interesses pudessem se chocar com os de outros povos, mas, pelo contrário, via a si mesmo como inauguradora ou participante de um movimento de liberação geral dos povos contra a tirania. (...) O povo identificado com ‘a nação’ era mais um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo”. (Idem, pp. 91-92)
                  Enfim, contrapondo à Revolução, Hobsbawn observa que a “contra-revolução mobilizou contra si as massas de Paris, já famintas, desconfiadas e militantes. O resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da bastilha, que fez do dia 14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio da libertação (...). O que é mais certo é que a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades provincianas e para o campo”. (Idem, p. 94)
                   Interpretando os acontecimentos de 1789, Jean Starobinski, em 1789: os emblemas da razão, trata das transformações culturais sincrônicas a partir do ambiente deste período. Para este, “o ano de 1789 é um divisor de águas na história política da Europa. Traçaria ele uma fronteira na vida dos estilos?”, questiona-se. E pensando neste problema responde que “as revoluções não inventam imediatamente a linguagem artística que corresponde à nova ordem política. Por longo tempo ainda usam-se formas herdadas, mo momento mesmo em que se deseja proclamar a decadência do mundo antigo”. 
                   E continuando, afirma que “falar de 1789 é observar o surgimento da Revolução,  e não de seus feitos a longo prazo. É tentar compreendê-lo em seu aparecimento, na vizinhança de suas causas próximas, de seus preâmbulos, de seus sinais anunciadores. A maior parte das obras de arte que aparecem em 1789 não pode ser vista como consequência do fato revolucionário. Na França e fora da França, edifícios, quadros, óperas foram terminados no momento em que a rebelião abalava Paris e em que a monarquia francesa vacilava. Concebidas antes do acontecimento, levado por uma intenção de longo fôlego que nada mais devia à febre daqueles ardentes dias, essas obras parecem convidar-nos a interpretá-los independentemente do contexto que a história lhes deu. Semelhante coincidência não permite invocar uma derivação de causa e efeito”. (STAROBINSKI, 1998, p. 18)
                O autor, analisando a cultura artística do período revolucionário na Europa nota que “nessa aproximação entre as obras de arte e o acontecimento, a parte preponderante cabe ao acontecimento. Tão viva é a luz irradiada pela revolução que não há fenômeno contemporâneo que ela não ilumine. Quer prestem atenção nela ou a ignorem, quer a aprovem ou a condenem, os artistas de 1789 são os contemporâneos da Revolução. Nada pode fazer com que não sejam situados em relação a ela: é ela que, de certa maneira, os julga. Impõe um critério universal, que dá a medida do moderno e do antiquado. Promove, põe a prova uma nova norma do elo social, diante do qual as obras de arte não podem evitar adquirir um valor de aquiescência ou de repúdio”. (Idem, p. 19)
               Interpretando as obras de Francisco Goya (1746-1828), Starobinsky declara que em sua obra, profundamente mescladas até o angustia, a preocupação com a liberdade política, a violenta liberdade da imaginação temática, é essa liberdade de ‘toque’ que se manifesta no ato mesmo do pincel, do creiom ou da pena. A independência extrema da expressão é aqui própria de um homem que terá conhecido a maior dependência. O ano de 1789, para Goya, é o da consagração tardia de sua carreira oficial. É nomeado pintor da Câmara por Carlos IV, que acaba de chegar ao poder: executará os retratos solenes do rei e da rainha. (....)”. (Idem, p. 121) Contudo, é a partir da sua fragilidade de saúde que Goya, nos anos de 1792-93, com a surdez, que a sua sensibilidade aguça em seus quadros. (Idem, p. 125)
                Em suma, para o autor, “a França revolucionaria, foco de onde irradiava a luz dos princípios, e de que Goya esperava a expansão pacífica, faz irrupção sob a fisionomia de um exército violento, semeando a sua passagem os assassinatos e as violações absurdas. Uma inversão maléfica substitui a luz pelas trevas. A esperança foi traída, a história, que parecia progredir no sentido de liberdade, perde seu eixo positivo e se torna uma cena insensata. Como se vê, não estamos mais apenas na presença do que chamávamos, a propósito da arte neoclássica, de o retorno da sombra; vemos efetuar-se uma verdadeira permutação que substitui por uma fonte de trevas aquilo que de início parecia fonte de luz. (...)”. (Idem, p. 129)
                Michel Vovelle, em obra de síntese, em A Revolução Francesa, refaz o percurso histórico da Revolução Francesa, discutindo com autores revisionistas como François Furet, os quais fizerem uma revisão da mesma para as homenagens de duzentos anos. O autor, defende a perspectiva marxista e ainda traça avanços no debate, trazendo reflexões e explicações sobre os acontecimentos. Em primeiro lugar, declara que o Antigo Regime fora um período marcado pelo predomínio do feudalismo, da sociedade de ordens e do absolutismo. O feudalismo significaria a ruralidade da população francesa, a relação de trabalho servil, o grupo restrito de privilegiados proprietários das terras, bem como a justiça real em favor dos senhores. (VOVELLE, 2012, pp. 5-6) A sociedade organizava-se de acordo com critérios nobiliárquicos, como as patentes militares, as hierarquias psicossociais dos homens nobres, bem como os conflitos entre as ordens. (Idem, p. 8) Ademais, o absolutismo dignificava de maneira resumida a monarquia de direito divino, o catolicismo como a religião de Estado e as “cortes representavam as mais altas instâncias da justiça real, em Paris e nas Províncias. (Idem, pp. 8-9)
                Concordando com Hobsbawn, Vovelle acredita que a crise do Antigo Regime era fundamentada em causas profundas (marcadas pelas continuidades) e imediatas (marcadas pelos últimos acontecimentos e pela conjuntura. O autor destaca, como o inglês, a crise econômica e a alta nos impostos, como o imposto sobre o sal, a incapacidade reformista dos ministros de Luís XV e de Luís XVI, a contestação aos privilégios da aristocracia nobiliárquica, tanto da nobreza cortesã quanto da provinciana. (Idem, p. 10)
               Durante os anos de 1787 e 1789, mesmo a nobreza entrava em confronto com o rei, a favor dos “privilegiados” e contraditoriamente impossibilitando a salvação do “sistema monárquico”. (Idem, pp. 12-13) E, Vovelle insere seu trabalho a questão: “Revolução Francesa, revolução da miséria ou revolução da propriedade. (Idem)
                Para responder essas questões começa a narrar os problemas centrais como a crise de fome, carestia de alimentos, alta dos preços, fatos estes que faziam as camadas populares se associaram “a uma reivindicação burguesa que se insere indiscutivelmente na continuidade da prosperidade secular”. (Idem, pp. 13-14) No quadro da participação dos grupos sociais, o autor também destaca o papel da rica, mas diminuta burguesia mercantil no período revolucionário. (Idem, pp. 15-16) Em suma, “a verdadeira burguesia, no sentido moderno do termo, encontra-se entre os construtores, comerciantes e negociantes dos quais grande parte se estabeleceu nos portos – Nantes, La Rochelle, Bordeaux e Marselha –, tirando do grande comércio marítimo uma riqueza muitas vezes considerável. Enfim, encontramos banqueiros e financistas ativos em certas praças (Lyon), mas concentrados essencialmente em Paris”. (Idem, pp. 15-16)
                 Na perspectiva ideológica, Vovelle declara que na literatura e nas estruturas sociais do Iluminismo, a burguesia se impunha percebendo a incapacidade das reformas da monarquia, que se agravava com o auxílio desta à guerra de independência dos Estados Unidos e as crises econômicas já apontadas por Hobsbawn. 
                 Durante o ano de 1789, para Vovelle ocorriam três revoluções: a constitucional (parlamentar); a urbana e municipal; e, a revolução camponesa. (Idem, pp. 20-25) Segundo o autor, “os Estados-Gerais foram abertos solenemente em 5 de maio de 1789; em menos de três meses, proclama-se Assembleia Nacional Constituinte e a vitória do povo parisiense em 14 de julho garantia o sucesso do movimento: esses três meses decisivos viram os elementos de uma situação explosiva amadurecerem até as últimas consequências. Pela primeira vez, a campanha eleitoral deu realmente ao povo francês o direito a palavra. (...)”. (Idem, p. 20) O terceiro Estado lutava nesse momento para que o voto fosse por cabeça e não por “ordem”. 
                      Discutindo o momento da Queda da Bastilha, invasão popular e destruição da prisão onde os presos eram esquecidos pela justiça, Vovelle declara que “desde o início de julho, valendo-se do contexto das assembleias eleitorais nos Estados Gerais, a burguesia parisiense estabeleceu as bases de um novo poder e o povo da capital começou a se insurgir, incendiando os postos da alfândega municipal. O recrudescimento dos tumultos no dia seguinte à demissão de Necker [ministro real reformador] levou à jornada decisiva de 14 de julho: o povo toma a Bastilha, fortaleza e prisão real, que ainda resistia. O alcance desse episódio vai muito além de um acontecimento pontual. Ele é o símbolo da arbitrariedade real e, de certo modo, do Antigo Regime que se encontra em decadência. A revolução popular parisiense avança em julho, após a condenação à morte de Berter de Sauvigny, intendente da generalité de Paris, e sobretudo início de outubro (nos dias 5 e 6), quando os parisienses, seguidos da Guarda Nacional, respondem às novas ameaças de reação, marchando sobre Versalhes para trazer de volta a família real; ‘o padeiro, a padeira e o aprendiz do padeiro’. Um programa que associa reivindicação política (controle da pessoa do rei) reivindicação econômica. A partir dessa sequência de acontecimentos, podemos julgar o elo que une a revolução parlamentar no topo, tal como ela se afirma na Assembleia Nacional, e a revolução popular nas ruas. É claro que a burguesia é mais do que reservada em relação à violência popular e às formas brutais de luta pelo pão de cada dia. Mas, entre essas duas revoluções, há mais do que coincidência fortuita: graças à intervenção popular, a revolução parlamentar pôde concretizar seus êxitos e, graças ao 14 de julho, o rei teve de ceder, readmitindo Necker no dia 16 e no dia 17, aceitando usar a roseta tricolor, símbolo dos novos tempos. Do mesmo modo, as jornadas de outubro deram um novo basta à reação planejada”. (Idem, pp. 22-23)
             As revoltas populares espalhavam-se, alcançando mais da metade do território francês, causando o “Grande Medo”. Esse grande medo, conforme Vovelle, “traduz a mobilização das massas camponesas e simbolizava sua entrada oficial na revolução. (Idem, p. 24)
            No torvelinho dos acontecimentos revolucionários do período constitucional, o rei, para Vovelle, era “pego em fogo cruzado das sugestões dos seus conselheiros (Mirabeau, La Fayette, Lameth ou Bornave, além de seus contatos familiares com os estrangeiros ou com os emigrados, que são essenciais para ele. O resultado de toda uma série de negociações realizadas em segredo é conhecido: em 20 de junho de 1791, a família real em peso abandona o palácio das Tulherias. Reconhecida no caminho, é preso e levado de volta a Paris. O anúncio da fuga causa estupor nos parisienses”(Idem, p. 31)
             Do outro lado, os revoltosos se articulam. Saint-Just, que nascia em 25 de agosto de 1767, realizava direito na Universidade de Reis, votava pela morte do rei. Era escolhido para o Comitê de Salvação Pública juntamente com Robespierre. Mas Acabou sendo guilhotinado no dia 28 de julho de 1794. Sobre a Revolução declarava:  “Houve na França, durante essa revolução, dois partidos obstinados: o povo, que querendo cumular de poder seus legisladores, gostava dos grilhões que ele próprio se impunha; o do príncipe que querendo elevar-se acima de todos, preocupava-se menos com a própria glória do que com seu destino” (SAINT-JUST, p. 13)
            Atacando a nobreza dizia que “A corte era uma nação leviana que não pensava, como se quis fazer crer, em estabelecer uma aristocracia, mas em subvencionar as despesas de seus desregramentos. A tirania existia, eles apenas abusavam dela. Apavoravam imprudentemente todo o povo, ao mesmo tempo, com deslocamentos de tropas de exército; a isso juntou-se a fome; ela era proveniente da escassez do ano da exportação de trigo. (...) A fome revoltou o povo; o desespero instalou a desordem da corte. Temia-se Paris, que a cada dia tornava-se mais facciosa com a audácia dos escritores, com a dificuldade de recursos e porque a maior parte das fortunas estava submersa na fortuna pública”. (Idem, p. 21)
            Defendendo a revolta popular proclamava que “Uma guerra ofensiva só pode ser empreendida quando o povo todo, mesmo se ele fosse tão numeroso quanto a areia, tivesse consentido individualmente; pois aqui, além da maturidade de uma semelhante empresa, a liberdade natural do homem seria violada na posse de si mesmo; ao contrário, na guerra defensiva, não é preciso nem votar nem deliberar, mas vencer; aquele que recuperasse seu baço à parte teria cometido um crime atroz, teria violado a segurança do contrato. Em um povo numeroso, é preciso renunciar à guerra ou é preciso uma metrópole tirânica como Roma e Cartago; quando Rousseau louva a liberdade de Roma, ele não se lembra mais do que o universo está acorrentado”. (Idem, p. 151)
            Explicava ainda na necessidade de igualdade, que dependia muito dos impostos; se eles forçarem o rico indolente a deixar sua mesa ociosa e correr os mares, a formar oficinas, ele perderá muito de seus modos.  A vida endurece os costumes, que só são ativos quando são frouxos. Os homens que trabalham se respeitam” (Idem) Proclamando a justiça social, notava que “A justiça será bem simples quando as leis civis, livres das sutilezas feudais, beneficiárias e habituais, não despertarem mais do que a boa fé dos homens; quando o espírito público voltado para a razão deixar os tribunais desertos”. Ou ainda defendia que “Quando todos os homens forem livres, eles serão iguais; quando eles forem iguais, serão justos. O que é honesto caminha por si mesmo”. (Idem)
            Outro personagem interessante do grupo dos revoltoso, o jacobino Robespierre (1758-1794) era em 1789 eleito pelo Terceiro Estado como deputado. Em Outubro, reunia-se na Sociedade dos Amigos da Constituição, no refeitório do convento dos jacobinos. Robespierre tornava-se o líder deste grupo. Em 17 de julho de 791, Robespierre destacava-se como o principal chefe da nova insurreição. No dia 20 de abril de 1792, Robespierre era o líder dos jacobinos contra os girondinos no poder.
           No dia 10 de agosto de do mesmo ano, com sublevação popular e instalação da Comuna de Paris, o rei era preso e as prisões ficavam cheias. Em 20 de setembro de 1792, abolição da Monarquia e Constituição da República. Disputa entre girondinos e jacobinos intensificava-se. Em 21 de janeiro de 1793, o Comitê de Salvação Pública, liderado por Robespierre assumia o governo revolucionário e instaurava a fase do Terror.
          No dia 10 de junho de 1794, fase mais intensa da Revolução, com morte de 10 mil executados. Robespierre era atacado como ditador. Em 26 de julho, ocorria a prisão de Robespierre e era sufocado o movimento de libertá-lo. Dois dias depois, Robespierre era guilhotinado juntamente com Sant-Just. Sobre o Julgamento de Luis XVI, 3 de dezembro de 1792: “Luis foi rei, e a República está fundada; a famosa questão que vos ocupa está decidida por estas simples palavras. Luis foi destronado por seus crimes; Luis denunciava o povo francês como rebelde; chamou para castiga-lo, os exércitos tiranos, seus confrades; a vitória e o povo decidiram que era ele o único rebelde; portanto, Luis não pode ser julgado; já foi julgado. Está condenado, ou a República não está absorvida. Propor o processo de Luis XVI, seja de maneira que for, é retroceder ao despotismo real e constitucional; é uma ideia contra-revolucionária; pois é colocar a própria Revolução em litígio. (...)” (ROBESPIERRE, p. 56)
A respeito da justificativa das revoltas afirmava que “os povos não julgam como as cortes judiciárias; não pronunciam sentenças; fulminaram; não condenam reis, mergulham-nos de novo no nada; e essa justiça bem vale a dos tribunais. Se é por sua salvação que os povos se armam contra seus opressores, como seriam eles obrigados a adotar um modo de puni-los que constituiria para eles um novo perigo?” (Idem, p. 58)
           Sentenciava que o rei deveria “morrer porque é preciso que a pátria viva”. (Idem, p. 65) E propunha ainda que “delibereis desde este momento sobre o destino de Luis. Quanto a sua mulher, ireis enviá-la aos tribunais, assim como todas as pessoas acusadas dos mesmos atentados. Seu filho será guardado no Templo até a paz e a liberdade pública sejam consolidadas. Quanto a ele, solicito que a Convenção o declare, desde este momento, traidor da nação francesa, criminoso para com a comunidade, solicito que lhe dê um grande exemplo ao mundo, no lugar onde morreram, em 10 de agosto [dia da prisão do rei], os generais mártires da liberdade. Solicito que esse evento memorável seja considerado por um monumento destinado a nutrir no coração dos povos o sentimento dos seus direitos e o horror dos tiranos; e na alma dos tiranos o terror salutar da justiça do povos”. (Idem, p. 65)
          Por fim, o governo revolucionário não conseguia avançar em suas propostas e, o clube dos Jacobinos é fechado, a rede das sociedades é desmantelada, os principais líderes também são despostos e próprias estruturas do governo revolucionário e o Diretório predomina juntamente com o posterior golpe de Napoleão Bonaparte em 19 de novembro de 1799. 
Bibliografia
HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, (1a ed.1977), 2003.
ROBESPIERRE, Maximilien de. Discursos e relatórios na convenção. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
SAINT-JUST, Louis Antoine Leon. O Espírito da Revolução e da constituição da França (1791). São STAROBINSK, Jean. 1789: Os Emblemas da Razão. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
VOVELLE, Michel. Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2012.