No ano de
1785, em Cacheoira, no Recôncavo Baiano seis escravos eram processados por
Calundu. O historiador João José Reis, analisando esta devassa civil, observa
que a região era entreposto um importante de escravos africanos para as Minas
Gerais, onde esta atividade religiosa era mais presente.
O calundu
era comandado por vofunô Sebastião de Guerra, o mais idoso dos presos e segundo
a hipótese levantada por Reis, a religiosidade sobrevivia graças à discrição e
a aliança com pessoas mais “privilegiadas”(p. 71). O autor, contudo, afirma que
“por mais imprecisas que sejam essas descrições, elas confirmam que a casa de
Sebastião tinha as características essenciais de um centro cerimonial, que não
se tratava da morada de um isolado curandeiro, mas um espaço onde desenrolava-se
um conjunto de práticas religiosas de tradição africana. (...)” Estas práticas
aproximavam-se do universo mágico como forma de sobrevivência da tradição
africana.
Dentre os
artefatos encontrados, na casa de Sebastião destaca-se a “flecha” diabolizada
pelas autorizadas e um “pauzinho”, mas não há descrições muito detalhadas
destes objetos votivos. Possivelmente, tinham significados descritos como
maléficos e diabólicos para a ideologia colonial.
Contudo,
as referencias às mezinhas, patuás e outros elementos religiosos africanos
traduzem a presença de crenças distintas dos santos e objetos milagrosos da
cultura cristã europeia. Laura de Mello e Souza aponta uma série de referências
a este universo mágico na cultura religiosa popular na América portuguesa. Era
a religiosidade afro americana lida pelas autoridades civis e eclesiásticas
coloniais, traduzindo o momento de distanciamento da metrópole e das
referencias católicas.
Na
colônia, as superstições europeias antigas adquiriam novas características dada
a presença e crenças dos povos indígenas e africanos, sendo o espaço, portanto,
da heterodoxia.
Homem florentino humanista entre os
colonos, encontrava-se Rafael Olivi. Leitor de Platão, criticava o domínio do
império da religião e acabou sendo preso por heresia em 1584 e teve seus livros
confiscados. (Stuart, p. 277). Dentre os livros, descritos por Stuart,
encontrava-se O Príncipe, de Maquiavel e a Guerra dos Judeus de Flávio Josefo.
Apesar das
perseguições religiosas na América portuguesa, com a constituição das
visitações e das relações de poder entre as diferentes hierarquias sociais,
Stuart destaca a fluidez religiosa no interior da sociedade escravista
colonial, Stuart afirma que “As divisões entre cristãos-velhos e cristãos novos
continuaram a ser um elemento de importante diferenciação social no Brasil
colonial de grandes contingentes de escravos africanos e de sua descendência.
Os africanos trouxeram consigo elementos culturais e religiosos que se
combinaram com as crenças e práticas transpostas pelos portugueses, inclusive
muitas práticas ou cultos populares que o clero considerava supersticiosos,
impróprios ou heterodoxos. Como mostram várias fontes e diversas denúncias à
Inquisição portuguesa, as crenças e práticas africanas se distribuíam
amplamente por toda a população branca e negra. A difusão dessas crenças
ocorria desde a chegada dos africanos em Portugal, no século XV, mas no contexto
da sociedade escravista brasileira diversos aspectos das práticas africanas
tinham se tornado muito comuns não só entre os escravos e seus descendentes mas
entre a sociedade como um todo. O resultado foi uma considerável fluidez e
ambiguidade social e religiosa”. (STUART, pp. 300-301).
Concluindo,
a historiografia sobre religião e religiosidade na América portuguesa tem
enfocado, ora as instituições religiosas como a Companhia de Jesus, o Tribunal
do Santo Ofício, a legislação presente na Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, ora a religiosidade popular como sabás, rezas, mandingas
e calundus.
No que se
refere aos calundus de Salvador no século XVII, pouco se encontrou na
historiografia. João José Reis, estudando este ritual, no decênio de 1980,
encontra o poema de Gregório de Matos:
“Que de quilombos que tenho
Com mestres superlativos,
Nos quais se ensina de noite
Os calundus e feitiços”. (REIS, p.
62)
Bibliografia
REIS, João José. Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto da
Cachoeira, 1785. In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v. 8, n. 16,
1988, pp. 57-81.
Devassa contra um terreiro de Calundu em Cachoeira (transcrição de João
José Reis). In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v. 8, n. 16, 1988,
pp. 233-250.
MOTT, luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu.
In: NOVAIS, Fernando. (dir.). História da vida privada no Brasil. Cotidiano e
vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
156-220.
REIS, João José. Magia gegê na Bahia: a invasão do Calundu do Pasto de
Cachoeira, 1785. In: Revista Brasileira de História. Escravidão, v.8, n. 16,
1988, pp. 57-82.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. Demonologia e colonização.
Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo:
Companhia das Letras, (1a ed. 1986), 1996.
SCHWARTZ, Stuart B. Brasil: salvação em uma sociedade escravocrata. In:
Cada um a sua lei. Tolerância religiosa e salvação no mundo ibérico. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, pp. 269-312.