sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Sigmund Heldt (1560)


HISTÓRIA DA INDUMENTÁRIA: DEBATE HISTORIOGRÁFICO. IGOR DE LIMA

Com sua primeira edição em 1860, Jacob Burckhardt, em A cultura do Renascimento da Itália, retratava os trajes do século XVI como os mais “belos “ e “elegantes” da época. Também homens italianos renascentistas tinham costumes mais “refinados”. Para o mesmo, “muitas pessoas, mesmo as mais graves, consideram a roupa mais bela e apropriada possível um complemento da personalidade. Houve mesmo um momento em Florença no qual o vestir era uma questão puramente individual – cada um vestia sua própria moda – e, até boa parte do século XVI existiam ainda pessoas importantes dotadas de voragem de fazê-lo; os demais sabiam pelo menos acrescentar um elemento de individualidade à moda dominante. (...)”[1]
No século XVI, ainda segundo Burckhardt, em Veneza e Florença, as “mudança das formas do vestir e a adoção da moda francesa e espanhola serviam apenas para o anseio habitual pelo ornamento exterior...”[2]
Além das cidades italianas, as cortes de Borgonha e França possuíam alterações constantes nos modos de vestir, conforme a perspectiva de Huizinga, em Outono da Idade Média, publicado pela primeira vez no início do século XX. Na corte de Borgonha, segundo Huizinga, a moda aproximava-se em muito à arte: “o traje de luto que Filipe, o Bom, usava depois do assassinato de seu pai, para receber o rei da Inglaterra, era tão longo que pende grande corcel que cavalgava até o chão”.[3]
Analisando a história dos homens vestidos de preto Harvey afirma que “o traje masculino ideal”, compunha-se de gibão preto, calça cinza, sapatos pretos e luvas amarelas”. [4] Ao aprofundar o consumo da veste negra na corte borgonhesa, o mesmo autor nota que no caso do rei Felipe, o Bom, “o preto que ele usa serve também à sua profissão de virtude cristã”. Este rei se oferecia como “patrocinador de uma cruzada e se apresenta voluntário para enfrentar um infiel em combate – assim, pode-se imaginar que a cor de suas roupas e sua aparência austera tenham contribuído para que ficasse conhecido como ‘o Bom’.”
A sua  esplendorosa corte, de acordo com Harvey, era conhecida por seus trajes negros, frequentemente, de veludo preto, aliando a gravidade e a elegância. “Magro e anguloso, em seu negro vestido de veludo trabalhado, gibão negro, capucho negro e meias negras”. Esta roupa fora “ao mesmo tempo, levemente sinistro e quase elegante”. Ainda pode-se compreender a relevância das vestes negras reais, no modo descrito por um contemporâneo, a forma como ele ‘caminha solenemente, portando-se bem e com nobreza’”.
Este rei tinha consciência de seu poder. E, acordo com Harvey, o mesmo “podia ser uma figura igualmente ameaçadora – um homem a ser temido num campo de batalha – talvez seja sugerido nos contornos bruscos e pontudos de sua fina silhueta”. Seu conjunto indumentário negro tinha “o ar de ao mesmo tempo perigoso, vingativo – uma sentença proferida contra os assassinos de seu pai – e cristão, devoto, judicioso”. Este retrato quatrocentista simbolizava ao mesmo tempo poder, virtude e “uma silhueta de pé, autoritária e negra”.[5]
Para Michel Pastoreu, a vestimenta negra de Filipe, o Bom, designava o prestígio pessoal que este rei detinha por todo o Ocidente.[6] E, o consumo das vestes pretas tornava-se moda nas cortes renascentistas entre os séculos XV e XVII. Conforme observa Harvey, “Borgonha era poderosa durante o reinado de Filipe, e sua corte e aristocracia influenciavam a moda em toda a Europa. A “ ‘moda da Borgonha’ era conhecida pelo uso do preto nas roupas tanto masculinas quanto femininas. Fica evidente pelas descrições do vestuário que o preto era muito mais popular do que se percebe nas pinturas da vida de Borgonha...”[7]
Enquanto Burckhardt enfocava as rupturas na cultura italiana renascentista, Huizinga chama atenção para a continuidade cultural na passagem do medievo para o moderno. Na cultura indumentária, o primeiro enfoca nos trajes luxuosos italianos nos séculos XV e XVI, presentes nos retratos e iconografias. Huizinga, contudo, salienta as transformações do vestir e elegância nas aparências já no medievo na cultura cortesã e cavalheiresca de Borgonha.
O debate sobre o momento principal do desenvolvimento da moda terá bases nestes dois autores. Há uma vertente dos estudos sobre as vestimentas que enfatiza as modas medievais e outra que enfoca as modas renascentistas. Parte desta discussão está inserida no mito da origem. Ou seja, a moda seria originária da Idade Média Tardia ou do Renascimento? Em síntese, a questão central é: a modernidade das vestimentas seria uma continuidade da Idade Média Tardia da França e Borgonha ou ruptura da Itália renascentista?
De certa forma, Braudel sintetiza as duas visões quando discute as diferentes temporalidades históricas. No caso da moda, haviam mudanças de longa duração e conjunturais. Assim, continuidade e ruptura integram-se na perspectiva histórica braudeliana. Chamando a atenção ao problema do consumo cotidiano do vestuário, Braudel afirma que a indumentária no período Moderno possuía um papel considerável, pois envolve a produção, a circulação mercantil e o consumo das vestes. Dando os primeiros passos na linha da História da Indumentária, o historiador observa que
“a história das roupas é menos anedótica do que parece. Levanta todos os problemas, os das matérias-primas, do processo de fabrico, dos custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais. Variado o traje por toda a parte se obstina em denunciar as oposições sociais (...)”.[8]

As linhas historiográficas da História da Moda e da Indumentária fazem parte no seu conjunto de estudos localizados no fim da Idade Média, ou no fim do Antigo Regime. No entanto, ainda vale ressaltar que essa temática precisa ser analisada com mais profundidade no período da Alta Idade Moderna, ou seja, os séculos XVI e XVII, período esse em que transcorria o processo de mercantilização do Velho Mundo e colonização do Novo.
François Boucher trata de algumas circularidades no modo de vestir, sendo que  para o mesmo,
“Da Espanha vem também [para a Itália] a moda do preto, que predomina no traje masculino, como atestam os retratos pintados por Ticiano. As damas usam preferencialmente roupas verdes ou azuladas ou num púrpura-escuro, mas Lucrecia Bórgia denota uma nítida queda pela combinação do preto com o ouro; uma carta de Laura Bentivoglia a Isabela d’Este (após 1502) descreve-a deitada em sua cama de vestido de seda preta com mangas estreitas deixando passar os punhos de camisa. (...)”.[9]

Havia, portanto, as modas espanholas que se difundiam mesmo para regiões da Inglaterra Tudor, ainda depois da derrota da Incrível Armada, em 1588, com “a propensão à rigidez à solenidade, simbolizada pelo rufo e a vertugade, [com] origem na corte de Filipe II”.[10]
Apesar da maior parte da historiografia apontar a origem da moda no século XIV, Sarah-Grace Heller, no artigo Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles, acredita que o contato entre cristãos e infiéis nas Cruzadas, a partir de 1190, transformava os modos de vestir dos primeiros, por meio das trocas comerciais de tecidos de diferentes técnicas de fabricação, coloração, ornamento e dos intercâmbios culturais com os árabes e bizantinos, que usavam diversas indumentárias. Como exemplo, aponta os têxteis de seda, a cor púrpura do império de Bizâncio, os botins das conquistas de Jerusalém e o enriquecimento do território mediterrânico como o caso da Sicília e da Península Ibérica. [11]
Em outro artigo, intitulado Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval Textile decoration, Sarah-Grace Heller destaca a dificuldade de compreensão da linguagem das roupas em diferentes momentos históricos e a necessidade de realizar uma aproximação dos significados das palavras sobre os têxteis e a indumentária.[12]A autora ainda sugere a necessidade de entender a constituição do trabalho têxtil imbricado com o religioso. A atividade de ofício estava diretamente relacionada com a religiosidade cristã a partir da confecção de tapeçarias com motivos hagiográficos durante os séculos XII e XIII. [13] Essas “roupas exóticas”[14] seriam peças relacionadas ao sobrenatural e ao maravilhoso, pois eram feitas com tecidos do Oriente Médio, originários das Cruzadas, bem como possuíam características religiosas, principalmente, nas formas e no seu consumo em missas, rezas e batalhas contra os infiéis.
No debate historiográfico, destacam-se as transformações no universo da “Clothing Culture, 1350-1650”, obra organizada por Catherine Richardson. Foram realizadas conexões entre as várias esferas de existência para a ampliação do debate, havendo, portanto, relações entre o mundo econômico e cultural. A própria autora observa que as mudanças da moda no Velho Mundo contaram com a participação dos mercadores ingleses e das exportações de produtos laníferos de produção doméstica. Além disso, não se pode esquecer a relevância das relações do corpo  com os artefatos têxteis e indumentários. Como por exemplo, encontram-se nos diferentes modos de cortes dos tecidos presentes nas estatuárias européias, bem como as transgressões sexuais com articulação entre os gêneros. As definições de modos de vestir de homens e mulheres são construções históricas.
Outras características importantes no universo da cultura indumentária dizem respeito às distinções dos modos de vestir entre Católicos e Protestantes. Nota-se a presença das indumentárias como “capital simbólico” no universo da corte. Principalmente, na análise de discurso, salientam-se as transformações em conexão aos gêneros, às roupas, às modas.[15]
Nessa linha de pesquisa, Sheila Sweetinburg, aborda as estratégias de caridade em Kent, durante o século XVI, a partir da leitura de testamentos. A autora quantificou 4.500 documentos, notando que a doação das mulheres era percentualmente maior. Elas doavam suas roupas, geralmente saias e túnicas, para as populações mendicantes. É importante observar a importância da caridade feminina para a comunidade e as redes de solidariedade cristã presentes no catolicismo quinhentista, pois vestir aqueles que estavam praticamente nus era, possivelmente, um dos critérios de salvação das almas.[16]
Nesse sentido, Elizabeth Salter estuda os testamentos em Greenwich durante o início do Quinhentos. Nesse ensaio, descreve os discursos dos testadores e destaca os simbolismos relacionados às escolhas das doações e partilhas dos artefatos segundo as relações familiares e de “amizade”. Refere-se à prática de reformulação dos materiais indumentários para o reaproveitamento e consumo por um novo usuário.[17]
Ao analisar as distinções das indumentárias a partir do status, Blaire Bartram apresenta o debate entre o orgulho e a humildade nos discursos das leis suntuárias dos textos religiosos e das documentações legais. Salienta os valores associados à gentry e aos processos nobiliárquicos. Defende a tese de que as identidades das indumentárias estavam relacionadas às posições sociais. Indica que para a ascensão social, as camadas emergentes deveriam integrar-se aos símbolos da aparência cavalheiresca e cortesã.[18]
Nota-se que a economia indumentária contava com a participação do povo miúdo. A circulação de roupas usadas era comum mesmo entre as camadas dominantes. Existiam, portanto, relações de patronagem e clientela, entre os senhores e os seus vassalos, bem como do senhoriato e dos servos. As doações de vestimentas, por um lado, funcionavam como modos de dominação, controle e hierarquização social. Por outro, como redes de solidariedade e de caridade cristã, como forma de amparar as camadas mais desamparadas. [19]
O trabalho feminino no interior doméstico tornava-se essencial para a produção de tecidos e para o consumo das vestes de toda a Família. A produtividade lanífera tornava-se significativa nos países do Norte, especialmente na Inglaterra, onde a criação de ovelhas foi muito valorizada, assim como em Castela.
Conforme Odile Blanc a origem da moda encontrava-se no século XIV, com a “idade do gibão”, vestimenta descrita nas crônicas cavalheirescas. Essas mudanças, isto é, “enormis novitas”, aconteciam no contexto dos constantes conflitos entre a realeza da França e da Inglaterra, em meio à Peste Negra, à fome e às dificuldades de sobrevivência da maior parte da população européia. Os cronistas destacavam as distinções dos trajes da nobreza e dos servos, dos homens com armas e os “civis” e entre os clérigos e os comuns, sendo os primeiros, predominantemente, críticos aos modos de vestir.[20]
Ao analisar as representações iconográficas das iluminuras medievais, Blanc destaca a temática da vida cortesã e do cotidiano. A partir disso, observa as “novas modas masculinas” das indumentárias militares, que entende como frutos das “fantasias aristocráticas”. Para Blanc, as distinções vestimentárias masculinas e cavalheirescas modificavam as relações corporais. Essa dinâmica corporal masculina, por intermédio das indumentárias, era uma parte da estratégia de manutenção do domínio e do poder dos homens. Os valores de masculinidade dos cavaleiros eram, também, caracterizados pelos modos de vestir.[21]
Na perspectiva das transformações da arte de vestir relacionadas aos gêneros, a historiografia demonstra que a construção do discurso sobre o corpo durante a Época Moderna era importante. Helen Smith explora as descrições textuais dos livros sobre os modos de vestir, havendo uma linguagem das roupas. Dentre os discursos analisados, destacam-se as peças teatrais e suas performances.[22]
Para Andréa Demy-Brow, o discurso sobre o estilo indumentário intensificava-se a partir da “revolução virtual” do vestir europeu por volta de 1340. Segundo a autora, as distinções dos gêneros e as metamorfoses das silhuetas eram principalmente masculinas, com o “dramático” encurtamento dos gibões.[23] Nesse contexto, as leis suntuárias e os cronistas criticavam também, o comprimento das roupas de acordo com o status e gênero. A autora sugere que a corporalidade era modificada a partir do consumo de roupas fabricadas pelos alfaiates por meio de cortes distintos nas indumentárias. Desse modo, estava presente nos discursos como “modos e marcas violentas de criação”. [24]
Ainda nessa linha de pesquisa da análise dos discursos, Elizabeth Hallan trata das “dimensões do gênero”, como um complexo processo de percepções corporais femininas e masculinas, com destaque para as construções grotescas dos corpos femininos, pois estes tinham “maior visibilidade”. [25] Relacionando fontes textuais e visuais, a autora aborda as articulações de certos modos de “corporificação”, ou melhor, personificação dos significados de corpos vestidos e não-vestidos. Salienta a relação das imagens corporais – espirituais e sociais – com os gêneros. Além disso, sugere a possibilidade de uma adaptação da “aparência corpórea” por parte da linguagem textual e imagética.[26]
No Brasil, Gilda de Melo e Souza, tratando do consumo das modas, sobre o prisma sociológico, destaca o papel feminino nos modos de vestir. Para a autora, a silhueta feminina e o espírito da moda atingiam a sociedade aristocrática da corte imperial do século XIX. A autora de O Espírito das roupas ressalta o importante caráter da História da Moda e a necessidade de desenvolver a temática. Entretanto, apesar de estudar a moda no contexto do Oitocentos, propõe uma questão intrigante a respeito das suas transformações: “...se cada vez que o estilo varia a moda cai sob o domínio da arte, o que explica a mudança? O que explica a necessidade constante de renovação, o cansaço ininterrupto das antigas formas?” [27]
À luz da historiografia aliada à museologia e ao estudo das roupas e da cultura material, o Museu Paulista publicou, em 2006, uma coletânea intitulada, Tecidos e a sua conservação no Brasil, na qual se encontra uma série de comunicações que tratam do tema e dos problemas relacionados às roupas, à moda e à indumentária. A maior parte das análises possui uma perspectiva museológica, incidindo sobre a conservação, catalogação e possibilidades de abordagem dos trajes e das indumentárias.[28] Neste conjunto de artigos, é importante destacar o de Kátia Castilho, “Têxteis como documentação da técnica e da estética”, que aponta para a relevância do estudo da moda no conhecimento científico. [29]
Outro trabalho significativo é o de Teresa Cristina Toledo de Paula, “A excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”, no qual enfatiza a presença do mito da ausência de tecidos na História do Brasil, principalmente na Colônia. Sobre este assunto, afirma que “(...) Herdamos e preservamos um repertório de imagens fictícias que raramente são postas em xeque e acabam cristalizando em nós um imaginário significativo sobre os tecidos disponíveis e sua utilização nos séculos precedentes”.[30]
Dentre essas obras, destaca-se a de Heloisa Barbuy, sob a perspectiva da História Urbana e da Cultura Material. A autora trata do comércio e da dimensão do espaço, predominantemente público, dos vestuários femininos e masculinos. As exposições das vitrines de roupas, chapéus, luvas e adereços da São Paulo do século XIX foram marcantes nessa “cultura da moda” no processo de transformação rápida da cidade.[31] 
No campo da Cultura Material e da articulação entre Gênero e Artefato, Vânia de Carvalho aborda o sistema doméstico na cidade de São Paulo. As indumentárias, portanto, passaram a estar dentro da “vitrine de casa” da elite paulistana na passagem do século XIX ao XX.[32]
Apesar de terem como foco o século XIX, portanto, período posterior ao que se pretende analisar, tais análises são de importância fundamental, no caso, pois se situam em linhas de pesquisa que relacionam a cultura vestimentária com a economia têxtil e o contexto mais amplo. Os artefatos têxteis e trajes apresentam-se na História somente em relação à sociedade de um determinado momento. Nesse sentido, os artefatos nunca podem ser estudados isoladamente do conjunto social.
Igualmente relevantes são os trabalhos de Silvia Hunold Lara por abordarem um tema ainda muito pouco estudado no período colonial. Em artigo de 1995, Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815, a autora estuda o vestuário das mulheres negras escravas, as primeiras determinações legais portuguesas sobre o tipo dos trajes e conclui que a sociedade colonial mantinha “a função simbólica do vestuário como marca das distinções sociais”. [33] Em se tratando das relações entre o senhoriato e a escravaria feminina, a autora afirma:
“o olhar branco e senhorial experimentava uma flutuante ambiguidade na identificação do personagem que usava trajes luxuosos: ora parecia como mulher, ora como mulata ou negra, ou simplesmente escrava; ora a distinção de gênero e condição social era simplesmente resolvida pelo uso da palavra negro. Como mulheres, pareciam reunir em si uma somatória de pecados: ao andar à noite pelas ruas quebravam a regra que ligava recato e domesticidade, expunham-se publicamente e eram portanto associadas às prostitutas; por causa disto, senhoras e escravas podiam ser aproximadas, o luxo de uma podia ser visto como indutor da luxúria de outra e vice-versa. Expondo publicamente o poder das senhoras, o séquito de cativas ricamente vestidas acabava, aos olhos de alguns, estabelecendo uma similitude entre mulheres de condições sociais diametralmente opostas”. [34]

Avançando em sua pesquisa sobre a temática, a autora, em outro texto, publicado em 1999, “Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador (Século XVIII)”, chama a atenção para os raros estudos a respeito do vestuário e mais ainda das vestes das cativas. Para Lara, “o uso de brinco, colares e outras jóias-amuletos, tanto por mulheres quanto por homens negros, bem como os balangandãs, por escravas ou livres, revela a presença cotidiana de devoções e cultos ou ainda de significados nem sempre facilmente desvendados pelos seus senhores. (...)”. Como exemplo das jóias ornamentais das escravas africanas, havia as malungas, pulseiras douradas com “motivos geométricos”, que variavam de significado conforme a hierarquia social da cativa em sua origem tribal na África. [35]
Novamente, especialmente no capítulo “Diferentes e Desiguais” da obra Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa, publicada em 2007, Silvia H. Lara volta-se para o tema do vestuário no interior da sociedade escravista. [36] Nessa linha de pesquisa, destaca:
“Revelador dos jogos hierárquicos no interior dos quais as diferenças eram mostradas, o tema das roupas e ornatos torna-se particularmente interessante para a análise que pretenda avançar em busca dos modos de dominação social e das distinções...”. [37]

Retomando o tema da legislação suntuária presente nos outros textos, a autora observa que
“Os principais documentos legais [portugueses] do século XVI e XVII sobre essa questão seguem um mesmo padrão legislativo: proíbem o uso de capuzes, de guarnições de ouro nas armas e selas; determinados tipos de tecidos para o vestuário e alfaias domésticas, conforme a condição social das pessoas, além de estipular o número de criados e a quantidade de gente nos vários séquitos particulares, etc”. [38]

As proibições de uso de determinadas vestes eram marcadas pela afirmação das distinções sociais presente nas roupas. Exemplo disso, as duas leis régias de 1696, proibindo as cativas africanas de trajarem “vestidos de seda, cambraia, holandas com rendas e brincos de ouro ou prata” .[39]
Na perspectiva da autora, as mulheres senhoriais eram vistas como “recatadas”, “reclusas” e “vestidas com mantos de baeta”. E, por isso diferenciavam-se das cativas, não pela ostentação, mas pelo séquito de acompanhantes. As escravas que, no entanto, saíam para as ruas sozinhas de maneira ostensiva eram entendidas como “símbolo do pecado”. [40]
Além das questões relacionadas à gênero, salientam-se as análises voltadas  ao universo das cores. Carole Colier Frick, analisando as vestimentas das famílias das elites florentinas na renascença, destaca o processo do tingimento dos tecidos fazia-se a partir de um conhecimento de longa duração. As cores aos poucos passavam a ter novas pigmentações e tonalidades a partir dos grandes movimentos comerciais. A técnica da produção têxtil ganhava em variedades de produtos originários de diferentes partes do globo.
As tinturas violeta e carmesim coloriam os mais caros brocados de sedas florentinos durante o Quatrocentos. O vermelho florentino poderia tanto marcar grupos discriminados como judeus e prostituras, quanto as togas clericais da cúrias romanas.[41]
No início do século XVI, quando Lucrecia Borgia casava-se com a casa de Este, levava trinta vestidos, a maioria de veludo negro. Frick considera que esta cor tornava-se predominante na moda das cortes renascentistas. Contudo, em Florença, a moda do negro não predominava em toda indumentária, mas em algumas peças.[42]
Segundo a mesma, na tradição florentina, o azul, tradicionalmente significava lealdade e o branco da Virgem Maria, pureza. As cores, portanto, passavam a ter nomes da moda em um momento que muitas vezes as tornavam exóticas. A cor escura próxima do negro chamava-se morello, o cinza, bigio, o marrom avermelhado, terra di Egito, bem como o rosa, rosa di zaffrone, ou ainda o antigo rosa turco, rosa secca di turchino.[43]
Abordando a temática das cores, Michel Pastoreau, em Bleu: Histoire d’une couleur, afirma que o tingimento de azul possuía no mundo antigo, um alto preço, sendo originário do índigo, proveniente do Oriente, bem como o “lapis lazuli”, pedra originária de regiões como atualmente Sibéria, Afeganistão, Tibet e China, ou ainda o “guède”, um pastel de tintureiro, do qual extraíam o azul. Porém, o branco, o preto e o vermelho eram privilegiados na liturgia medieval. O azul – “blau” na raiz germânica e “lazaward” na etimologia árabe permaneceu até o século XII distante da liturgia cristã.[44]
O índigo foi introduzido na Europa, segundo Sarabia Viespo, por Marco Polo no final do século XVI. No século seguinte, constituía-se o grêmio de tintureiro de Florença. No Quinhentos, os comerciantes venezianos procuravam corantes, tecidos e outros produtos luxuosos asiáticos.[45]
Assim, os artefatos exóticos orientais circulavam entre as camadas mais abastadas européias, transformando o conhecimento sobre regiões distantes, bem como a cultura visual e material dos consumidores destes artefatos. Destaca-se ainda as diferentes  construções imagéticas da Ásia, África, América e de regiões mais distantes dos grandes centros urbanos da Europa, como Turquia, Polônia, Moscow, ou como notava Vecellio, Mosco.[46]



[1]Jacob Burckhardt. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 267-268.
[2] Idem.
[3] Johan Huizinga. O outono da Idade Média. Estudo sobre as formas de vida e pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 430.
[4] Idem, pp. 470-471.
[5] John Harvey. Homens de Preto. São Paulo: Unesp, 2003, pp. 70-72.
[6] Michel Pastoreau, Noir. Histoire d’une coloir. Paris: Éditions du Seil, 2008, p. 124.
[7] Jonh Harvey. Op Cit., p. 72.
[8] Fernand Braudel. Civilização material, economia e capitalismo. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, (2ª edição),1997, p. 281.
[9] François Boucher. História do Vestuário do Ocidente. São Paulo: CosacNaify, 2010, p. 184.
[10] Idem, p. 202.
[11]Sarah-Grace Heller. Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp. 103-119.
[12]Para tanto, a abordagem do tema deve valer-se da categoria gênero ao serem analisados textos literários como os de Chrétien de Troyes (c. 1165-70) e Marie de France. Sarah-Grace Heller. Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval Textile decoration. In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.5, 2009, pp.15-16.
[13] Idem, pp. 20-35.
[14] Idem, p. 35.
[15] Catherine Richardson. Introduction. In: Catharine Richardson (Ed.) Clothing Culture, 1350-1650. ASHGTE, 2004, pp. 1-25.
[16] Sheila Sweetinburg. Clothing the naked in Late Medieval Kent. In: Catherine Richardson (org.). Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp. 108-121.
[17] Elizabeth Salter. Reworked material: discourses of clothing culture in Early Sixteenth-Century Greenwich. Catherine Richardson. Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp. 179-191.
[18] Claire Bartram. Social fabric in Thynne’s debate between Pride and Lawliness. In: Catherine Richardson. Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp. 137-149.
[19] Joanna Crawford. Clothing Distribuitions and social relations c. 1350-1500. In: Catherine Richardson. Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp.158-159.
[20] Odiele Blanc. From Battlefield to court: the invention of fashion in fourteenth century. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp. 157-159.
[21] Idem, pp. 165-170.
[22] Helen Smith. ‘This one poore blacke gowne lined with white’: the clothing of the Sixteenth-Century English Book. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 195-209.
[23] Andrea Denny-Brown. Rips and Slits: the torn garment and Medieval self. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, p. 224.
[24] Idem, p. 230.
[25] Elizabeth Hallam. Speaking to Reveal: the body and acts of ‘exposure’ in Early Modern Popular Discourse. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 239-262.
[26] Idem, p. 243.
[27] Gilda de Mello e Souza. O espírito das roupas. A moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, (1ª edição 1987), p. 87.
[28] Teresa Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006.
[29] Kátia Castilho. “Têxteis como documentação da técnica e da estética”. In: Teresa Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006, 123-126.
[30] Teresa Cristina Toledo de Paula. “A excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”. In: Teresa Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006, pp. 80-82.
[31] Heloisa Barbuy. A cidade-exposição. Comércio e Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006, p. 203.
[32] Vânia Carneiro de Carvalho. Gênero e Artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008, p. 219.
[33] Silvia Humold Lara. Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815. in: Latin American Studies Association, 1995, p. 9. (mimeo)
[34] Idem, p. 16.
[35] Silvia Hunold Lara. Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador (Século XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Brasil, Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 184-185.
[36] Silvia Humold Lara. “Diferentes e Desiguais” In: Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 79-125.
[37] Idem, p. 87.
[38] Idem, p. 88.
[39] Idem, p. 96.
[40] Idem, p. 114.
[41] Carole Collier Frick. Families, fortunes and fine clothing. Blatimore: The Hohns Hopkins university Press, 2002, p. 174.
[42] Idem, p. 175.
[43] Idem, p. 175-177.
[44] Michel de Pastoreau. Bleu. Histoire d’une coleur. Paris: Ed. de Suel, 2006, pp. 1-42.
[45] Maria Justina Sarabia Viejo. La Grana y el añil. Técnicas tintóreras en México y América Central. Sevilla: Fundación el Monte, 1994, p. 16.
[46]Cesare Vecellio. Habitus Antichi et Moderni. The clothing of Renaissance world. London, U.K.: Tames & Hudson, 2008, pp. 607-408.