domingo, 10 de março de 2013

PEQUENAS NOTAS SOBRE RELIGIOSIDADE NO FINAL DO BRASIL COLONIAL


No ano de 1785, em Cacheoira, no Recôncavo Baiano seis escravos eram processados por Calundu. O historiador João José Reis, analisando esta devassa civil, observa que a região era entreposto um importante de escravos africanos para as Minas Gerais, onde esta atividade religiosa era mais presente.
O calundu era comandado por vofunô Sebastião de Guerra, o mais idoso dos presos e segundo a hipótese levantada por Reis, a religiosidade sobrevivia graças à discrição e a aliança com pessoas mais “privilegiadas”(p. 71). O autor, contudo, afirma que “por mais imprecisas que sejam essas descrições, elas confirmam que a casa de Sebastião tinha as características essenciais de um centro cerimonial, que não se tratava da morada de um isolado curandeiro, mas um espaço onde desenrolava-se um conjunto de práticas religiosas de tradição africana. (...)” Estas práticas aproximavam-se do universo mágico como forma de sobrevivência da tradição africana.
Dentre os artefatos encontrados, na casa de Sebastião destaca-se a “flecha” diabolizada pelas autorizadas e um “pauzinho”, mas não há descrições muito detalhadas destes objetos votivos. Possivelmente, tinham significados descritos como maléficos e diabólicos para a ideologia colonial.
Contudo, as referencias às mezinhas, patuás e outros elementos religiosos africanos traduzem a presença de crenças distintas dos santos e objetos milagrosos da cultura cristã europeia. Laura de Mello e Souza aponta uma série de referências a este universo mágico na cultura religiosa popular na América portuguesa. Era a religiosidade afro americana lida pelas autoridades civis e eclesiásticas coloniais, traduzindo o momento de distanciamento da metrópole e das referencias católicas.
Na colônia, as superstições europeias antigas adquiriam novas características dada a presença e crenças dos povos indígenas e africanos, sendo o espaço, portanto, da heterodoxia.
Homem florentino humanista entre os colonos, encontrava-se Rafael Olivi. Leitor de Platão, criticava o domínio do império da religião e acabou sendo preso por heresia em 1584 e teve seus livros confiscados. (Stuart, p. 277). Dentre os livros, descritos por Stuart, encontrava-se O Príncipe, de Maquiavel e a Guerra dos Judeus de Flávio Josefo.
Apesar das perseguições religiosas na América portuguesa, com a constituição das visitações e das relações de poder entre as diferentes hierarquias sociais, Stuart destaca a fluidez religiosa no interior da sociedade escravista colonial, Stuart afirma que “As divisões entre cristãos-velhos e cristãos novos continuaram a ser um elemento de importante diferenciação social no Brasil colonial de grandes contingentes de escravos africanos e de sua descendência. Os africanos trouxeram consigo elementos culturais e religiosos que se combinaram com as crenças e práticas transpostas pelos portugueses, inclusive muitas práticas ou cultos populares que o clero considerava supersticiosos, impróprios ou heterodoxos. Como mostram várias fontes e diversas denúncias à Inquisição portuguesa, as crenças e práticas africanas se distribuíam amplamente por toda a população branca e negra. A difusão dessas crenças ocorria desde a chegada dos africanos em Portugal, no século XV, mas no contexto da sociedade escravista brasileira diversos aspectos das práticas africanas tinham se tornado muito comuns não só entre os escravos e seus descendentes mas entre a sociedade como um todo. O resultado foi uma considerável fluidez e ambiguidade social e religiosa”. (STUART, pp. 300-301).


Concluindo, a historiografia sobre religião e religiosidade na América portuguesa tem enfocado, ora as instituições religiosas como a Companhia de Jesus, o Tribunal do Santo Ofício, a legislação presente na Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, ora a religiosidade popular como sabás, rezas, mandingas e calundus.
No que se refere aos calundus de Salvador no século XVII, pouco se encontrou na historiografia. João José Reis, estudando este ritual, no decênio de 1980, encontra o poema de Gregório de Matos:
“Que de quilombos que tenho
Com mestres superlativos,
Nos quais se ensina de noite
Os calundus e feitiços”. (REIS, p. 62)

Bibliografia
REIS, João José. Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto da Cachoeira, 1785. In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v. 8, n. 16, 1988, pp. 57-81.
Devassa contra um terreiro de Calundu em Cachoeira (transcrição de João José Reis). In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v. 8, n. 16, 1988, pp. 233-250.
MOTT, luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS, Fernando. (dir.). História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 156-220.
REIS, João José. Magia gegê na Bahia: a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785. In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v.8, n. 16, 1988, pp. 57-82.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, (1a ed. 1986), 1996.
SCHWARTZ, Stuart B. Brasil: salvação em uma sociedade escravocrata. In: Cada um a sua lei. Tolerância religiosa e salvação no mundo ibérico. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 269-312.