sábado, 16 de dezembro de 2017

"Historicidade" em HARTOG, François. Regime de Historicidade. Presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

     “Historicidade’, por que? Que Hegel a Ricoeur, passando por Dilthey e Heidegger, o termo remete a uma longa e pesada história filosófica. Pode-se enfatizar seja a presença do homem para si mesmo enquanto história, seja sua finitude, seja sua abertura para o futuro (com o ser-para-a morte em Heidegger). Retenhamos aqui que o termo expressa a forma de condição histórica, a maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo. É legítima, observarão, falar de historicidade antes da formação do conceito moderno de história, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX? Sim, e por ‘historicidade’ se entender esta primeira experiência de estrangment , de distância de si para si mesmo que, justamente, as categorias do passado, presente e futuro permitem a aprender a dizer, ordenando-a e dando-lhe sentido. Assim, remontando bastante, até Homero, é a experiência que Ulisses faz diante do barbo dos feácios contando as façanhas: ele se encontra repentinamente confrontando com a incapacidade de unir o Ulisses glorioso que ele era (aquele que tomou Tróia) ao náufrago que perdeu tudo, até seu nome, que ele é agora. Falta-lhe justamente a categoria de passado, que permitiria reconhecer-se neste outro que é, no entanto, ele mesmo. É também, no início do século V, a experiência (diferente) relatada por Santo Agostinho. Lançado em sua grande meditação sobre o tempo, no livro XI das Confissões, ele se encontra inicialmente incapaz de dizer, não em um tempo abstrato, mas esse tempo que é ele, sob esses três modos: a memória (presente do passado), a atenção (presente do presente) e a expectativa (presente do futuro). Podemos nos servir da noção de regime de historicidade antes ou independente da formulação do conceito moderno de história, tal como a delineou bem o historiador alemão Reinhart Koselleck” (p. 12)
        “O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico (tal como Napoleão, que se encontrou entre o regime moderno, trazido pela Revolução, e o regime antigo, simbolizando pela escolha do Império e pelo casamento com Maria-Luisa da Áustria), ou a de um homem comum; com ele, pode-se atravessar uma grande obra ( literária ou outra), tal como as Mémoires d’autre-tombe de Chateaubriand Conde ele se apresenta como o ‘nadador que mergulhou entre duas margens do rio do tempo’), pode-se questionar a arquitetura de uma cidade, ontem e hoje, ou então comparar as grandes escansões em relação com o tempo de diferentes sociedades próximas ou distantes. E, cada vez, por meio de atenção muito particular dando aos momentos de crise do tempo, e às suas expressões, via-se produzir mais inteligibilidade”.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

RICOEUR, Paul. Objetividade e subjetividade na História. In: História e Verdade. Rio de Janeiro: Cia. Forense, 1968, pp. 23-44

           "(...) A história faz o historiador tanto quantoo historiador faz a história. Ou antes, o mister do historiador faz a história e o historiador. Outrora, impunha-se a razão ao sentimento, à imaginação, hoje, reintroduzimos de certo modo a imaginação e sentimento na racionalidade pela qual optou o historiador que faz com que a linha de clivagem passe pelo próprio cerne do sentimento e da imaginação, cindindo aquilo que eu chamaria um eu de pesquisa e um eu patético: o eu do ressentimentos, dos ódios, dos requisitórios. Ouçamos uma última vez Marc Bloch ‘compreender não é julgar’. (...)” (p. 34)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O conceito de História Universal (1831) de Ranke (1795-1886): Notas

          Em O conceito de História Universal (1831) Leopold von Ranke (1795-1886) afirma suas bases para o conhecimento histórico, salientando  o seu “amor à verdade” e à “investigação documental”. Para o mito do pai da História, 
        “A História se diferencia das demais ciências porque ela é, simultaneamente, uma arte. Ela é ciência, na medida em que recolhe, descobre, analisa em profundidade; ela é arte na medida em que representa e torna a dar forma ao que é descoberta, ao que é aprendido”. (RANKE, p. 202. Aud. MARTIS, 2010)
        Ainda de acordo com Ranke, neste “paradigma documental”, quanto mais investigada com análise de fontes e pesquisa, mais “livremente nossa arte se movimenta”. (Idem, p.209)
        A particularidade da História destaca-se na compreensão do objeto e na busca da sua verdade. Também conforme Ranke,
“(...) Caso a arte histórica for capaz de infundir-lhe vida; e de reproduzir com aquela parcela de força poética que não inventa algo novo, mas apenas reproduz o que é captado e compreendido em suas feições verdadeiras, então, como dizíamos no início, ela seria capaz de unificar ciência e arte, de juntar ambas em seu próprio elemento”. (Idem, p. 213)
MARTINS, Estevão de Resende. História Pensada. Teoria e Método da Historiografia Europeia do século XIX. São Paulo. Contexto, 2010.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

NOTAS SOBRE O RENASCIMENTO. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA

Jacob Burckhardt, em A cultura do Renascimento na Itália, obra publicada em 1865, discute o aparecimento do Renascimento no século XIV.A partir da abordagem de Burckhardt, questiona-se em que medida este período foi uma ruptura ou uma continuidade com a cultura medieval. 
E, para entender este processo e debater isto, cita-se o próprio Burckhardt: “O Renascimento não teria se configurado no elevado e universal necessidade histórica que foi se pudesse abstrair tão facilmente dessa Antiguidade”. O autor insiste que “não foi a Antiguidade sozinha, mas sua estreita ligação com o espírito italiano presente a seu lado, que sujeitou o mundo ocidental. É desigual a liberdade que nessa aliança, nesse espírito observou para si, parecendo amiúde muito pequena, quando se examina, por exemplo, a literatura neolatina. Nas artes plásticas, no entanto, em várias outras esferas, na dimensão é notável, fazendo com que a aliança entre duas longínquas épocas culturais de um mesmo povo se revele uma, porque autônoma em suas partes, e, por isso, legitima e fecunda. O restante do Ocidente pôde estudar de que maneira repelir o impulso proveniente da Itália, ou como apropriar-se total ou parcialmente dele. Ante deste último caso se deu, poupem-se nos as lamentações acerca do declínio precoce de nossas concepções e manifestações culturais medievais: tivessem elas tido força suficiente para se defender, estariam ainda vivas, tivessem estes espíritos elegíacos e saudosos de passar uma única hora em meio delas. É certo que, ante processos históricos de tamanha envergadura, muito desses nobres botões pereceram sem ver assegurado o florescimento imorredouro na tradição e na poesia; nem por isso, todavia, é lícito desejar que o processo, em sua totalidade não tivesse ocorrido. Tal processo consiste no fato de que, paralelamente à Igreja, que até então mantivera o Ocidente coeso (e não lograria continuar a fazê-lo por muito mais tempo), sugere uma nova força espiritual que, espraiando-se a partir da Itália, se torna a atmosfera vital para todo europeu de maior instrução. A crítica mais severa que se pode externar desse processo é aquela referente a se caráter tão popular, ou seja, à fatal separação entre cultos e incultos que então se estabeleceu em toda a Europa. Tal crítica perde, porém, seu valor tão logo nos vemos obrigados a admitir que essa mesma questão hoje ainda que claramente percebida, não pode ser alterada. Além disso, já há tempos essa separação não se revela tão cruel e inexorável. Ali, afinal, o mais artístico de seus poetas, Tasso, anda também nas mãos dos mais pobres”. (BURCKHADT, p. 139)
Analisando a recepção da Antiguidade no pensamento renascentista humanista, Burckhadt declara que “a Antiguidade grego romana, que desde o século XIV intervém tão poderosamente na vida italiana – enquanto suporte e base da cultura, enquanto meta e ideal de existência e, em parte, também como nova e consciente reação ao já existente - , havia muito tempo vinha exercendo uma influência parcial sobre toda a Idade Média, inclusive fora da Itália. Aquela erudição representada por Carlos Magnus constituía essencialmente um renascimento, em contraposição à barbárie dos séculos VII e VIII, e nem podia ser diferente. Da mesma maneira como, além dos fundamentos formais herdados da Antiguidade, notáveis imitações diretas dos antigos imiscuem-se na arquitetura românica do Norte, também o conjunto do saber monástico absorvera uma grande massa de elementos oriundos dos autores romanos, e mesmo seu estilo, a partir de Eimbard, não permanece imune à imitação”. (Idem, p. 140)
E, o autor avança afirmando que, “na Itália, entretanto, diferentemente do que ocorre no Norte, a Antiguidade desperta novamente. Tão logo a barbárie tem fim, a consciência do próprio passado faz-se novamente presente em um povo ainda parcialmente ligado à Antiguidade; ele celebra e deseja reproduzi-la. Fora da Itália, o que ocorre é uma utilização erudita e refletida de elementos isolados da Antiguidade; dentro dela, trata-se de uma objetiva tomada de partido ao mesmo tempo erudita e popular pela Antiguidade de uma forma geral, uma vez que esta constitui ali a lembrança da própria grandeza de outrora. A fácil compreensibilidade do latim, o montante de recordações e monumentos ainda presentes, estimula decisivamente esse desenvolvimento. Dele e de sua interação com o espírito italiano que se alterou com o passar do tempo – com a instituição do Estado Germano-Lombardo, com a cavalaria comum a toda a Europa, com as demais influencias culturais profundas do Norte, com a religião e a Igreja – surge então, o novo todo: o moderno espírito italiano, destinado a tornar-se o modelo decisivo para todo o Ocidente” (BURCKHADT, pp. 140-141).
Continuando sua análise do Renascimento, dividindo a histórias dos “povos” Ocidentais entre um período de “barbárie”, de Renascimento da Antiguidade Clássica e do subsequente advento da “modernidade”, Burckhardt declara que “de qualquer forma, o antigo se manifesta nas artes plásticas, tão logo finda a barbárie, verifica-se nitidamente nas edificações toscanas do século XII – aquele que deu o tom de todo um gênero de poesia latina de então – tenha sido um italiano. Referimo-nos ao autor das melhores canções do assim chamado Carmina Burana. Uma alegria sem entraves pela vida e seus prazeres, sob a proteção dos antigos deuses pagãos, que ali aparecem, flui uma magnífica torrente de suas estrofes rimadas. Quem as lê de uma só vez dificilmente poderá negar a impressão de que ali fala um italiano, provavelmente da Lombardia; evidências específicas corroboram ainda essa impressão. Em certa medida, essas poesias latinas do clerici vacantes do século XV, juntamente com grande e notável frivolidade, são um produto do conjunto da Europa. Mas quem compôs a canção A Estuans Interius este não foi, presume-se, alguém oriundo do Norte, nem tampouco era esta a origem do sibarita refinado e observador a quem devemos Dim Riance vitrea sera lampas oritur. O que aqui se verifica é um renascimento da visão de mundo dos antigos, tomado ainda mais evidente pelo uso da rima medieval. (...)”. O autor reafirma a relevância do Renascimento quando declara que este “não significa imitação ou compilação fragmentária, mas sim o nascer de novo, e este nascer de novo encontra-se, na realidade naqueles poemas do clerigus desconhecidos do século XII” (BURCKHARDT, p. 141)
Para Burckhardt, a “grande e geral tomada de partido dos italianos pela Antiguidade começa, no entanto, apenas no século XIV. Para tanto foi necessário um certo desenvolvimento da vida municipal, desenvolvimento este que se deu somente na Itália e naquele momento: a convivência sob um mesmo teto e a afetiva igualdade entre nobres e burgueses, a formação de um meio social comum que sentia necessidade de educar-se e dispunha de tempo e meios para tanto. Tal educação, porém, tão logo pretendesse libertar-se das fantasias do mundo medieval, não poderia subitamente abrir caminho até o conhecimento do mundo físico e intelectual através de mero empirismo; ela necessitava de um guia, e foi enquanto tal que a Antiguidade Clássica, com toda a sua enorme bagagem de verdades objetivas e luminosas em que as áreas do conhecimento, se apresentou. Absorve-se-lhe, então forma e substância com gratidão e admiração, tornando-a o conteúdo central de toda a educação. A situação geral da Itália era também favorável a isso. O império medieval, desde o declínio dos Hohenstaufehn, renunciara a ela, ou feria-se para Avignon, e os poderes efetivamente eram, em grande parte, violentos e ilegítimos. O espírito que despertou para a consciência, por sua vez, estava a procura de um novo e sólido ideal, de modo que a falsa imagem e o postulado de uma dominação mundial romano-italiana apoderam-se da imaginação popular, intentando mesmo sua realização prática na figura de Cala Di Rienzi. (...) A despeito disso, para o sentimento nacional, a lembrança da Antiga Roma não constituía absolutamente um suporte desprovido de valor. Armados novamente de sua cultura, os italianos logo se sentiram, de fato, a mais avançada nação do mundo”. (Idem, p. 42)
Burckhardt analisa o Renascimento Italiano e seu humanismo, a partir da formação de uma cultura italiana e com o sentimento de “nação” dos seus membros. Importante para o retorno da Antiguidade Clássica foram dentre outros, as ruinas romanas, os triunfos romanos do século XIV, narrados por Petrarca e  retomando o período clássico dos imperadores romanos. (...)” (Idem, p. 142).

François Dosse, pensando na relação entre História e a Filosofia da História, declara que os historiadores humanistas retomaram o trabalho de Heródoto, pois segundo o mesmo, “o descobrimento do Novo Mundo, a multiplicação das viagens, a importância dada à alteridade nesse começo de modernidade oferecem um contexto mais favorável à recepção da obra de Heródoto”. (DOSSE, 2012, p. 13). Ademais, neste momento, os historiadores humanistas começavam a lançar um “método crítico das fontes. O humanismo convida a um retorno aos clássicos, ao gosto pelo antigo e a um olhar deslumbrado diante dos textos dos historiadores gregos e romanos. O enorme sucesso de Plutarco e de seu Vidas paralelas, traduzido para o francês em 1559, atesta este entusiasmo. Vinte anos depois, Montaigne dirá que ele é o ‘breviário das damas’ e confessa nos Ensaios ‘Plutarco é meu homem’”. (Idem, p. 21) Mas é com Lorenzo Valla que se dará a “Revolução historiográfica”, conforme Dosse. 
“Podemos considerar que o grande e decisivo acontecimento no abalo da noção de verdade ocorreu quando Lorenzo Valla conseguiu estabelecera falsidade da doação de Costantino. Esse documento fundamental na partilha entre autoridade papal e imperial dizia que o imperador Constantino deu ao papa Silvestre a posse de Roma e da Itália e aceitou a autoridade temporal do Vaticano sobre o Ocidente cristão. Essa demonstração se tornou a pedra angular do método crítico. Filólogo, Valla dedicou seus trabalhos ao estabelecimento de uma gramática histórica da língua latina. Iniciou por volta de 1440 a crítica da doação de Constantino, quando estava na corte do rei de Nápoles, Afonso de Aragão, e gozava da proteção do príncipe”. (Idem, p. 21)
Dosse também afirma, “Podemos avaliar como, atacando a autoridade mais eminente, isto é, o papado. Valla realiza uma verdadeira revolução historiográfica. De fato, ele consegue substituir a autenticidade fundada na autoridade pela autoridade fundada na verificação e abre um imenso campo de investigação, graças a esse novo igualador de validade que não protege mais as massas de arquivos, até então à sombra da hierarquia dos poderes. Os textos tornam-se iguais de direito e, portanto, submetidos todos eles ao olhar crítico. O efeito dessa descoberta é considerável, tanto no plano jurídico quanto no teológico, pois o questionamento de um texto que pertence ao direito canônico inaugura a discussão possível dos textos sagrados, até então fora do debate da controvérsia”. (Idem, pp. 24-25)
O avanço na ideia de história, entre os humanistas, ocorreu com La Popelinière (1541-1605), conforme Dosse. Este humanista nobre francês acreditava que “a universalidade” residia “na capacidade interpretativa do historiador. Ora, este deve livrar-se dos pontos de vista singulares, dos campos exclusivos, como o político ou militar, para abordar o real histórico em todos os seus estados, sem reduzir arbitrariamente a perspectiva histórica. Assim, a história pode e deve ser completa”. (Idem, p. 52)
Na perspectiva de buscar uma história ideal Popelinière acreditava que “depois de ter delimitado o seu assunto, o historiador que visa ao universal, ao geral, deve adotar uma atitude filosófica para abordar as fontes documentais”. (Idem, p. 53) Neste sentido, a partir de Popelinière florescia uma corrente historicista em que havia uma fissura entre o passado e o presente, apontando, assim, para a modernidade. Essa corrente historicista influenciara os juristas e os filólogos. Ademais, o historicismo longe de ser cético, acreditava na possibilidade de “escrever uma história cada vez mais científica”. (Idem, p. 54)
As escavações renascentistas continuavam sob a proteção papal. Rafael rogava a Julio II que protegesse os remanescentes da Antiguidade, iniciando os primeiros trabalhos de uma certa “arqueologia”, conforme novamente Burckhardt. (Burckhardt. Op. Cit, pp. 147-148)
Os autores da Antiguidade marcavam o conhecimento do período renascentista, havendo, principalmente a partir do século XV, a construção de bibliotecas e a preocupação de tradução de textos gregos e do latim para as línguas “modernas”. Burckhardt observa que “ainda monge, o papa Nicolau V endividou-se para comprar manuscritos ou mandar copiá-los; já naquela época, ele professava abertamente as duas grandes paixões do Renascimento: os livros e as edificações”. (Idem, p. 150)
Mais famosa é a biblioteca dos Médici que chegava com Niccolo Niccoli ter 800 livros. Também a Biblioteca de Urbino, produzida pelo famoso Frederico de Montefeltro teve a sua importância. (Idem, pp. 151-152) 
Segundo o mesmo,  “Autores mais modernos lamentam a miúde que os germes de uma cultura incomparavelmente mais autônoma e aparentemente italiana em sua essência, como os que se manifestaram por volta de 1300 em Florença, tenha sido, posteriormente, tragados por completo pela torrente do humanismo. Argumentam eles, que, àquela época em Florença, todos podiam ler, que até mesmo os arrieiros podiam contar as canzoni de Dante e que os melhores manuscritos italianos de que ainda dispomos teriam pertencido originalmente a artesãos florentinos; teria sido possível então – dizem eles o surgimento de uma enciclopédia popular (...)”. Ademais, “tudo isso teria tido por base de uma força e firmeza de caráter resultante da participação de todos os negócios de Estado, do comércio, das viagens e, principalmente, da sistemática eliminação de todo o ócio – fatores que vicejavam na Florença de então. Além disso – prossegue a argumentação – os florentinos eram à época respeitados e de grande serventia no mundo todo, não em vão sendo chamados pelo papa Bonifácio VIII, naquele mesmo ano, o quinto elemento. A presença mais forte do humanismo a partir de 1400, teria, pois, atrofiado esse impulso nacional, na medida em que se passou a esperar exclusivamente da Antiguidade a solução para todo e qualquer problema, permitindo-se, além disso, que a literatura fosse absorvida pela mera citação; a própria perda da liberdade estaria relacionada a isso, na medida em que tal erudição repousaria numa servidão à autoridade, sacrificando o direito municipal ao romano, já em razão disso, procurando e encontrando em favor dos déspotas”. (Idem, p. 156)
Dentre os maiores expoente estava Dante, “que foi e permaneceu sendo aquele que, pela primeira vez e de maneira enfática, trouxe a Antiguidade para o primeiro plano da vida cultural. Na Divina Comédia, é verdade, ele não dispensou tratamento equânime aos mundos antigos e cristãos, mas os situa, continuamente em planos paralelos; assim como, em seus primórdios, a Idade Média reunia modelos e anti modelos extraídos das histórias e figuras do Velho e Novo Testamento, Dante reúne, em geral, um exemplo cristão e um pagão para ilustrar um mesmo fato. Não se deve esquecer que o imaginário e a história cristã eram conhecidos, ao passo que imaginário e história da Antiguidade, pelo contrário, eram relativamente desconhecidos, auspiciosos e estimulantes, e que esta última tinha necessariamente de preponderar no interesse geral, não mais havendo um Dante para estabelecer um equilíbrio”. (Idem, p. 157)
Outro grande da literatura renascentista, Petrarca “representava a Antiguidade em pessoa, imitando todos os gêneros da poesia latina e escrevendo cartas cujo valor, na qualidade de dissertações acerca de determinados tópicos da Antiguidade....” (Idem)
Delumeau afirma que Francesco Petrarca (1304-1374) fora o “mais conhecido de todos os promotores do movimento humanista. Tendo seu pai sido exilado de Florença, Francesco passou uma parte da vida a viajar ao estrangeiro; encontramo-lo, sucessivamente, em Arezzo, em Pisa, em Montpellier, em Bolonha e, principalmente, na Provença (Avinhão). Depois de sólidos estudos, feitos, à moda do tempo, em diversas universidades, frequentou os meios mundanos e cultos de Avinhão e de Roma. Em 1341 foi consagrado como poeta do Capitólio. Esta distinção dirigia-se principalmente, ao humanista, ao poeta épico, imitador de Virgílio, e ao epistológrafo elegante, aluno de Cícero. Era grande leitor e reunira na sua biblioteca muitos manuscritos antigos, que mandara copiar ou copiara ele próprio. Foi ele que mais contribuiu para a criação das noções – se não, mesmo, das palavras – de Idade Média e Renascimento. Mas não é o escritor de língua latina, admirado pelos seus contemporâneos, que hoje mais conta para nós: é o poeta – muito mais pessoal e original – do Canzoniere, das Rime e dos Trionfi, recolhas de poemas escritos em língua vulgar: o toscano. Os sonetos – a sua parte essencial – glosam o amor de Petrarca por Laura de Noves, que ele encontrou em 1327 na igreja de Santa Clara de Avinhão. Mais que os episódios reais de uma aventura amorosa, o que estes poemas reflectem é aquilo que o romantismo chamaria mais tarde de ‘estados de alma’. Mais uma egéria que uma amante, Laura é para Petrarca a mensageira dos pensamentos e sentimentos dele próprio: é ela que faz comunicar o amante e o amor, o poeta e a poesia, a natureza e o mundo interior, com todas as vicissitudes – êxitos, fracassos, aproximações, traições, etc. – que existem no amor pela inteligência ou pela arte como no amor por uma mulher. Daí essa poesia toda de gerações, de variações, ora espontânea, ora sábia, ora inspirada ora amaneirada, mas sempre complexa e sutil, cujas riquezas e virtuosidades fascinaram, em Itália e no estrangeiro, tantos poetas – de Bembo e Acéve e a Ronsard”. (DELUMEAU,1994, vol. 2, p. 311)
O terceiro escritor humanista da Itália, segundo Burckhardt, Boccaccio realizava “compilações mitográficas, geográficas e biográficas em língua latinas, ele já era famoso havia dois séculos em toda a Europa antes que, ao norte dos Alpes, se tivesse notícia do seu Decamerom. Uma daquelas compilações, de Geneaologia deorim, contém um notável apêndice aos décimos quartos e décimo quintos livros, no qual Boccaccio discute a posição do jovem humanismo a sua época.  (...)”
Retirando do sétimo volume de Histoire de France de Jules Michelet, Burckhardt afirma que a “descoberta do mundo, a cultura do Renascimento acrescenta um feito ainda maior, na medida em que é a primeira a descobrir e trazer, à luz, em sua totalidade a substância humana”. (BUCKHARDT, p. 226)
Analisando a arte durante os renascimentos europeus, Panofsky preocupa-se com a determinação das mudanças decisivas, transformações essas que chama de inovações, como a imprensa, a pintura italiana, especificamente em Florença, Roma e Veneza. (PANOFSKY, pp. 18-19) Para explicar essas metamorfoses, o autor busca encontrar continuidades e rupturas nos estudos clássicos e na arte. (Idem, p.22).  Neste sentido, há o questionamento de que se “terá existido uma coisa chamada Renascimento que teria começado na Itália, na primeira metade do século catorze, alargado as suas tendências classicizantes às artes visuais do século quinze, para finalmente deixar a sua marca em todas as atividades culturais do resto da Europa?” (Idem, p. 26)
Apesar de haver vários retornos à tradição clássica no período medieval, somente a partir do século XV, há uma consciência desta revivescência e de quão distantes estavam os pensadores e artistas renascentistas da época clássica. Para Panofsky, “A expansão gradual do humanismo da  literatura para a pintura, da pintura para outras artes, e das outras artes para as ciências naturais, produziu significativas mudanças na interpretação original do processo diversamente designado por ‘revivescência’, ‘restauração’, ‘despertar’, ressurreição’, ‘renascimento’.” (Idem, p. 39)
A expansão do conhecimento da tradição clássica se fazia também por meio da circulação de manuscritos gregos, levados à Europa pelos árabes, sobretudo através da Espanha. Essas interferências de autores em hebraico, árabe e “modernos” ao Renascimento, forneceram fermentos para os pensamentos humanistas. De acordo com Panosfsky, “por um lado, os artistas ocidentais começaram, ou melhor, recomeçaram a inspirar-se nas iluminuras dos livros árabes, em que os arquétipos clássicos familiares não só tinham sido alterados de modo a conformarem-se mais com a posição concreta das estrelas do que com o ideal helênico da beleza, como também tinham sido submetidos a uma orientalização radical no que se refere à fisionomia, à indumentária e ao equipamento”. (Idem, p. 149)
Panofksy aponta que “com o andar dos tempos, e à medida que estes tipos orientalizantes espalham do sul da Itália e da Espanha até regiões menos intimamente relacionadas com o Oriente islâmico, foram gradualmente perdendo o seu caráter bizarro até se assemelharem, ao menos superficialmente, a uma segunda classe de imagens neotéricas – ou seja, imagens autônomas de qualquer Bild-Tradition clássica, mesmo se distorcida, mas livremente formadas a partir de descrições verbais. Quer tais descrições se encontrassem em textos há pouco traduzidos do árabe (como a que se dizia que tinha profetizado o nascimento de Cristo), quer nos escritos ocidentais em contato com as fontes árabes, como Michael Scot (o astrólogo da corte de Frederico II) e os seus numerosos discípulos, os seus ilustradores simplesmente ignoravam os tipos greco-romanos em favor do que parece ser a gente comum de diferentes classes e ocupações”. (Idem, pp. 149-150)
Comparando os Renascimentos medievais, com o Renascimento Italiano, Panofsky destaca que o segundo tinha conhecimento do distanciamento da tradição clássica, apesar de esta estar sempre presente. Esse último conseguira incorporar a perspectiva, a harmonia das proporções, a declarar-se “moderno” e defender o humanismo, realizando uma ruptura com o período medieval, mudando “nossa civilização”, sendo que “pela primeira vez, era o passado clássico olhando como uma tonalidade separada do presente e, consequentemente, como um ideal a que se aspira em vez de uma realidade simultaneamente utilizada e temida” (Idem, pp. 159-160)
Abordando o tema do humanismo na perspectiva das ideias políticas, Quentin Skinner, discute o “ideal de liberdade” nas origens do Renascimento. Para este, na “emergência do humanismo”, “se não cabem dúvidas quanto à existência de um importante elemento de continuidade levando dos primeiros livros de conselhos, dirigidos ao podestà, ao estilo político retórico que posteriormente se desenvolve entre os humanistas da Renascença, seria porém enganoso supor que tal continuidade assuma a forma de uma linha de derivação direta. Se assim pensássemos, estaríamos negligenciando a influência de uma forma de teoria retórica nova, e conscientemente humanista, que foi importada da França à Itália na segunda metade do século XIII, e que teve o efeito de causar ruptura e transformação nas convenções vigentes na Ars Dictaminis”. (SKINNER, 1996, p. 56)
Conforme Skinner, “As mudanças que afetaram o estudo da retórica da Itália, nessa época, baseavam-se na ideia de que o assinto deveria ser ensinado não apenas inculcando-se regras (artes), mas também estudando e imitando autores clássicos adequados (autores). Até então o currículo da Ars Dictaminis geralmente fora concebido na feliz fórmula de Paestow, como nada mais elevado do que um curso comercial. Pusera-se enorme ênfase no aprendizado das regras de composição; pouco espaço se dera para a protesta mais ‘humanista’ – que por essa época estava em voga nas escolas das catedrais francesas – de que também fossem estudados os poetas e oradores antigos na condição de modelos do melhor estilo literário. Tal abordagem estritamente prática recebeu especial destaque em Bolonha, nas aulas de Bocompagno da Signa. Esse professor atacou explicitamente o método francês que consistia em ensinar a retórica mediante o recurso a autores, dizendo-o ‘supersticioso e falso’. No começo de um dos seus manuais, A palma, orgulhosamente se gabava: ‘Não me lembro de jamais haver lido Cícero’, como fonte de técnica retórica. E deixou muitíssimo claro, em seus escritos, que considerava a retórica em termos inteiramente práticos. Um de seus compêndios, A mirra, está voltado apenas ao ensino de como redigir testamentos, outro, O cedro, tem por única meta descrever os procedimentos corretos para escrever lei e ordenações locais”. (Idem, p. 57)
O historiador da cultura política renascentistas afirma que “Embora a perspectiva de Boncompagno se tenha tornado ortodoxa, nunca se extinguiu por completo a tradição alternativa, e mais humanística, da instrução retórica. Ela sobreviveu na própria Itália em algumas das escolas de gramática, e floresceu na França por todo o século XIII. A despeito da predominância da escolástica, um dos principais centros em que esse tipo de estudo se praticava continuou a ser a Universidade de Paris. Aqui, o principal dictator era João de Garland, que ensinou Ars Dictaminis continuamente de 1232 até sua morte, vinte anos depois. Seu método de instrução estava firmemente baseado nos textos clássicos relevantes, tomando poemas inteiros e orações como exemplos de bom estilo retórico. Mas o centro de ponta do ensino de retórica à maneira humanista foi Órleans. Nessa cidade, o maior expoente da Ars Dictaminis foi Bernado de Meung, que começou sua carreira por volta do ano de 1200. Também ele insistia numa associação cerrada entre a retórica e a literatura latina, e estabeleceu uma tradição de ensino fundada não na explicação de regras retóricas, mas antes na discussão do tratado Da Invenção, de Cícero, e do livro pseudociceroniano Sobre a teoria da fala em público”. (Idem)
“Durante a segunda metade do século XIII, bom número de Dictatores italianos em destaque foram educados na França, onde se embeberam dessa visão tão diferente da retórica, retornando para difundir nas universidades italianas os novos métodos de ensino. Um dos primeiros a seguir essa trilha foi Jacques Dimant. Começou estudando retórica e literatura latina na França, e veio a Bolonha, para ensinar a Ars Dictaminis, pelo final do século XIII. O tratado sobre a Ars Dictaminis que ele veio a produzir por essa época, em conexão com sua atividade de ensino, estava quase inteiramente modelado no pseudociceroniano Teoria da fala em público. Mas o mais importante pioneiro dessa perspectiva foi Bonetto Latini. Foi viver na França, em 1260, depois que a vitória dos scienenses em Montaperti fez com que fosse expulso de sua Florença natal. No exílio, leu pela primeira vez os escritos retóricos de Cícero, bem como estudou seus tratados de teoria sobre as artes retóricas. Retomando a Florença em 1266, sua experiência no estrangeiro o levou a introduzir um sabor bem mais literário e clássico nos próprios escritos sobre a Ars Dictaminis. Não produziu apenas a primeira versão italiana de três dos principais discursos públicos de Cícero, também traduziu, e enriqueceu de um comentário, seu tratado Da invenção, que além disso apresentou como sendo a melhor obra jamais escrita da retórica”. (Idem, pp. 57-58)
“Esse método de estudar a Ars Dictaminis por meio dos autores clássicos logo se consolidou como uma nova ortodoxia. Isso afetou a própria Bolonha, até então o centro do trabalho mais prático, filisteu mesmo, sobre as artes retóricas. Já na década de 1270, Fra Guidotto de Bolonha traduziu a Teoria da fala em público para o italiano e utilizou-a como manual de instrução na Ars Dictaminis. No novo movimento atingiu o zêmite em começos do século XIV, quando apareceu o tratado clássico que veio a melhor exprimir a nova perspectiva humanista, a Breve introdução à arte da epistolografia, de Giovanni de Bonandrea (1296-1321). Essa obra era quase toda derivada do tratado Da invenção, de Cícero, e da Teoria da fala em público, e segundo Banker prontamente garantiu a seu autor ‘a posição de proeminência na instrução da retórica’ não apenas em Bolonha, mas em todas as universidades italianas”. (Idem, p. 58)
O aprendizado da tradição clássica entre o sul europeu é destacado por Skinner, afirmando que “Tão logo o ensino da retórica veio a basear no estudo de exemplos e autoridades clássicas, mais uma importante novidade intelectual afetou as universidades italianas. Numerosos estudantes, que tinham começado a aprender a Ars Dictaminis como nada mais que uma parte de sua formação mais ampla para a carreira de um advogado, começaram a se sentir mais e mais interessados nos poetas, oradores e historiadores clássicos, que lhes eram propostos como modelos de bom estilo retórico. Ou seja, passaram a tratar esses escritores não apenas como mestres em alguns artifícios estilísticos, mas como figuras literárias sérias, dignas de ser estudas e imitadas por si mesmas. Os esforços assim envidados por esses advogados do começo do século XIV, estudando os clássicos por seu valor literário e não mais por sua mera utilidade, fazem que seja correto considera-los os primeiros verdadeiros humanistas – os primeiros autores entre os quais ‘a luz começou a brilhar’, como mais tarde diria Salutati, em meio às trevas então generalizadas”. (Idem, pp. 58-59)
“Como afirma Salutati em seu panegírico sobre esses expoentes iniciais do renascimento das letras, os dois centros onde os raios do humanismo primeiro luziram foram as cidades de Arezzo e Pádua. Há pouca documentação direta sobre as primeiras atividades humanísticas em Arezzo, já que se perderam quase todas as obras de Geri, o maior poeta erudito daquela época. Mas não pode haver dúvida sobre os méritos intrínsecos ou a grande importância histórica que o assim chamado círculo dos ‘pré-humanistas’ de Pádua alcançou nos primórdios do século XIV. A primeira figura de destaque desse grupo foi o juiz Lovato Lovati (1241-1309), de quem o próprio Petrarca disse em seu livro Das coisas memoráveis, que era ‘certamente o maior poeta que nosso país já viu’ até aquela data. Sua principal contribuição consistiu em recuperar as tragédias de Sêneca e em dedicar um estudo específico a seus efeitos métricos. Entre os membros mais jovens de seu círculo estiveram vários poetas e eruditos de nota, inclusive Rolando da Piazzola, (...) autor de uma das primeiras exaltações dos Signori e de sua causa. Mas o mais importante de todos os discípulos de Lovati foi seguramente o advogado Alberto Mussato (1261-1329), que alcançou posição proeminente na política de Pádua, (...) durante a longa luta travada contra Casagrande de Verona. Mussato foi autor de duas histórias de seu próprio tempo, ambas inspiradas nas obras de Lívio e Salústio sobre a República romana. Delas, a segunda e mais ambiciosa, a Historia dos feitos italianos após a morte do imperador Henrique VII, ele ainda escrevia quando o monarca morreu, em 1329, no exílio. A mais notável, porém, foi Ecerinis, uma peça em versos latinos que Weiss considera ‘o primeiro drama leigo a ser escrito desde a era clássica’. Essa peça, composta em 1313-14, tomava por modelo as tragédias de Sêneca. É fácil perceber que se trata de uma obra de um poeta humanista e reitor, e ela é de tal qualidade que permitiu que Mussato fosse exaltado até mesmo como ‘o pai da tragédia renascentista’”. (Idem, pp. 59-60)
“Assim como marcou os primórdios do Renascimento literário, esse movimento exerceu considerável influência sobre o desenvolvimento do pensamento político da Renascença. Podemos discernir tal influência por duas vias. A primeira está no fato de que as obras desses literati pré humanista muitas vezes eram de teor forte e diretamente político. Encontramos sinais bem claros dessa motivação nos poetas de Arezzo do Duzentos. Deles, o melhor exemplo aparece na obra de Guido de Arezzo, que na década de 1260 escreveu uma crítica veemente aos florentinos por abandonarem seus ideias cívicos, e em especial por encorajarem o destrutivo jogo das facções, alegando na batalha de Montaperti, em 1260. Mas a tentativa mais empenhada de por a nova cultura literária a serviço das cidades-repúblicas se deveu ao pré-humanistas de Pádua, e em particular a Alberto Mussato, que claramente não se considerava um mero erudito e poeta, mas também um político e propagandista. Todo o propósito de seu Ecerinis, (...) está em ‘incentivar com lamentações a tirania’ e em celebrar o valor da luta pela liberdade e pelo autogoverno. O tema da peça é a ascensão e queda de Ezzelino como tirano de Pádua – e são abundantes as alusões à ameaça mais imediata, da Cangrande à liberdade daquela cidade-república. O drama, depois de expor como Ezzelino descendia do demônio, passa a descrever nos pormenores mais assustadores sua ‘selvagem tirania’, que foi marcada por ‘prisões, cruzes, tormentos, mortes e exílio’. Atinge-se o clímax quando Pádua é libertada do tirano, depois disso, o coro celebra ‘a morte da selvagem loucura da tirania e da reconquista da paz’. O valor da obra enquanto peça de propaganda política foi prontamente reconhecido pela tão ameaçada cidade de Pádua. A comuna solenemente outorgou a Mussato uma coroa de louros – iniciando a tradição de coroar os grandes poetas, que conheceria tão ampla difusão durante a Renascença – e foi promulgado um decreto cívico, que mandava ler-se a peça uma vez por ano durante a populaça reunida” (Idem, p. 60)
“A outra via pela qual o surgimento dessa nova cultura literária contribuiu para moldar o desenvolvimento da teoria política foi menos direta, mas estava fadada a ter importância bem maior: as novas influencias clássicas serviram para enriquecer e consolidar ambos os gêneros de escrita política que já haviam nascido do estudo da retórica nas primeiras décadas do século XIII, assim concorrendo para que adquirissem uma apresentação mais sofisticada, bem como um tom propagandístico mais explícito”. (Idem)
“Para se chegar a esse resultado contribuiu, pelo menos em parte, um aumento da confiança dos homens de letras. Isso podemos observar, em primeiro lugar, um bom número de crônicas urbanas que datam da segunda metade do século XIII. Um importante exemplo está na parte histórica da principal obra de Brunetto Latini, Os livros do tesouro, que ele escreveu em francês na década de 1260, quando vivia no exílio. O livro de Larini, se bem que tenha a forma tradicional de enciclopédia, no que diz respeito ao conteúdo é visivelmente a obra de um dictator da nova escola, combinando longas citações de Platão, Sêneca, Salústio, Juvenal, e especialmente Cícero, com informações e conselhos de feitio mais convencional. Um exemplo mais tardio é a Crônica de Florença composta em começos do século XIV por Dino Campagni, advogado e político formado da Ars Dictaminis. Para tratar daqueles anos cruciais que vão de 1270 a 1312. Compagni demonstra notável habilidade literária, valendo-se de um estilo retórico adequado e entremeado sua narrativa de discursos construídos, apóstrofes irônicas e lamentações dramáticas sobre o fato de Florença ter perdido a liberdade. Finalmente, as mesmas influências clássicas se podem discernir também na notável história e descrição de Milão que Bonvesin della Riva escreveu em 1288, a que deu título de As glórias de cidade de Milão. Bonvesin lecionava profissionalmente retórica e, se sob vários aspectos seu livro não tem igual, por outro lado é um produto inegável desse pano de fundo literário (...); contém muitas ‘exclamações’ elaboradas e apóstrofes aliterativas, no mais elevado estilo retórico”. (Idem, p. 61)
“O mesmo aumento de segurança de si que sentiram os literati também se pode detectar no outro gênero literário que se implantou no começo do século XIII, o dos manuais para o uso dos podestà e de outros magistrados urbanos. A melhor prova se encontra na parte terceira (e final) dos Livros do tesouro, de Latini, que tem por título ‘O governo das cidades’. Essa parte se apresenta de forma de um livro convencional de conselhos, tendo muito de seu material diretamente copiado do tratado de mesmo nome atribuído a João de Viterbo. Contudo, aos discursos e cartas modelares de praxe. Latini acrescenta boa dose de teoria retórica ciceroniana e de filosofia moral aristotélica, no estilo clássico que então entregava em voga. Como resultado, temos que as conexões entre as ‘ciências do falar e do governar’ bem se mostram muito mais íntimas e intrínsecas do que os espelhos do príncipe anteriores conseguiam sugerir – fato já observado no capítulo de abertura, no qual Latini habilmente articula essas duas ‘ciências’. Ele agora se sente em condições de insistir – com numerosas referencias a Cícero – em que a ‘principal ciência relativamente ao governo das cidades é a da retórica, isto é, a ciência do discurso’. O impacto dessa nova autoconfiança foi tal que Latini logo veio a ser considerado – como Giovanni Villani observava em sua Crônica, uma geração mais tarde – não apenas ‘um mestre consumado de retórica’, mas também ‘um grande filósofo’. Já que foi ele ‘o primeiro que ensinou refinamento aos florentinos, assim política adequadas’” (Idem, pp. 61-62)
“Mas o traço mais marcante que podemos observar nesses tratados e críticas está no carácter cada vez mais sistemático da argumentação política por eles proposta. Como já vimos, seus autores os escreveram num momento em que as cidades-repúblicas se confrontavam com o rápido avanço dos Signori e, paralelamente a isso, com uma perda de confiança no sistema eletivo de governo. Desfrontando-se com essa ameaça de que se extinguisse toda uma tradição política, esses autores reagiram oferecendo a primeira defesa, como valor central, da liberdade republicana, mas também para a análise das causas de sua vulnerabilidade e dos métodos mais adequados a tentar garantir que ela não parecesse.  (...)”. (Idem, p. 62) 
Embora valorize e retome a continuidade do pensamento medieval, no pensamento humanista, Skinner discute a vida intelectual dos humanistas que primeiramente atacavam a escolástica, “concentrando no direito romano. Fundavam esse ataque na sua convicção de que os textos do mundo antigo deveriam ser estudados e avaliados, sempre que possível, em seus próprios termos. Esse pressuposto foi a causa de severas críticas que dirigiram a Bartolo e a seus discípulos, que, valendo-se de métodos completamente diferentes, havia definido, no século XIV, a matriz de uma doutrina que se tornara dominante nas escolas de direito italianas. (...) o princípio fundamental da interpretação bartolista rezava que os escritos jurídicos da Antiquidade deviam ser analisados de modo, sempre que possível, a falar diretamente à experiência legal e política dos tempos atuais. Essa abordagem deliberadamente anacronizante levou os humanistas, por sua vez, a considerar toda a escola dos pós-glosadores com o mais seco desdém. Um dos primeiros e mais venenosos ataques deles ocorre numa carta de Lorenzo Valla e outro humanista. Píer Candido Decembrio. Comentando o tratado de Bartolo sobre os sinais de honra. Valla proclama que livros dessa espécie ‘não merecem em absoluto’ ter ‘ter tantos admiradores’, sendo ‘tão exageradamente mal escritos’ e seus autores ‘tão absurdamente ignorantes’. Começa ridicularizando Bartolo. Blado, Acúrsio e ‘toda a sua tribo’ por escrever ‘numa língua bárbara’, que ‘não era, de forma alguma a língua dos romanos’, tudo o que fazem é grasnar, feito gansos. E Valla conclui que, ao discutir o sentido ou o contexto histórico do direito antigo, Bartolo exibe um desconhecimento ainda mais escandaloso, já que ‘corrompe com sua perversidade as leis que interpreta’, ‘avança muitas outras coisas sem ter base para tanto’, e se expõe à crítica em, literalmente, milhares de pontos”. (Idem, 126)
“Esse repúdio à metodologia escolástica desempenhou papel-chave na constituição de uma jurisprudência genuinamente histórica. A insistência de Valla em considerar o Código de Justiniano o produto de uma cultura inteiramente distinta foi reiterada por Crinito e, mais ainda, por Poliziano, na Itália; e logo suscitou grande entusiasmo na França, onde as obras pioneiras de Budé e Alciato contribuíram para difundir um tratamento puramente histórico do direito, método esse que mais tarde seria desenvolvida por Le Douren, Connan, Baudouin e pelo notável Cujas. (...) este movimento haveria de exercer um profundo impacto na constituição do pensamento político e social do século XVI. Recorrendo-se os escritos jurídicos da Antiguidade como o produto de uma sociedade completamente distinta, alguns fundamentos se lançavam para um estudo comparado dos diferentes sistemas legais. E isso, por sua vez, deu a Jean Bodin o material histórico e a pespectiva intelectual que lhe permitiram modelar sua ‘ciência’ da ‘política’”. (Idem, p. 127)
“Os humanistas não combateram seus rivais escolásticos apenas no plano da metodologia: denunciaram, também, as preocupações que os distinguiam. Aqui, o princípio de que mais se valeram foi sua tese de que a filosofia deve ter algum uso prático na vida social e política. Isso os levou a condenar, por duas vertentes, a forma como os escolásticos estudaram a filosofia. Primeiro, criticavam as escolas por se empenharem em pontos dos mais triviais, prestando assim pouquíssima atenção à questão – essencial – de como devemos nos portar. Como se queixa Petrarca em seu tratado De sua ignorância, os escolásticos sempre estão dispostos a nos dizer muitas coisas, que – ‘mesmo se for verdade’ – ‘em nada contribuirão’ para enriquecer nossas vidas. E além disso se refestelam na mais completa ignorância de questões tão vitais como ‘a natureza humana, os propósitos para que nascemos e rumo aos quais dirigimos’. Essa crítica que Petrarca chamava ‘a arrogante ignorância’ dos escolásticos foi reiterada por todos os humanistas do começo do Quatrocentos. Um dos ataques mais contundentes veio, como era de esperar, da pena de Lorenzo Valla. Tendo aceito pronunciar um discurso em Louvor de Santo Tomás de Aquino, Valla tratou então desse título com muita ironia, afirmando que, se devemos reconhecer ao Doutor Angélico suas sagradas virtudes, não podemos nos impedir, porém, de observar que ‘o conhecimento desse santo homem [...] na maior parte das coisas, era de pouquíssima consequência’, uma vez que ele se dedicou quase por completo ‘aos derrisórios arrazoados dos dialéticos’, sem jamais perceber que tais preocupações não passam de ‘obstáculos no caminho para formas melhores de conhecimento’. (Idem, pp. 127-128)
“A segunda objeção dos humanistas aos escolásticos é que, mesmo quando eles se interessam pelos problemas sociais e políticos, o máximo que fazem é mostrar como são incapazes de lidar com esses. Sentem-se satisfeitos se conseguem, em seu habitual estilo bárbaro, expor sua rotineira série de distinções. Assim, não têm meios de perceber o quanto é fundamental, para a filosofia, aliar-se à eloquência, se ela tiver a menor intenção que seja de persuadir nossa vontade de exercer, por essa via, uma influência benéfica sobre a vida política. Como diz Petrarca em De sua ignorância, ‘zombo desses estúpidos aristotélicos’ ao ver como eles, ‘em vez de adquirir a virtude, consomem seu tempo, isto é (como o poeta resumiu num epigrama célebre), que ‘querer o bem é superior a saber a verdade’. Também essa linha de ataque foi seguida com redobrado vigor pelos humanistas de inícios do Quatrocentos. Salutati, por exemplo, descarta a lógica escolástica dizendo que ela meramente ‘prova uma função muito mais útil, já que ‘persuade a fim de guiar’. E Bruni, num estilo análogo, se concentra na primeira parte de seu Diálogo em fulminar ‘a arrogância somada à ignorância’ dos escolásticos, que ‘pretendem difundir a filosofia embora nada conheçam das letras’, e por isso ‘emitem, a cada palavra, um solecismo’”. (Idem, p. 128)
“Essas denúncias também cumpriram um papel positivo, contribuindo para cristalizar alguns valores e atitudes que melhor haveriam de distinguir os humanistas. Podemos agora entender, por exemplo, como foi que os humanistas apesar de sua forte propensão literária, deixaram como legado um renovado interesse pelas ciências da experiência e pelas artes práticas. (...)”. (Idem, pp. 128-129)


Bibliografia
BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo Companhia das Letras, 1996.
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Trad. João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989.
DOSSE, François. A História. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
PANOFSKI, Erwin. Renascimento e Renascimentos na arte Ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1960.
SKINNER, QUENTIN. As fundações do pensamento moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

domingo, 1 de outubro de 2017

REFORMAS RELIGIOSAS. HISTÓRIA E NOTAS HISTORIOGRÁFICAS

            Em 380 d.C., o imperador Gaciano e Teodósio I tornavam o cristianismo como a religião oficial do Império e sagravam o papado como a “instituição de governo”. A partir desse momento, uma série de confrontos e tensões estabeleceram-se entre o Império Romano e o Papado. (MARTINEZ MILLAN, 2007, 27)
                Durante os séculos IX e X, formava-se a Cristandade em contraponto ao mudo exterior. Em 816, o papa Estevão IV viajava para os reinos Francos e coroava em uma cerimônia cheia de simbolismo o filho de Carlos Magno, Luis I. Os papas, procurando formar um governo universal, aplicavam decretos sobrepondo-se aos poderes reais. (Idem, p.32)
             Contudo, contra o poder papal e apoiadores do império estavam Guilherme de Ockam e Marsílio de Pádua no século XIII. Combatendo os movimentos heréticos que corriam pela Cristandade, o papado criava no segundo quarto do século, a Inquisição com o apoio dos monarcas, condes, marqueses e conselheiros de vilas. Este tribunal itinerante era composto por juízes delegados pelo papa, chamados de inquisidores. Esses visitavam as cidades, abrindo o ‘tempo de gracia’, no qual os devotos deveriam confessar suas culpas e esses não seriam castigados. A partir do ‘édito de fé’, os devotos deveriam denunciar os hereges. Depois de 15 de maio de 1252, com a bula estirpando, introduziu-se a tortura. O processo inquisitorial era finalizado com a leitura da sentença, podendo esta a chegar a cárcere perpétuo ou pena de morte.
                 Na Espanha, em processo de unificação no dia primeiro de novembro de 1478, o papa Sisto IV concedia aos reis o poder de estabelecer o ofício de inquisitores. Durante os séculos XIII ao final do XIV, os monarcas castelhanos dedicaram a reconquista dos reinos da Península Ibérica contra os mouros. Nesse contexto, os judeus participavam da vida cívica como médicos, artesãos, escrivães, ocupando cargos importantes na administração monárquica. (Idem, pp. 32-44)
               Todavia, ao final do século XIV, com o reinado de Pedro I, como consequência à perseguição do grupo, massas de judeus converteram-se ao cristianismo e continuaram a propagar a fé judaica no âmbito privado.
                       Apesar da própria rainha Isabel possuir ao seu lado judeus conversos, como o frei Hernando de Tabavera, aliava-se ao grupos dos defensores da inquisição, o da nobreza cristã velha. (Idem, p. 52)
                     De acordo com José Martínez Millán, em La Inquisición Española, “al margem de las inquietudes religiosas de la sociedad Cristiana de aquella época, hubo sectores que vieron con claridade el possible estabelecimiento de la inquisición y la manera de libarse de estos  nuevos convertidos que copaban los altos cargos de la Iglesia, de los concejos municipales e, incluso de la Monarquia. Su mera presencia en estas tareas les sublevaba contra ellos”. (Idem, p. 56)
                Essa mobilização social ocorria em Sevilha, em 1477. Esta mesma cidade sediou a inquisição com os inquisidores dominicanos  Juan de San Martín e Miguel Morillo em 1480. Três anos depois, os grupos de judeus conversos próximos à rainha Isabel começavam a distanciar-se dos cargos. Com o fim da guerra da Reconquista, o grupo mais homogêneo de cristãos velhos, alinhados com Fernando de Aragão tornava-se mais próximo  à administração real. Esses últimos, na opinião de Martínes Millán, utilizava-se do poder inquisitorial para interesses próprios. Com o falecimento de Isabel de Castela, em 1504, o Conselho Inquisitorial dividia-se em dois, um para a Coroa de Castela, o outro de Aragão. (Idem, p. 65)
                   O autor também define o período de 1484 até 1520, como o da primeira etapa da fundação da inquisição e das regras gerais do Santo Ofício. Mas durante a morte de Isabel e a ascensão de Carlos I, devido aos entraves políticos o Santo Ofício passava por uma crise, recuperada com a Reforma Protestante. Para entender o “impacto da Reforma” na Espanha, é preciso dividir três movimentos distintos. O primeiro, denominado de “alumbrados”, grupo mediano e urbano com formação universitária, o qual praticava a leitura direta das sagradas escrituras. Exemplo deste grupo fora Isabel de La Cruz e seu principal discípulo Pedro Ruiz de Alcaraz, leitores vorazes das Sagradas Escrituras. Por fim, esse grupo foi perseguido pela Inquisição de Toledo. Os “alumbrados” propagavam a “consciência autônoma” cinco anos antes de Lutero. (Idem, pp. 82-85) Outro movimento foi o eramismo difundido em torno de 1520 e proibido em 1536, pelo conselho da Inquisição. (Idem, pp. 85-87) Por fim, o terceiro grupo eram os luteranos, presentes principalmente em Sevilla e em Valladolid, em meados do século XVI, quando a ortodoxia e a perseguição aos hereges era reformulada em 1559. (Idem, pp. 97-99).
                 As reformas procuravam aumentar o número de conselheiros, ampliar os tribunais, criando novos como na América, acrescentar o número de tribunais e aumentar consequentemente as suas estruturas e finanças. Além do inquisidor, surgia a figura do visitador. Também ouve a criação de foros privilegiados dos familiares do Santo Ofício. (Idem, pp. 99-113)
                  Debatendo sobre a “crise da Cristandade”, Burckhardt destaca uma crise moral de maneira geral na península italiana nos séculos XV e XVII, com o crescimento dos jogos, na sede de vingança, com lutas entre grandes famílias, chamadas de vendette. Em suma, a vingança valia-se também como uma “obra de arte”, havendo uma “absoluta sede de sangue, um prazer mórbido na destruição encontrar-se-á antes, no espanhol César Borgea, cuja crueldade ultrapassa verdadeiramente em muito qualquer propósitos reais ou imagináveis”. (BURKHARDT, p. 328)
           Neste ambiente de tirania e governos ilegítimos, Burkhardt questiona-se por que a “Itália, intelectualmente, tão poderosa, não reagiu com maior rigor à hierarquia; porque não produziu ela própria uma Reforma semelhante à dos alemães e antes que estes o fizessem?”
           O autor responde a esta questão afirmando que a crítica dos humanistas italianos não conseguia realizar a ruptura conceitual com a Igreja, mas a reforma alemã, como “doutrina positiva”, justificava a ruptura por meio da fé e da insuficiência das boas obras”. (Idem, p. 330)
Segundo ainda o autor, “é certo que tais doutrinas só exerceram sua influência sobre a Itália a partir da Alemanha, e aliás, tarde demais, quando o poder espanhol era já suficientemente grande para sufocar o que fosse – quer diretamente, quer indiretamente, por meio do papado e dos instrumentos que ele dispunha. Mas já os movimentos religiosos italianos do passado, desde os místicos do século XIII até Savonarola, haviam exibido um considerável montante de doutrinas positivas para cujo amadurecimento nada mais faltara do que a sorte, que, aliás, tampouco agraciava as doutrinas cristãs também bastante positivas dos huguenotes. Em seus detalhes, eclosão e em sua marcha, os acontecimentos colossais como a Reforma do século XVI escapam a toda dedução histórica-filosófica, por mais claramente que se possa, em linhas gerais, demonstrar sua necessidade. Os movimentos do espírito – seu súdito cintilar, sua preocupação, seu estancamento – são e permanecem sendo um enigma a nossos olhos...”. (Idem, pp. 330-331)
                   Delumeau, em Nascimento e afirmação da Reforma, observa que no período anterior ao grande cisma da reforma no século XVI, a “civilização da época” era “demasiado profundamente religiosa para que Igreja e Estado consentissem em delimitar em comum acordo seus respectivos campos. Ou realmente a Igreja tinha tendência a submeter à sua lei o poder secular – como aconteceu na época de Inocêncio III – ou os soberanos procuravam impor seu próprio poder à Igreja”. (DELUMAU, 1989, p. 73)
              Na relação do papado com o Império, os dois constituem-se intrinsicamente ligados e conflituosos. Além disso, segundo Delumeau, “a ingerência do Estado na Igreja aparecia mais evidente dia a dia. Durante o cisma, os diversos cleros nacionais haviam geralmente seguido seus governos na obediência o este ou aquele papa. A inquisição espanhola era um instrumento nas mãos dos soberanos e a Concordata de 1516 conferia a Francisco I uma enorme autoridade. Sobre a Igreja de França. Os cristãos adquiriam portanto o hábito de ver em seus chefes laicos guias espirituais. Que admiração se os ingleses atacavam docilmente as reformas religiosas decididas por um monarca – Henrique VIII – a quem o próprio papa outorgara poucos anos antes o título de Defensor Fidei? O princípio cujus regius, hujus religio, adotado oficialmente na Alemanha de 1555, entrara nos usos e na mentalidade das massas antes. Em face ao enfraquecimento da Igreja, e numa época em que os papas se comportavam muitas vezes como príncipes, as autoridades laicas ganhavam cada vez mais consciência de suas responsabilidades religiosas. Os reis da Suécia e da Dinamarca, os príncipes alemães, os conselheiros municipais das cidades e do Império e da Suiça que impuseram a Reforma a seus súditos, eram movidos muito mais por um sincero sentimento cristão que por sórdidas ambições políticas ou financeiras”.  (Idem, p. 74)
                  Para Delumeau, a crise da cristandade acirrava-se devido à “ascensão do elemento laico na sociedade do tempo”; ao “desabrochar do individualismo em suas mais variadas formas”, como o humanismo; o lento e progressivo descontentamento com os sacerdotes; e a “desvalorização dos sacramentos”. (Idem, p. 76) Neste contexto, o aparecimento do livro impresso foi “uma verdadeira revolução, em relação – bem sucedida – às necessidades espirituais do tempo”. (Idem, pp. 76-77)
Devido à impressão da Bíblia e sua difusão por meio das várias traduções, conforme o autor, que a reforma foi possível. “Podendo cada edição variar 250 exemplares da Bíblia alemã em circulação, e 13500 em outras línguas mas 100.000 livros do  Novo Testamento. Era ainda muito pouco. Daí o sucesso da Bíblia de Lutero propositadamente redigida em alemão acessível a todos”. (Idem, p.78)
               Apesar da crise religiosa existente no período anterior à Reforma, conforme afirma Delumeau, “só o abalo do cisma protestante conduziu Roma a repensar sua teologia, a clarificar sua doutrina, a revalorizar o padre, os sacramentos. Lutero, Calvino e todos os Reformadores estavam persuadidos da decadência irremediável da Igreja romana, no que totalmente se enganaram. Porém, a correção desta constituiu uma extraordinária surpresa. Em qualquer caso, as duas reformas inimigas corresponderam a uma mesma inquietação da consciência cristã”. (Idem, p. 83)
                    Martinho Lutero (1483-1546) cursara a universidade em Erfurt, tornava-se agostiniano em 1505, recebera o título de doutor em Teologia em 1520, quando criticava as indulgências papais não estava pensando em romper com o papado. O que acontece um ano depois. Em 1526, constitui a Igreja reformada com o apoio de príncipes alemães.
Para Lutero, a salvação da alma cristã ocorria a partir da fé do servidor, pois segundo Jô 1 {2} “Ele deu o poder de serem feito filhos de Deus todos os que crêem em seu nome.”(LUTERO, DA LIBERDADE, p. 33). Conforme o reformador,
“essas e todas as palavras de Deus são sagradas, verdadeiras, justas, pacíficas, livres e plenas de bondade; por isso, aquele que a elas se junta com fé sincera ficará unido a Ele em alma, tanto e tão completamente que todas as virtudes da Palavra torna-se-ão também próprias da sua alma: portanto, a fé, a palavra de Deus torna a alma sagrada, justa, verdadeira, pacífica, livre e plena de bondade, fazendo dela um verdadeiro filho de Deus...”. (Idem)
                  Combatendo a ideia de que o cristão necessita realizar grandes obras em nome de Deus, Lutero define a “liberdade cristã” como “unicamente a fé” e por meio desta o verdadeiro cristão adquire a “justiça e a bem aventurança”. E o poder dos cristãos estava na preciosa liberdade de ter “fé”. Esta se bastava.
               A partir da fé, os cristãos eram livres para praticarem as “boas obras”, sendo que eles deveriam “executá-las desinteressadamente como um amor voluntário para agradar a Deus, buscando e observando apenas o que agrada a Deus, e cumprir a sua vontade o melhor possível.  Desse modo, cada qual pode encontrar a medida e o modo para mortificar o corpo, jejuando, vigiando e trabalhando o quanto considera necessário para reprimir os impulsos do corpo. Contudo, aqueles que pretendem se tornar justos por meio das obras descuidam da mortificação e têm em vista apenas as obras, supondo que, quanto mais numerosas e maiores forem, mais elas contribuirão par anos tornar justos. Em razão disso, muitas vezes eles quebram a cabeça e estragam o próprio corpo. Portanto, é uma grande tolice a compreensão equivocada da fé e da vida cristã pretender torna-se justo e bem-aventurado por meio de obras, sem a fé”. (Idem, p. 51)
            No momento em que escrevia a Liberdade do Cristão, Lutero ainda não havida definitivamente quebrado com a Igreja de Roma, mas criticava explicitamente seu enriquecimento por meio de construção de grandes obras em nome de Deus e Cristo. Reafirmando, Lutero valorizava a “verdadeira salvação” pela presença da honesta e honrada fé. O reformador valorizava a simplicidade do cristão, afirmando também:“....como a pobreza se comprova nas riquezas, a fidelidade nos negócios, a humildade nas honrarias, a abstinência nas festas, a castidade nas delícias, assim a justiça da fé se comprova nas cerimônias. ‘Pode alguém, disse Salomão, ‘levar fogo no sem queimar as roupas?’(Pr. 2,27). Não obstante, como em riquezas, negócios, honrarias, delícias, comidas, assim também é preciso conviver com cerimônias; isto é, com perigos. E mais: assim como os meninos têm absoluta necessidade de receber cuidado de empregadas, para não perceberem, os quais contudo, quando adultos, correm o risco de sua salvação ao conviver com a moça da mesma maneira, é necessário as pessoas rudes, e em idade fogosa, que sejam contidas e dominadas pelas barreiras das cerimônias, inclusive férreas, para que seu espírito desenfreado não se lance no precipício dos vícios; contudo, será sua morte se nelas perseverarem, na falsa ideia da justificação. Antes, devem ser ensinadas no sentido de que não são encarceradas desse modo para que, por meio disso, sejam justas merecedoras de muitas coisas, mas para que não pratiquem o mal e possam ser instruídas com mais facilidade para a justiça da fé, o que não suportariam, por causa do ímpeto da idade, se esse não fosse suprimido” (Idem, p. 69)
                         Segundo Delumeau, a preocupação de Lutero era essencialmente com a salvação da alma, achando “a solução de seu drama interior, e a doutrina da justificação pela fé ia se tornar o fecho da abóboda do Protestantismo oficial. A Igreja Romana, pelo contrário será levada a distinguir, mais nitidamente talvez no passado, pecado e tentação. Fará sua esta outra palavra de São Paulo que Deus sempre concede ao homem uma graça superior às tentações. (I Cor., 10, 13). Em sentido inverso, Lutero passará a minimizar os pecados atuais e também o esforço para superar a inclinação do mal; insistiu sobre o pecado original e a profunda degradação do homem. Sem a bondade de Deus que perdoa gratuitamente e que não imputa ao pecador esta perversão radical que reside nele, o homem seria irremediavelmente condenado. Os sacramentos que distribuem as graças atuais cedo poderão portanto para Lutero parte de sua importância. Contará principalmente para ele a eliminação interior que nos garante a não imputação de nossa miséria moral. O diálogo direto com Deus e o crente toma o passo à liturgia e sacramentos, ao intermediário entre o Salvador e o salvado”. (Idem, p. 88)
                   Ainda, conforme Delumeau, na análise da reforma luterana, “só a fé salva e não as ‘falsas boas obras’ conseguido a força do dinheiro. Aquele que se crê salvo por haver comprado indulgências adormeceu numa falsa segurança. A intervenção de Lutero, em 1517, se explica portanto por sua posição doutrinal. Em Wittemberg desaprovava a acumulação na igreja no castelo de Frederico o Sábio de 17413 relíquias capazes de produzir 128000 anos de indulgências. Como Teztel e os demais pregadores das indulgências atribuídas àqueles que ofertassem um óbilo para a reconstrução da Igreja de São Pedro propagassem nas vizinhanças de território do Eleitor, lançou Lutero o alarme das 95 teses. Elas não foram provavelmente fixadas em 31 de outubro de 1517, mas sim enviadas secretamente nessa data a determinadas autoridades eclesiásticas e notadamente ao arcebispo Alberto de Brandeburgo, comissário da pregação da indulgência. Foi por não ter recebido resposta, enquanto os bispos haviam comunicado suas teses a Teztel, que Lutero decidiu – entre 11 de setembro e 20 de dezembro de 1517 – enviar a alguns amigos o texto delas (...)”. (Idem, p. 89)
Para Lutero, “o verdadeiro tesouro da Igreja é o Santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”. (Idem)
          Lutero afirmava que somente um pecado deveríamos nos inquietar. “Restringindo”, para Delumeau, “o poder das chaves, retirada à hierarquia a autoridade suficiente para apagar as penas do purgatório, isto é, estabelecidas por Deus para o além. Ele insinuava, timidamente ainda, que o pecado só por Deus é perdoado, sendo útil, mas não indispensável a ‘confirmação’ dada pelos homens da Igreja. Exaltava o amor desinteressado ao próximo e o cumprimento do dever de cada dia. Acentuava a importância do Evangelho, único tesouro verdadeiro do Cristão”. (Idem, p. 90)
Apesar de ser convidado a defender a sua doutrina perante o imperador Carlos V, na Dieta de Worms, aberta no início de 1521, Lutero recusa-se a discutir, pois não podia agir contra sua consciência. (Idem, pp. 91-92)
                A difusão da reforma de Lutero fora relativamente rápida, artistas como Dürer, os Cranach e Holbein, “abandonaram a igreja romana. Os pequenos fidalgos orientados por Franz de Sckingen e Ulrich de Hutten defendiam ardentemente Lutero. As hierarquias urbanas sobretudo se inclinavam para a Reforma. Em 1521, Constança recusava a aplicação do édito de Worms. Em 1523, a Dieta de Nuremberg procedeu na mesma. Esta cidade adotou a Reforma a partir de 1524. (...)”. A “Dieta de Spiria recusou a aplicar o édito de Worms. Quando, em 1529, uma nova Dieta pretendeu repô-lo em vigor, seis príncipes e catorze cidades protestaram. Deu-se-lhes o nome de Protestantes....”
               Na região da Alemanha, “por altura da paz de religião de Augsburgo, aceita por Fernando de Habsburgo em 1555 e que repartia a Alemanha entre Luteranismo e Calvinismo de acordo com o princípio cujus régio, hujus religio, dois terços do país haviam se tornado luterano. Somente permaneciam fiéis a Roma, a cidade imperial de Aix-la-Chapelle, os bispados de Müster ePaderbone, os acerbispados de Treves e Colônia, os bispados de Mogúncia, Worms e Spira, os de Fulda, Wurgeburgo e Bamberg e os países bávaros”. (Idem, p.95)
                 Discutindo os “princípios do luteranismo”, Skinner, na perspectiva do pensamento político – e no caso da história moderna, religião e política estavam intrinsecamente relacionadas. O autor também defende a ideia de que “começar a história da Reforma Luterana pelo seu ponto de partida tradicional significa começá-la pelo meio. O célebre gesto de Lutero, pregando Noventa e cinco teses na porta da igreja do Castelo, em Wittemberg, na véspera do dia de Todos os Santos do ano de 1517 (o que, por sinal, bem pode nunca haver acontecido), marca apenas o apogeu de uma jornada espiritual que aquele sacerdote percorria havia pelo menos seis anos, quando fora nomeado para a cátedra de teologia da universidade local. Um dos principais feitos dos que estudaram Lutero, na geração passada, constituiu em retraçar sua formação intelectual no curso daqueles anos. Se tal reavaliação foi possível, isso se deve à redescoberta do material que ele utilizou a proferir suas palestras a respeito dos Salmos, em 1513-4, da Epístola dos romanos, em 1515-16, e da Epístola para as gálatas, em 1516-17. Desses estudos resultou a sugestão de que seria apenas um ‘pequeno exagero, na fórmula de Rupp, dizer que ‘todo o Lutero mais tardio’ já se discerne nas páginas das primeiras notas de conferência. Podemos assim chegar à conclusão de que o mais adequado será principiar a história por onde o próprio Lutero começou: na gestação de sua nova teologia, que lhe proporcionou o quadro para atacar não só o tráfico que o papado efetuava das indulgências, mas todo um conjunto de atitudes sociais, políticas, assim como religiosas, que tinham ficado associadas aos ensinamentos da Igreja católica”. (SKINNER, 1996 p. 285)
                         Continuando ainda com o mesmo historiador, “a base da nova teologia de Lutero, e da crise espiritual que a precipitou, residia em sua concepção da natureza humana. Lutero vivia obcecado pela ideia da completa indignidade do homem. Para um psicólogo de nosso tempo, isso pode evidenciar uma crise particularmente grave de identidade, uma ‘crise de integridade’ na qual o padecente vem a descrer por completo do valor de sua própria existência. Os biógrafos mais convencionais de Lutero, porém, se contentaram em explicar esse fato como o ‘enfrentamento de uma espécie de catolicismo contra outra, do agostinismo contra o tonismo’. Essa convicção de Lutero levou-o a rejeitar a ideia otimista de um homem apto a intuir e seguir as leis de Deus – concepção essa essencial para os tomistas - , e a retomar à insistência com que, séculos antes, santo Agostinho trata, com não pouco pessimismo da natureza decaída do homem”. (Idem, p. 285-286)
                    “Essa doutrina”, afirma Skinner, não representa apenas uma ruptura com o tonismo: ela rejeitava de forma ainda mais peremptória a elevada noção das virtudes e da capacidade do homem que (...) os humanistas haviam difundido pouco anos antes. Lutero assim se sentiu impelido a desferir um veemente ataque ao ideal humanístico de uma philosophia pia, e em especial ao mais perigoso expoente de seu abrangente credo, o ‘pagão republicano’ Erasmo. A ocasião para essa ruptura definitiva com os humanistas foi proporcionada pela publicação do discurso de Erasmo Da liberdade da vontade, em 1524. Erasmo de início parecera ser um cauteloso aliado da Reforma, aplaudindo as Noventa e Cinco teses e enviando esforços para impedir que Lutero fosse condenado sem que as autoridades imperiais sequer o escutassem. Mas aos poucos se foi mostrando mais e mais distante, especialmente depois da excomunhão de Lutero. Temos uma carta sua ao cardeal inglês Wolsey, datada de 1519, negando que tenha lido as obras do reformador, e outra, da mesma época, ao próprio Lutero, instigando-o proceder com mais cautela. Por volta de 1521, ele insistia – tomando alguma liberdade com a verdade – em que ‘se opusera mais que ninguém aos panfletos de Lutero’; e dois anos mais tarde, finalmente cedia ao pedido – formulado pelo papa e por Henrique VIII, entre outros – de que redigisse um tratado antiluterano. A doutrina luterana do homem constituía um alvo ideal para os seus talentos humanista, e assim veio a lume o tratado Sobre a Liberdade da vontade, no qual não se limitava a contestar as ideias de Lutero mediante copiosa citações das Escrituras e dos padres da Igreja, mas também abria o debate com a observação, tão caracteristicamente sua, de que ‘preferiria que os homens não esperdiçassem seu tempo e talento em labirintos dessa espécie”. (Idem, p. 286)
             “Um ataque assim inesperado, vindo de personagem tão influente, se alarmou Lutero, também é certo que o estimulou. Ele prontamente escreveu uma réplica elaborada e de excepcional violência, na qual deu forma pormenorizada a suas convicções teológicas, apresentando, de modo definitivo, sua doutrina anti-humanista e ultra-agostiniana do homem. Essa obra saiu publicada em 1525, com o título de A servidão da vontade. Gerrish observou que seria equivocado caracterizar como puramente ‘irracionalista’ esse ataque  à ideia mesma de philosophia pia. Lutero certamente nunca tenta negar o valor da razão natural, no sentido dos poderes racionais do homem, nem condena o uso da ‘razão regenerada’, quando essa ‘serve como humildade o lar da fé’. Até faz um uso residual do conceito de lei natural, embora costume reduzir essa fonte de conhecimento moral e nada mais que as exigências de uma consciência humana. Opõe-se de forma implacável, porém, a tese central e tipicamente humanística de Erasmo, segundo a qual o home tem à sua frente a possibilidade de utilizar os seus poderes racionais para descobrir como Deus quer que ele aja. Lutero insiste, repetidas vezes, em que nesse contexto, toda a capacidade racional do homem é apenas ‘carnal’ e ‘absurda’. Todos ‘decaímos de Deus e por Ele fomos abandonados’, que modo que nossa condição é de completa ‘prisão, maldição, cativeiro, enfermidade e morte’. Isso torna tão ridículo quanto pecaminoso cogitar que possamos jamais nutrir a esperança de ‘medir Deus pela razão humana’ e, por sua via, penetrar os mistérios de Sua vontade. A verdadeira situação, como Lutero parece indicar no título do seu tratado, é que nossas vontades permanecem sempre escravizadas ao pecado. Somos tão ‘corruptos e afastados de Deus’que não nos resta qualquer esperança de jamais querer ‘coisas que agradem a Deus ou que Ele queira’. Todas as nossas ações procedem de nossa natureza ‘contrárias e más’, completamente escravizadas a Satanás, e assim asseguram que ‘nada possamos fazer, afora coisas contrárias e más’. O resultado é que, ‘pela transgressão do homem, Adão, vivemos todos de cometer qualquer coisa além do pecado e, por isso, sofrer a condenação eterna’”. (Idem, pp. 286-287)
“Essa ideia de uma servidão humana ao pecado obriga Lutero a ler sem nenhuma esperança a relação entre o homem e Deus. Vê-se forçado a reconhecer que, não estando a nosso alcance sondar a natureza e a vontade divina, Suas ordens sempre hão de parecer-nos inescrutáveis. É nesse ponto que ele revela com maior clareza seu débito com os discípulos de Occa: insiste em que os mandamentos de Deus dever ser obedecidos não porque nos pareçam justos, mas simplesmente por ser a ordem de Deus. Uma tal contestação às teses tomistas e humanísticas, que entendiam Deus como um legislador racional, assume assim a forma da doutrina – tipicamente luterana – da dupla natureza de Deus. Há o Deus que escolheu revelar-se no Verbo, cuja vontade pode, por conseguinte, ser ‘pregada, revelada, oferecida e adorada’. Mas há também o Deus escondido, o Deus Absconditus, cuja ‘vontade imutável, eterna e inescrutável’ não pode em absoluto ser compreendida dos homens. A vontade do Deus obsconso é onipotente; ela ordena tudo o que aconteceu no mundo. Mas também está além de nosso entendimento, e somente pode ‘reverenciar-se, sendo, como é, o segredo mais respeito incute de todos os que pertencem à ‘Majestade divina’”. (Idem, pp. 287-288)
                 “Lutero também se vê forçado a aceitar um segundo corolário, ainda mais desesperador, dessa doutrina do homem. Já que todas as nossas ações inexoravelmente expressam nossa natureza decaída, jamais poderemos praticar algum ato que nos justifique diante Deus e, assim, contribua para nos salvar. Na verdade, é esse o ponto de tensão entre Erasmo e Lutero, e o principal tema em debate na Servidão da vontade. A polêmica com Erasmo não versa sobre a liberdade de vontade no sentido filosófico corrente. Lutero se mostra perfeitamente disposto a conceber que os homens tenham liberdade de ‘comer, beber, procriar, governar’, e, até mesmo, a de praticar boas ações em conformidade ‘à justiça da lei civil e moral’. O que faz questão de negar é a definição erasmiana da liberdade da vontade em termos de ‘um poder da vontade humana capacitando o homem  a se dedicar às coisas que conduzem à salvação eterna’. Lutero insiste no contrário: ‘Sendo os homens de carne, e somente apreciando a mesma carne, segue-se que a livre escolha resulta apenas no pecado’, e que todos os homens estão ‘marcados para a perdição, por seu desejo ímpio’. Sem nenhuma esperança, assim conclui a Servidão da vontade que ‘a livre escolha não é nada’, e que os atos virtuosos nenhum valor possuem no tocante à salvação”.
                  “Tais conclusões sugerem a Lutero ainda outra ideia que, diz-nos ele, em certo momento o levou ‘às profundezas abissais do desespero’. Ele concedeu que a impotência do homem é de tal ordem que ele jamais pode nutrir esperança de salvar-se mediante seus próprios esforços. Argumentou que a onipotência de Deus é de tal dimensão que o Deus oculto, ‘que opera tudo em tudo’, necessariamente possui uma completa antevisão de todos os acontecimentos futuros, da mesma forma que conhece tudo o que já se passou. (A essa altura, Lutero até mesmo toma posição no debate escolástico sobre a natureza do conhecimento que Deus tem de tudo oque haverá de acontecer, afirmando que ‘Deus conhece previamente todas as coisas, não de modo contingente porém necessário  e imutável’). A consequência dessas ideias, como ele se vê forçado a reconhecer, é uma doutrina de dupla predestinação: a tese de que alguns homens têm de estar predestinados à condenação eterna. E esse raio, para usar a imagem do próprio Lutero, parecia abrir um abismo insuperável entre Deus e o homem. Deus parece terrível, implacável: é apenas a Ele que compete decidir, o que sem dúvida Ele já fez, quem entre nós haverá de ser poupado. O homem fica inteiramente sem socorro: é possível que todos nós estejamos condenados, e com toda a certeza home algum pode alimentar qualquer esperança de mudar o seu destino”. (Idem, p. 288)
                 “Essa conclusão, uma vez alcançada, provocou em Lutero uma prolongada crise espiritual. Parece ter começado a se afligir já desde 1505, quando, inesperadamente, abandonou a carreira que pretendia seguir no campo do direito, depois de uma série de incidentes pessoais que o traumatizaram, e se decidiu a ingressar no mosteiro agostiniano de Erfurt. A crise parece haver se aprofundado em 1510, ao regressar de uma visita a Roma que o terá deixado, no dizer de Fife, ‘desiludido e em certa medida desalentado’ quanto à cituação da Igreja. O próprio Lutero relata seu estado espiritual naqueles anos na autobiografia que publicou em 1545, como prefácio à edição de suas obras latinas, em Wittenberg. Tentou os tradicionais remédios monásticos do jejum e da oração, mas eles não puderam trazer-lhes qualquer consolo. Voltou-se para o estudo de Agostinho, mas isso apenas confirmou a desesperança que sentia. Estava à beira da blasfêmia, acusando e detestando Deus por dar aos homens uma lei que eles tinham meios de obedecer, para que assim Ele pudesse, com justiça, condená-los por sua desobediência. Diz Lutero que chegou a odiar a própria palavra ‘justiça’ (iustitia), que ele entendia referir-se à justiça de Deus no castigo dos pecadores, e se sentiu incapaz sequer de ler as passagens do Novo Testamento – em particular, as Epístolas de São Paulo – onde se confere lugar central ao conceito de justiça divina”. (Idem, p. 289)
               “Então, após anos de crescente angústia, Lutero de repente teve uma espantosa intuição, que lhe trouxe, em definitivo, o alívio tão ansiado. Com certeza ela lhe veio enquanto se dedicava, no mosteiro de Wittenberg, à mundana tarefa acadêmica de preparar um novo ciclo de palestras, estudando na sala da torre. Lia os salmos e fazia sua paráfrase quando se sentiu tomado por uma interpretação totalmente nova de uma frase estratégica do Salmo 30, ‘Liberta-me em tua justiça’- in iustitia tua libera me. Subitamente ocorreu-lhe que o conceito de justiça divina poderia não se referir a Seus poderes punitivos, mas, antes, a Sua disposição a mostrar misericórdia ante os pecadores, e a jujustificá-los desse modo, libertando-os de sua injustiça. Depois disso, conta-nos Lutero em sua autobiografia, ele se sentiu como se tivesse ‘renascido’, entrando no paraíso por suas portas abertas”. (Idem)
               “Lutero menciona sua ‘experiência na torre’ (Turmerlebnis), tanto na autobiografia quanto nas Conversas à mesa, registradas por Conrad Cordatus conforme vários comentadores procuraram demonstrar nos últimos anos, na verdade constituiu o fruto de uma evolução gradual de seu pensamento. Contudo, os pioneiros no estudo acadêmico do desenvolvimento intelectual de Lutero – em especial Vogelsang, Bornkamm e Boehmer – foram unânimes em afirmar que essa doutrina resultaria de uma súbita epifamia, que todos eles dataram de algum momento do ano de 1513. Essa datação continuará seguramente a causar polêmica, mas está fora de dúvida a importância crucial do episódio do desenvolvimento de Lutero: foi isso que, de um momento para outro, capacitou-o a cobrir o assustador abismo que divisava entre a onipotência divina e a injustiça humana. Foi nesse ponto que finalmente se sentiu apto, sob as instâncias de seu conselheiro espiritual, Johann von Staupitz, a voltar-se para um estudo intensivo das Epistolas de São Paulo, e a compor seus comentários sobra os Romanos, da Gálatas e os Hebreus. A decorrência foi uma teologia inteiramente nova, com base na qual ele pode atacar o papado e toda a Igreja Católica”. (Idem, pp. 289-290)
                     Retomando o assunto tratado da fé em Lutero, Skinner observa que “o cerne da teologia de Lutero reside em sua doutrina da justificação pela fide, ‘pela fé somente’. Ele continua afirmando que ninguém jamais pode ter a esperança de se justificar – isto é, de garantir a salvação – em virtude de suas obras. Mas agora acrescenta que deve estar no alcance de qualquer um a percepção da gratia de Deus – da ‘graça salvadora’ que Ele terá concedido, como um favor fora de proporção com nenhum mérito humano, àqueles a quem predestinou para salvação. Lutero assim se vê em condições de propor que o pecador deve ter por única meta alcançar a fidúcia: uma fé plenamente passiva na justiça de Deus e, em decorrência, na possibilidade de obter a redenção e a justificação por meio de Sua graça misericordiosa”. (Idem, 290)
               “Tão logo Lutero chegou a essa intuição fundamental, todas as demais características que vieram a marcar sua teologia foram encontrados nos devidos lugares. Antes de mais nada, ele se mostrou capaz de expor de forma consistente o conceito de justificação, sustentando sua doutrina de fé. Isso Lutero alcançou pela primeira vez nos sermões e debates de 1518-20, em particular no sermão de 1519 intitulado Duas espécies de justiça. Aqui, ele se afasta decididamente da tradicional ideia patrística da justificação como um processo gradativo de erradicação dos pecados do fiel. Em vez disso, vê a justificação como uma consequência imediata da fides apphrehensiva – de ‘uma fé que apreende a apropriar’, capacitando inesperadamente o pecador a captar por si mesmo a justiça de Cristo, de modo a tornar-se ‘uno com Cristo, tendo a mesma justiça que Ele’. O resultado é uma ênfase extremamente forte na ideia de que a justiça do crente jamais é doméstica – nunca é atingida, menos instilada em nós sem nossas obras, pela graça somente’. O fiel em qualquer ocasião é visto como simul justus et peccator – a um só tempo, pecador e justificado. Seus pecados jamais são apagados, mas sua fé garante que deixem de pesar contra ele”. (Idem)
                 “O passo seguinte de Lutero consistiu em relacionar sua exposição da fé e da justificação com o processo pelo qual a vida do pecador vem a ser santificada. Esse tema seguinte também emerge com clareza, pela primeira vez, nos sermões de 1518-20. O criado agora é descrito como o morador simultâneo de dois reinos – o de Cristo e o das coisas mundanas. A justificação do pecador vem primeiro, e ocorre ‘não aos pedaços, mas de uma vez só’. Como diz Lutero em seu sermão sobre as Duas Espécies de Justiça,  a presença redentora de Cristo ‘traga todos os pecadores num só instante’. O processo de santificação ‘segue-se gradualmente’, tão logo o pecador tenha adquirido a fé. A consequência é uma distinção que ocupa lugar central no pensamento social e político de Lutero, e também subjaz à doutrina que Melanchthon formulará, com tanta influência, das adiaphora: a distinção entre um conceito primário e passivo de justiça, que os cristãos podem atingir no reino de Deus, e uma justiça ativa ou civil, que não faz parte da salvação, mas continua sendo essencial para uma adequada regulação dos assuntos desse mundo”. (Idem, p. 291)
               “O fato de Lutero adotar como eixo sua crença na graça redentora de Deus capacitou-o, ademais, a resolver o cruel dilema formado pelo Velho Testamento, com sua lei que ninguém pode ter a esperança de seguir, e a ameaça de condenação eterna pairando sobre quem não conseguir obedecê-la. Sua resposta, que pela primeira vez se explica na Liberdade de um cristão [ o texto já citado de 1520] assume a forma de uma forte antítese entre as mensagens do Velho e do Novo Testamentos, de uma antítese entre mandamentos divinos de cumprimento impossível e suas promessas de redenção. O propósito do Velho Testamento, diz-nos agora Lutero, consiste em ‘ensinar o homem a conhecer-se’, de modo que ‘possa ele reconhecer sua incapacidade de praticar o bem e possa desesperar-se ante essa incapacidade’ – chegando a um desespero análogo ao que o próprio Lutero sentira, de forma tão aguda. Essa é ‘a estranha obra da lei’. Já o Novo Testamento, em contraste, tem propósito reconfortar-nos que, embora não tenhamos capacidade de atingir a salvação ‘tentando cumprir todas as obras da lei’, podemos, porém, atingi-la ‘rápida e facilmente por meio da fé’. Essa é ‘obra adequada do Evangelho’. A implicação dessa ‘dialética lei-Evangelho’, para usarmos a expressão de McDonough, é que corresponde perfeitamente à experiência individual de pecado e graça, de ‘desespero-fé’. E, com o contraste que Lutero estabelece entre essas duas posições, acrescenta McDonough, retornamos ‘ao âmago e cerne de suas convicções básicas’”. (Idem)
                    “A relação entre essas doutrinas serve, por sua vez, para iluminar mais uma característica da teologia luterana: o significado que, nela, assume Cristo. É por meio de Cristo que os homens recebem o seu conhecimento da graça redentora de Deus. É por meio de Cristo, e somente dele, que nos emancipamos das exigências inatingíveis da lei, e nos chega a ‘boa-nova’ de que a salvação é possível. Isso significa que, a despeito da insistência de Lutero nos poderes de Deus escondido, nada tem ele de místico, no sentido de convidar-nos meramente a contemplar a intangibilidade e infinitude de Deus. Lutero sempre envida o máximo de seus esforços para apresentar sua teologia como uma theologia crucis (teologia da cruz), na qual o sacrifício de Cristo continua sendo chave de nossa salvação. Cristo é ‘o único pregador’ e o ‘único salvador’, que não apenas nos liberta do fardo de nada valermos moralmente, como também serve de ‘fonte e conteúdo do fiel conhecimento de Deus’”. (Idem, pp. 291-292)
             “Diante dessa cristologia de Lutero, parece um tanto equivocado dizer – como fez Troesltsch, em sua clássica exposição do pensamento social de Lutero – que o reformador teria encontrado ‘a revelação objetiva da lei moral’ exclusivamente no Decálogo, e que pera essa lei ‘Jesus e os apóstolos apenas forneceriam a confirmação’. Tal veredito certamente vale para Calvino, cujos olhos o Velho Testamento sempre teve uma relevância moral que sequer necessitava de qualquer mediação. Mas, no caso de Lutero, desse modo se perde de vista o papel transformador por ele atribuído ao sacrifício de Cristo. Pois uma grande diferença entre ele e Calvino é que, segundo o reformador de Wittenberg , Cristo não veio somente para cumprir a lei, mas também para libertar os fiéis de suas exigências, o que efetuou pela força redentora de Seu mérito e amor. Disso se segue que para Lutero, ao contrário de Calvino, sempre será fundamental entender o mandamentos da lei à luz do Evangelho, e não o Evangelho à luz da lei”. (Idem, p. 292)
              “Finalmente, é o solifideísmo de Lutero – sua doutrina da justificativa ‘pela fé somente’ – que está na base dos dois traços centrais de seu conceito herético de Igreja. Primeiro, ele desqualifica a importância da Igreja enquanto instituição visível. Se alcançar a fidúcia constitui o único meio pelo qual o cristão pode esperar a salvação, não resta lugar para a ideia canônica da Igreja como autoridade interposta, medianeira entre o indivíduo fiel e Deus. A verdadeira Igreja não passará de uma invisível gongretio fidelium, de uma congregação de fiéis unidos em nome de Deus. Isso Lutero expôs mediante um conceito de sublime simplicidade, inteiramente contido em sua tese de que a palavra grega ecclesia, que o Novo Testamento costuma utilizar a fim de designar a Igreja primitiva, deveria ser traduzida simplesmente como Gemeinde, ou congregação. Contudo, embora dissesse que ‘uma criança de sete anos sabe o que é a Igreja’ e insistisse na aparente simplicidade de sua doutrina, não foram poucos os mal-entendidos que ela suscitou, levando vários a entender, em especial, que Lutero se dispunha a ‘erigir uma Igreja tal como Platão sua cidade, que não existe em lugar algum’. Em seus escritos teológicos da maturidade, o reformador procurou opor-se a essas obscuridades, acrescentando que, se a Igreja é meramente uma communio (comunhão), também é uma republica, e nessa qualidade necessita ter uma encarnação visível neste mundo. Seu tratado Sobre os concílios e a Igreja, que veio a lume em 1539, até mesmo enumera, com certo destaque, as ‘marcas’ ou sinais considerados necessários (embora  não suficientes) para distinguir uma irmandade que genuinamente constituía um ‘santo povo cristão’ de um mero grupo de papistas ou ‘demônios antinomistas’ (Lutero pensava nos anabatistas), que alegassem ter recebido a luz divina. Ainda introduzindo essas concessões, porém, Lutero continuava a insistir em que a verdadeira Igreja não tinha existência real, exceto no coração de seus membros fiéis. Sua convicção central sempre foi que a Igreja pode ser simplesmente identificada a Gottes Volk, ao ‘povo de Deus’, vivendo da palavra divina”. (Idem, pp. 292-293)
                   “A segunda característica distintiva em seu conceito de Igreja é que, ao enfatizar a ideia da ecclesia como nada mais que uma congregatio fidelium, Lutero também reduz ao mínimo o caráter separado e sacramental do sacerdócio. É disso que resulta a doutrina do ‘sacerdócio de todos os fiéis’. Esse conceito e suas implicações sociais aparecem mais desenvolvidos no seu célebre Manifesto de 1520, dirigido ‘à nobreza cristã da nação germânica’. O reformador aqui argumenta que, se a Igreja é apenas Gottes Volk, só pode haver ‘engodo e hipocrisia’ na pretensão de que ‘papa, bispo, padres e monges sejam chamados estado espiritual, enquanto aos príncipes, senhores, artesãos e lavradores se chama estado temporal’. Lutero deseja abolir todas essas falsas dicotomias, e insistir no fato de que ‘todos os cristãos em verdade pertencem ao estado espiritual’, já que nele figuram, não em virtude de seu papel ou oposição na sociedade, mas apenas graças a sua igual capacitação para a fé, que os torna todos igualmente capazes de ser ‘espiritual e [de constituir] um povo cristão’. Desenvolve essa argumentação, em parte, a fim de sustentar que todos os crentes, e não somente a classe sacerdotal, tem igual dever e condição de socorrer seus irmãos e de assumir a responsabilidade por seu bem-estar espiritual. Mas seu principal empenho consiste, claramente, em reiterar sua convicção de que todo indivíduo que foi um cristão fiel pode relacionar-se com Deus, sem necessidade de qualquer intermediário. O resultado é que em toda sua eclesiologia, bem como no conjunto de sua teologia, constantemente nos vemos reconduzidos à figura – central – do indivíduo cristão, com sua fé na graça redentora de Deus”. (Idem, pp. 293-294)
                 Outro reformador, João Calvino, nascido em França e cursado a Universidade de Paris, Orleans e Burges, formado em Direito, apoiava uma religião, cuja fé, segundo Max Weber, “em torno da qual se moveram as grandes lutas políticas e culturais dos séculos XVI e XVII”. (Weber, p. 90).
Para Weber, o capitalismo desenvolvia-se nas regiões onde se propagava a reforma, mais especificamente na religião calvinista, como nos Países Baixos, Inglaterra e França. Contudo, é interessante observar a definição de “desencantamento do mundo”, conceito este que ajuda a explicar a crise da cristandade marcada pela racionalização da fé e pela descrença nas práticas mágicas presentes na liturgia católica medieval. Exemplo disto, era o enterro protestante com a ausência de cânticos, ou mesmo a ausência de iconografias nas Igrejas.  (WEBER, p. 135)
Ainda conforme Weber,
          “O desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com as mesmas consequências que na religiosidade puritana (antes dela, somente a judaica). O católico tinha a sua disposição a graça sacramental de sua Igreja como meio de compensar a própria insuficiência: o padre era um mago que operava o milagre da transubstanciação e em cujas mãos estava depositado o poder das chaves. Podia-se recorrer a ele em arrependimento e penitência, que ele ministrava expiação, esperança e graça, certeza do perdão e dessa forma ensejava a descarga daquela tensão enorme, na qual era destino inescapável do calvinista viver. Para este não havia consolações amigáveis e humanas, nem lhe era dado esperar momentos de fraqueza e leviandade com redobrada boa vontade em outras horas, como o católico também o luterano”. (WEBER, p. 106)
         De acordo com Delumeau, em 1533, Calvino começava a se fazer protestante, o que se acentua na fuga para Basiléia dois anos depois. Exilado em Genebra, além de leitor da Bíblia, tornava-se pregador e jurista, apoiando o ‘catecismo e a disciplina’. (DELUMEAU, 1989, p. 118) Ainda para o mesmo, “na primeira edição da Instituição Cristã, Calvino como Lutero antes de 1525, ensinava que a Igreja é essencialmente invisível; é o conjunto dos leitos cujos nomes só Deus conhece. Nestas condições, a Igreja humana, visual, é simplesmente local. Sua organização é puramente eventual. O pastor é não se não o delegado dos fiéis que com eles compartilham o sacerdócio universal. (...)”. (Idem, p. 123)
            Para Calvino, “fora da Revelação, de forma nenhuma havia salvação; tese de que decorria de sua concepção de transcendência divina. Segundo o Reformador de Genebra, a distância entre o Criador e a Criatura é incomensurável. Existe arbitrariedade absoluta de Deus relativamente ao Homem. Quando tratar de Deus, a teologia deve portanto ser modesta. (...)”. (Idem, p. 126) A teoria de Calvino propagava que era “necessário ler as Escrituras com a intenção de nelas” encontrarmos o cristianismo. A escritura significava “o espelho de Deus”, todavia, necessitava-se de ter fé. E esta era “graça gratuita”. Ou seja, a salvação pela fé estava designados aos predestinados, que teriam a fé fortalecida pelos sacramentos. (Idem, pp. 127-131)
         Enquanto que a Inglaterra dos Tudor  se estabelecia a Igreja Anglicana, com o cisma de Henrique VIII, a reforma do breve governo de Eduardo IV, o catolicismo conservador de Maria Tudor e finalmente o governo de Elizabeth I (1550-1603), a qual estabelecia definitivamente o Anglicanismo, na Escócia, a Igreja Reformada triunfava com o presbiterianismo. Com a “fuga de Maria Stuart, em 1568, deixou por algum tempo o campo livre aos presbiterianos da Escócia”. (Idem, p. 144)
         Green em Renascimento e Reforma conta que “o embaixador Veneziano Luigi Mocenigo, escrevendo com aquela observação penetrante que surgia com tamanha naturalidade dos diplomatas experimentados da sua monarquia “declarou em meados do século XVI”, que em muitas regiões, “a obediência ao papa quase deixou de existir, e a situação está a tornar-se tão crítica que, se Deus não intervém, não tarda que seja desesperada... O poder espiritual do papa está assim de tal maneira reduzido que o único remédio é um concílio convocado por acordo comum de todos os príncipes. A não ser que isso ponha em ordem os negócios de religião, é de recear uma grave calamidade”. Os católicos devem ter ficado confusos e assombrados por toda a parte com a grande expansão de heresia; a meio século, a Inglaterra, os países da Escandinávia, a Suiça, grande parte da Alemanha, a Polônia e as áreas de língua holandesa dos Países Baixos já todos tinham aceitado a fé protestante; e nem a Itália ficou imune às doutrinas dos reformadores. A Igreja Católica, chefiada por papas não reformadores, cuja política era ditada por interesses familiares e seculares, bem podia ter exigido um concílio convocado por acordo comum de todos os príncipes. A não ser que isso ponha em ordem os negócios da religião, é de recear uma grave calamidade’. Claro está que foi a Contrarreforma que surtou a podridão no seio da igreja e levou a um melhor critério de vida, de oração e de saber, e até a recuperação de algumas terras perdidas para os protestantes. Se à Igreja Católica surgiu com um diminuto de adeptos nos meados do século XVII, estava, no entanto, mais viva em 1660 do que tinha estado no começo do século anterior”. (GREEN, 1984, p. 199)
                O autor ainda continua afirmando que “todos os movimentos principiam com um pequeno grupo de homens que pensam mais para além dos seus contemporâneos e sofrem muitas vezes perseguições ou, pelo menos, censuras por causa disso; e, no entanto, acabam por afectar a história futura muito mais diretamente do que o maior parte dos outros homens. Se quisermos buscar uma fonte originária da Contrarreforma teremos de nos virar para o chamado do Oratório do Amor Divino, uma sociedade de padres que alimentava a esperança de alimentar a sua vida espiritual através da oração em comum e as obras de caridade. Fundada cerca de 1517, a sociedade alargou-se de Roma a outras cidades italianas, incluindo Verona, Vicenza, Bresua e Veneza. Os seus membros suscitaram gradualmente a atenção e mesmo a simpatia da corte pontifícia. O nepotista Paulo III elevou seis deles ao cardinalato, incluindo o ingles Reginald Pole e o talentoso Pietro Caraffa, o futuro papa Paulo IV. Ordenou-lhes também que eles vieram a apresentar em 1538 com o título Consilium de emendanda ecclesia. Esse documento era duma excepcional franqueza, embora mais retrógrado do que progressista nas suas recomendações. Primeiro, assinalava os abusos correntes, comentando asperadamente a conduta de papas anteriores. E foi esta a fonte, Santo Padre, donde, como do cavalo de Tróia, todos os abusos irromperam no interior da Igreja... mais importante é que o Vigário de Cristo nunca se considere com liberdade de usar o poder das chaves para obter lucros’. A comissão condenou a não residência de bispos e párocos, o sistema das dispensas papais e os métodos de nomeação para os cargos da Igreja. Atacou a sinomia e comentou azedamente o estado de alguns mosteiros. “Finalmente há abusos que afetam Vossa Santidade como bispo de Roma – os padres desleixados e ignorantes, até mesmo em São Pedro, e as prostitutas que passeiam à luz do dia pelas ruas, acompanhadas por clérigos e membros das casas dos cardeais – que nunca se viu coisa semelhante em nenhuma outra cidade’. Mas esta linguagem franca era inoportuna e o papa proibiu a publicação do relatório. No entanto, este episódio foi significativo porque mostrou que a necessidade da Reforma atingira os mais altos escalões da Igreja e que semelhante reforma apenas vingaria se o papa fosse ele próprio reformador”. (Idem, p. 200)
                 “Apesar de tudo, as semelhantes reformas tinham sido bem espalhadas. Surgiam por toda a Itália ordens religiosas novas ou reformadas, inspiradas com frequência pelos membros do Oratório. Algumas delas fundaram-se segundo  as linhas tradicionais. Estão neste caso os Camáldulas ou Camaldulenses, uma ordem de monges eremitas renovada por Paulo Giustiniani, e os Capuchos ou Capichinos, nascidos do desejo de Matteo de Bascio dum regresso aos elevados ideiais e à austeridade pastoral de São Francisco de Assis que a sua ordem de frades parecia ter desprezado. Os capulechos de hábito de busel castanho e sandálias nos pés, usando um capuz de quatro pontas que lhes deu o nome, muito fizeram por ressuscitar o sermão como instrumento evangelizador; e, muito especialmente, robusteceram a influencia da igreja através da sua ação caritativa entre os camponeses miseráveis dos grandes latifúndios da Itália. Reconhecidos por uma bula pontifícia em 1528, em resultado da infatigável energia de Ludovico di Tossonbrone, os Capuchos sobreviveram à hostilidade dos superiores dos Observantes e à apostasia protestante do seu terceiro vigário geral, um pregador de grande fama. Bernadino Ochino, em 1542; e em 1619 já contavam com mais de 1500  casas. Sob certos aspectos, as novas ordens de clérigos regulares, criando grupos de trabalhadores disciplinados e organizados, mas não monásticos, revelavam-se um fator ainda mais eficaz do renovo de vida espiritual no seio da Igreja e, por último, sobretudo mediante a ação dos jesuítas, trouxeram de volta para o Catolicismo áreas que pareciam perdidas para os protestantes. Os Teatinos, fundadados em 1524 por Gaetano di Trene e gozando a proteção de Caraffa, então bispo de Chieti (em latim, Thiete, donde o nome da ordem), não eram nem monges nem frades, mas uma comunidade de padres seculares que viviam juntos sob votos monásticos de pobreza, castidade e obediência. Eram pouco  numerosos e o saque de Roma em 1527, que os obrigou a saírem de Veneza, reduziu a sua influência espiritual. Os Barnaditas, estabelecidos em Milão, em 1533, que se dedicavam à criação e educação dos jovens, e os Somascos, que fundaram orfanatos, foram outros exemplos das novas ordens de padres seculares que formaram a guarda avançada do reencontrado fervor religioso, o qual atingiu o seu clímax na Companhia de Jesus de Inácio de Loyola...” (Idem, pp. 200-201)
          Sobre o Concílio de Trento, Green afirma que “a contrarreforma devia concentrar-se finalmente nos trabalhos realizados na cidade imperial de Trento, donde, em três reuniões efetuadas em 1545-49, 1551-52, 1562-63, a Igreja se debateu com os problemas que a tinham dividido e ameaçado aniquilá-las, as suas relações com o Protestantismo e a necessidade de pôr a sua própria casa em ordem e de definiu com maior precisão a sua fé. Não demorou a verificar-se que nenhum compromisso era possível com o Protestantismo; os únicos termos em que os hereges podiam ser readmitidos na Igreja eram os duma rendição incondicional. Nos fins do século XVI, o número dos católicos tinham-se reduzido grandemente com a secessão de calvinistas, luteranos e anglicanos, mas essa diminuição foi contrabalanceada em parte pelo êxito conseguido quanto aos outros objetivos do Concílio. Os padrões da vida religiosa foram inesperadamente melhorados. A fé foi sistematizada de maneira completa e erudita. A revolução tridentista, pois não se tratava de menos que isso, iria ser, portanto, um feito permanente na história mundial”. (Idem, p. 199)
           Por fim, segundo Green, o “Concílio assentou que a sagrada escritura, cuja exposição competia exclusivamente à Igreja, e a Tradição tinham igual autoridade, isto em contradição expressa com a superior importância dada à Bíblia pelos protestantes sobre o pecado original e a justificação pela fé. Os representantes do império opuseram-se  uma ruptura tão profunda,  a qual iria com certeza agravar as dificuldades do imperador na Alemanha e, como seria natural, o debate que se seguiu causou azedumes sérios (...)”. (Idem, p. 211)
        Na Espanha, segundo Elliot, a relativa paz terminava com o encontro de um grupo de protestantes no centro de Castela: Valladolid e Sevilha em 1558. Nestas regiões, encontravam-se práticas heterodóxicas, como a recepção das ideias de Erasmo de Roterdam. Neste sentido, havia um limite do poder da linhagem e da limpeza de sangue impostos pelo Santo Ofício. Ao conseguir o hábito de uma das ordens militares o indivíduo tornava-se distante do alcance do inquisidor. (ELLIOTT, 2005, pp. 227-232)
         Neste contexto, um grupo de cristãos velhos com “mentalidade tradicionalista” decidiram defender a cristandade católica sob a hegemonia espanhola, perseguindo os chamados “iluministas” e “erasmitas”. Esse acirramento pela ortodoxia ocorria em decorrência do Concílio de Trento. A Espanha do Renascimento aberta às ideias de Erasmo e dos humanistas, transformava-se de modo efetivo na semi-fechada Espanha da Contrarreforma. “Isto foi parte, resultado de uma transferência gradual de poderes a personagens tão rígidos como Hernando de Valdés (inquisidor geral a partir de 1547) e Melchior Cano, o formidável teólogo dominicano. Mas também refletia um novo esfriamento do clima espiritual europeu. Ao converter-se Genebra no centro do novo protestantismo mais dogmático se esfumaçaram as últimas esperanças de uma reconciliação entre Roma e os protestantes. Por todas as partes extendia-se um novo espírito militante. Genebra preparava para a batalha com suas imprensas e seus pastores. Roma, novamente formulava seus dogmas no Concílio de Trento, preparando-se para a batalha com seus jesuítas, sua Inquisição e seu Index”. (Idem, p. 241)
      “Em esta atmosfera de conflito iminente se produzia, em 1557 e 1558, o sensacional descobrimento das comunidades protestantes de Valladolid e Sevilha ditas acima. Ainda que estas comunidades mantivessem certos contatos com Genebra e pudessem haver chegado à conversão em autênticos grupos protestantes, pareciam ser que na época que foram descobertas se aproximavam mais às antigas comunidades de alumbrados. Seu caráter se pede adivinhar facilmente pelo fato de que se contava entre elas dois conhecidos personagens do círculo humanista cosmopolita que rodeava o imperador: o doutor Constantino Ponce de la Fuente (antigo confessor de Carlos V) e o Doutor Augustín Cazalla (um dos predicadores favoritos do imperador). Vinte anos antes, um homem como Cazalla havia recebido pouco mais de uma pena pequena. O fato de que agora fosse aprisionado e queimado era um sinal de mudança que havia produzido no clima religioso”. (Idem, pp. 241-242)
             “A violência da reação da Inquisição pode ser, em parte, atribuída a seu desejo de melhorar sua posição aos olhos da Coroa, contudo, demonstra também um alarme real ante os patentes progressos da heresia, pesando todos os esforços da repressão. Esta vez no se podiam ser liquidadas, senão que se teriam que realizar maiores esforços para proteger a Espanha da contaminação estrangeira. Assim, no dia 7 de setembro de 1558, a irmã de Felipe II, a infanta Juana, atuando como regente de seu irmão, firmava um decreto que proibia a importação de livros estrangeiros e ordenava que todos os livros impressos em Espanha deveriam levar a licença do Conselho de Castela. No ano seguinte outro decreto proibia os estudantes espanhóis de cursar estudos no estrangeiro”. (Idem, p. 242)
            “A lei de 1558 não era na realidade a primeira tentativa de implantar uma censura na Espanha. Um decreto de 1502 ordenava que todos os livros impressos em Espanha ou importados levassem uma licença real, que podia ser concedida pelos residentes das audiências ou pelos arcebispos e alguns bispos. Ademais, haviam existido também proibições periódicas de certas obras. Fernando e Isabel haviam proibido, por exemplo, a leitura das sagradas escrituras na língua vernácula, mas parece que seu decreto era principalmente dirigido contra os conversos, e até 1551 a proibição não chegou a ser universal e definitiva”. (Idem, p. 242)
           “Em 1545, a Inquisição havia confeccionado o que parece ser o primeiro índice espanhol e este veio seguido logo por outro em 1551. O índice romano de 1559 não tinha, sem embargo, a validade na Espanha. Em seu lugar, o Inquisidor Geral Valdés demarcou o crivo da lei de censura de 1558 publicando, em 1559, um novo índice espanhol que aumentava consideravelmente o de 1551. O índice de 1559 era em alguns aspectos extraordinariamente severo: proibia o Enchiridion de Erasmo e outras muitas obras religiosas que gozavam de um amplo fervor popular. Ademais, a Inquisição impôs suas decisões com uma severidade sem precedentes. Se procedeu um metódico registro para dar com todos os livros proibidos e se encarregou o arcebispado da tarefa de organizar uma inspeção sistemática das bibliotecas públicas e privadas”. (Idem, pp. 242-243)
        “As medidas de 1558-1559 produziram indubitavelmente um golpe muito duro na vida intelectual espanhola. Ao cortar os livros estrangeiros e aumentar as restrições sobre os escritos teológicos e devocionais, olharam inevitavelmente para a confiança dos homens de letras espanhóis e acrescentaram uma nova barreira a muitas que se levantaram então em Europa para impedir a livre circulação de ideias. Resulta, sem embargo, difícil determinar a duração das consequências de tudo tendo em conta que a substituição em 1566 do inquisidor Espinosa modificou em parte a severidade dos primeiros momentos. Resulta igualmente difícil determinar até que ponto se viam afetadas as relações de Espanha com a comunidade cultural europeia. A proibição para os espanhóis de realizar estudos no estrangeiro limitou evidentemente uma benéfica fonte de contatos com as ideias nascidas no exterior, mas parece que a proibição não chegou a ser total e na segunda metade do século XVI ainda se encontrava alguns espanhóis favorecidos nas universidades na Itália e de Flandres seguindo e sendo naturalmente muito estreitos. O professor Arias Montano, por exemplo, se mudou em 1568 a Flandres, seguindo ordens de Felipe II, para organizar a preparação em Amberes de uma edição revisada e aumentada da Bíblia Poliglota do cardeal Cismeros. Mas sobretudo não se produziu nenhuma ruptura com as estreitas relações culturais entre Espanha e Itália. Desde o século XV, a Itália havia sido uma fonte constante de inspiração e artística para a Espanha, que, por sua vez, transmitia as ideias italianas e as suas próprias para França e o Norte da Europa. Esta corrente até o Norte da cultura da Europa meridional, através da Espanha, não se viu afetada pelas crises religiosas europeias de 1550-1560 e, desde logo, a influencia espanhola sobre a vida cultural do Norte seguiu em aumento, reforçado por todo o prestígio do poderio espanhol e pela extraordinária qualidade e variedade das realizações literárias e artísticas espanholas a finais do século XVI e princípios do XVII”. (Idem, p. 243)
           “Os decretos de 1551, 1558 e 1559 respingaram na Espanha e até mesmo no estrangeiro. Do ponto de vista religioso, formava parte da comunidade internacional da contrarreforma europeia, mas esta comunidade só abarcava meio continente. A Europa estava agora dividida e cada parte havia levantado suas barreiras frente as crenças religiosas da outra parte. Neste conflito internacional de finais do século XVI, a posição dominadora da Espanha e sua vulnerabilidade potencial a fizeram extraordinariamente sensível aos perigos da subversão religiosa e respondia com um excepcional espírito de seleção ante os produtos das estruturas estrangeiras, submentendo-lhes a um minucioso exame antes de permitir sua entrada no país”(Idem, p. 244)
           Ainda que Espanha estava afirmando sua posição frente à entrada indiscriminada das ideias estrangeiras, também estava em curso de determinar suas relações com a cabeça suprema da Europa da Contrarreforma, uma relação destinada a exercer uma importante influencia no resultado da sua luta contra o protestantismo internacional. Durante o reinado de Carlos V, as relações entre os papas e um imperador que tinha importantes interesses territoriais na Itália, haviam sido particularmente conflitantes. Durante o pontificado do fanático anti-espanhol  Paulo IV (1555-1559) Espanha e a Santa Sé haviam chegado à guerra declarada. Ao morrer Paulo IV no ano de 1559, Felipe II utilizou sua influencia no conclave para assegurar a eleição de um papa más manejável, Pio IV, que se via também envolto em um desacordo com a Espanha, que obscureceu uma vez mais as relações entre Roma e seu poderoso aliado”. (Idem, p. 244)
               “A disputa nasceu de uma questão que pode considerar-se como uma nova e quiça definitiva etapa na luta dos conservadores para assegurarem-se do controle do cardeal Carranza. Bartolomé de Carranza era de família pobre, mas fidalgo. Nascia em Navarra em 1503, havia se educado em Alcalá e logo havia ingressado na ordem dominicana. Depois de estudar no colégio de San Gregório, em Valladolid, donde lhegó a ser professor de teologia, em 1545 foi enviado como delegado ao Concílio de Trento. Havia ganhado uma grande fama de teólogo de Trento, acompanhando a Felipe II a Inglaterra e alí se converteu em conselheiro religioso de Maria Tudor e um inimigo acérrimo do protestantismo inglês. Em 1559, voltou a Flandres, onde realizou investigações em torno do tráfico clandestino de literatura herética com a Espanha. Esta rápida carreira podia parecer uma preparação ideal para o posto para o que então designou Felipe II, o de arcebispo de Toledo, superior do cardeal Siliceo, mas em agosto de 1559, quando ainda não havia um ano que ocupava o arcebispado, foi inopinadamente demitido pelos oficiais da inquisição. Durante dezessete anos, primeiro em Espanha e logo em Roma, esteve encarcerado, e quando por fim saiu da prisão, era um destroçado ancião de setenta e três anos que morreria uns dias depois”. (Idem, pp. 244-245)
           “O mistério que rodeava a detenção de um homem que podia parecer o primado ideal para Espanha na nova época de guerra religiosa aberta, nunca havia sido completamente esclarecido, no entanto, Constanza, por razões boas ou más, tinha muitos e poderosos inimigos. Teve provavelmente a má fortuna de ser designado para ocupar a sede arquebispal em uma época em que o rei ainda se fixava no estrangeiro e não podia consultar seus assessores do Conselho da Inquisição. Carranza teve também a desgraça, como seu antecessor SIliceo, de ser um homem de origens relativamente humildes. Por segunda vez, prelados de famílias mais aristocráticas haviam sido despachados da rica sede toledana. Entre os que esperavam seu chamamento, figuravam dois filhos do conde de Lemos, Dom Pedro de Castro, o bispo de Cuenca, e seu irmão Dom Rodrigo, e os irmãos Castro obtiveram o poderoso despojo de Valdés, o Inquisidor Geral, que era também um candidato poderoso. Constanza não podia esperar tampouco receber grande ajuda dos outros prelados espanhóis, pois havia cometido a imprudência de publicar um livro que continha severíssimas críticas contra o absentismo episcopal. E o que ainda era pior, se havia ganhado, desde tempo atrás, a inimizade de um dominicano que era agora o principal conselheiro religioso de Felipe II. Era este o teólogo Melchor Cano. Cano havia sido rival de Carranza no colégio de San Gregório de Valladolid, onde os estudantes se haviam dividido em dois partidos opostos, o dos canistas e o dos carranzistas, e sua aversão por Carranza se havia visto aumentada por seu êxito no Concílio de Trento”. (Idem, pp. 245-246)
       “Os ódios de classe e pessoais desempenharam, portanto, um papel importante na aspiração contra Constanza, mas também parece provável que o arcebispo fosse uma vítima a mais na campanha dos tradicionalistas espanhóis contra os pretendidos teólogos liberais que haviam recebido influencias do estrangeiro. Apesar de sua carreira como perseguidor de hereges, Carranza, que havia viajado por toda a Europa com o imperador, podia muito bem ser classificado, junto com o herético doutor Cazalla, como homem contaminado pelo contato demasiado frequente com o cristianismo erasmista do Norte da Europa. Também Siliceo era tampouco ortodoxo, era intocável e tinha também bastante inimigos. Como os inquisidores puseram então mãos a obra, colocaram uma semente de dúvida no espírito de Felipe II e o próprio primado de Espanha se viu aprisionado por suspeita de heresia”. (Idem, p. 246)
“(...)
         “As lutas entre Felipe II e o papado servia somente para debilitar as forças da contrarreforma, em uma época que eram muito necessários os acordos. Não pode tão pouco provocar uma ruptura aberta, pois Roma necessitava da ajuda militar espanhola, ainda que Felipe II necessitava dos ingressos que lhe proporcionava a Igreja e o prestígio que só o papa podia outorgar-lhe em sua luta contra a heresia. Mas existia entre ambos uma espécie de guerra surda, em que Felipe II fazia quando pode estender o seu controle sobre a Igreja espanhola e exportar seus recursos financeiros e políticos. A inquisição foi devidamente reduzida a pouco mais que um departamento de Estado. Os enormes ingressos na sede toledana foram expropriados pela cora durante os dezessete anos que durou o processo de Carranza. Os decretos tridentinos foram finalmente publicados em 1565, mas só de um modo provincial que garantia à coroa a continuação de sua influencia na jurisdição eclesiástica e nas investiduras episcopais, e, em 1572, os breves pontifícios que citavam os espanhóis ante tribunais estrangeiros por casos eclesiásticos foram declarados nulos e sem vigor e o rei insistiu em seu direito de examinar as bulas papais e, em caso de ser necessário, proibir sua publicação em seus domínios”. (Idem, pp. 247-248)
           “Ainda que o interesse de Felipe II pela manutenção e extensão das prerrogativas redes era muito natural, seu comportamento demonstra também que no fundo de seu coração considerava a religião como um assunto demasiado sério para deixa-lo ao papa. Temeroso da heresia não quis confiar em ninguém e somente a si mesmo e nos agentes por ele escolhidos. (...) Quis converter Espanha em uma inexpugnável fortaleza contra cujas muralhas se atingiam em vão as heresias que invadiram a Europa. Ainda que nenhuma fortaleza pode ser inexpugnável pois havia traidores em seu interior, pode parecer a primeira vista difícil de justificar as medidas tomadas contra os suspeitos de heresias. O punhado de alumbrados, dignos de compaixão, que fora a dar nas masmorras da inquisição não aceitavam – ou resulta muito difícil crer – a montagem de toda uma maquinaria tão formidável. (...)”. (Idem, pp. 247-248)
            Em Portugal, o campo dos poderes, como descreve Francisco Pittencourt, “sofria uma profunda transformação durante o longo século XVI, que passava pela reorganização da coroa – desenvolvimento da burocracia régia e a criação de um sistema de conselhos, soldando-se no alargamento das competências e da esfera de intervenção da hierarquia - , pela reforma da Igreja – reconstituição da hierarquia, controle do clero, reforço da ação pastoral e do disciplinamento da população - , por novas formas de articulação com os ‘velhos’ poderes territoriais – senhorios e conselhos – e pela difusão de importantes formas de ação social – misericórdias, confrarias, instituição de capelas”. (BITTENCOURT, 1993, p. 149)
            “São processos de diferenciação e de dominação social extremamente complexos, que não podem ser observados na óptica redutora da ‘construção do Estado’ ou dos ‘mecanismos disciplinares, sob pena de cairmos quer no anacronismo das abordagens institucionais’ clássicas, quer na simplificação da análise do Poder centrado no controle dos comportamentos. Alguns pressupostos norteiam este inquérito. Em primeiro lugar, uma concepção relacional de poder enquanto capacidade de decidir e de influenciar decisões. Nesta perspectiva, os diversos corpos e organismos em presença devem ser vistos como ‘nebulosas’ cujos contornos (e cujas posições) resultam justamente dos processos de interação. Em segundo lugar, uma concepção social do campo dos poderes. Daí a valorização da ação dos diversos grupos de agentes, quer ao nível da burocracia régia ou da burocracia eclesiástica, quer ao nível das iniciativas, aparentemente mais ‘espontâneas’, de constituição de misericórdias e de confrarias – iniciativas fundamentais para se compreender a dinâmica dos processos de solidariedade e de dominação. Em terceiro lugar, uma concepção ‘plástica’ das formas de distinção, entendidas como afirmação do poder. É neste âmbito mais difuso que há que valorizar a “sociabilidade da mente’ – os legados pios, a instituição de capelas, o investimento e apropriação dos espaços sagrados das igrejas”. (Idem)
         “O corpo da Igreja é um espaço privilegiado de observação do campo dos poderes nesse período. Por um lado, esse corpo não é uniforme nem compacto, por vezes de contornos mal definidos e com interesses nem sempre coincidentes. Por outro lado, a Igreja é investida pela ação de outras corporações e de outros grupos de agentes, que a procuravam envolver nas suas próprias estratégias. Esta visão da Igreja como um espaço (relativamente) aberto ou como um corpo ‘exposto’, embora permitia compreender melhor as interações a que está sujeita, não impede que se considere a estruturação  de uma hierarquia consistente e de diversos organismos com interesses próprios, que participavam justamente desse jogo de interações – numa palavra, não se podem separar as relações internas das relações externas. (Idem)
          “A forte presença da Igreja na sociedade é um elemento fundamental de atração do investimento simbólico. Os principais ritos de passagem – batismo, casamento e morte – consagrados como sacramentos pela igreja, são definitivamente enraizados nessa época. A união por palavras de presente, ainda praticada largamente na primeira metade do século XVI um pouco por todo o território continental (sobretudo no Sul), decai em resultado do controle sistemático da população exercido pelo clero. O respeito pelos sacramentos do batismo e pelo sacramento da extrema-unção, já observável em épocas anteriores, conhece uma maior difusão, que deve ser relacionada com a nova exigência de cumprimento de funções imposto ao clero pela hierarquia. As deslocações dos clérigos são investidas de um cerimonial mais elaborado, que tem como correspondência uma gestualidade dos leigos mais reverente na presença da cruz ou da história sagrada. As procissões tornam-se mais complexas, envolvendo algumas delas, como a do Corpos Cristi, a representação hierarquizada dos diversos corpos constitutivos da sociedade urbana. A difusão de confrarias, que envolvem por vezes centenas e milhares de pessoas, cria laços de sociabilidade horizontais ou verticais estruturados em torno de novas vivencias do sagrado. Numa palavra, o quotidiano da população é pontuado por símbolos e práticas religiosas cuja administração é exercida de uma forma cada vez mais eficaz pela igreja” (Idem, pp. 149-150)
             Em Portugal, “a inquisição, criada em 1536, pelo papa sob pressão de D. João III, afirmava-se com o duplo estatuto de tribunal eclesiástico e de tribunal da coroa. Tribunal eclesiástico, pois funciona com poderes delegados pelo papa, tem como objetivo a perseguição doas diversas formas de heresias e os seus juízes são clérigos. O alargamento sucessivo da respectiva área de atuação do judaísmo, islamismo e luteranismo à bruxaria, sodomia, bigamia, comércio ilegal com o Norte da África, proposições heréticas e blasfêmias encontra uma cobertura no direito canônico. Tribunal da coroa, pois o inquisidor-geral é nomeado pelo papa sob proposta do rei e os membros do Conselho Geral são nomeados pelo inquisidor –geral, após o rei ser consultado. Aliás, a cora é informada regularmente sobre a atividade do Santo Ofício, interferindo nas suas decisões e atribuindo explicitamente ao Conselho Geral o estatuto de conselho régio”. (Idem, p. 148)
              “O duplo estatuto da inquisição, a sua composição – clérigos seculares com formação em direito canônico – e a lógica burocrática de promoção – os membros do Conselho Geral são recrutados quase exclusivamente de entre os inquisidores – explicam o desenvolvimento de uma estratégia relativamente autônoma que se sobrepõe à ação da Igreja, mas não pode ser confundida a três níveis: a) o controle do clero (heresias, solicitação, comportamento moral) – talvez a função mais importante mas menos visível; que coloca os inquisidores num estatuto mais prestigiado do que o dos seus confrades; b) a formação de quadros, que serão aproveitados para a administração da Igreja ou para a administração da Coroa (bispos, desembargadores, juízes, conselheiros); c) o controle a disciplina da população (atitude que até agora tem sido estudada). Em todo o caso, a Inquisição sujeita sistematicamente qualquer tentativa de interferência por parte da Igreja, reclamando uma ligação direta e sem intermediários com o rei – durante o período de unificação das coroas, nomeadamente depois da partida do cardeal Alberto, que acumulava funções de vice-rei com as de inquisidor-geral, a inquisição portuguesa passou a ter um agente permanente em Madrid. Contudo, a Inquisição teve dificuldades em estender a sua ação a todo o território continental, devido à resistência passiva de setores da Igreja: a introdução do Santo Ofício na diocese de Algarve, se excetuamos algumas ações anteriores sem grande impacto, só se verifica verdadeiramente nos anos de 1630”. (Idem, pp. 148-149)
              “A autonomia do Santo Ofício face à Igreja tem consequências evidentes ao nível da estruturação do campo dos poderes, mas não deve ser considerada de uma forma estanque, pois as interpretações burocráticas, a complementariedade de funções e até mesmo a convergência de interesses é visível em certas conjunturas. Neste período, pode-se constatar a articulação de funções entre as visitas pastorais e as visitas inquisitoriais. As visitas pastorais, cujas preocupações incidiam sobretudo no estado temporal das igrejas e até as primeiras décadas do século XVI, vão, a pouco e pouco, deslocar o eixo do seu inquérito para o comportamento do clero e da população. As visitas inquisitoriais, embora assumam o modelo itinerante das primeiras, concentram-se imediatamente, no início das décadas de 40, no controle do comportamento e das crenças das populações. Como se vê, há contaminações recíprocas, verificando-se uma passagem de informação nos dois sentidos, devido à diversidade de competências e de jurisdição, que podem conduzir, inclusive, à transferência frequente de presos entre uma e outra instituição”. (Idem, p. 149)
                Na França, também as ideias luteranas e calvinistas foram presentes. Para Delumeau, “Embora a Igreja francesa não tenha se reformado em profundidade, as ideias de Lutero conheceram um rápido progresso no reino. (...)”. (Idem, p. 145). O Protestantismo mantinha-se com uma grande diversidade de estratificações sociais, inclusive entre a nobreza. Segundo o mesmo, “a adesão à reforma de uma larga fração da nobreza de França foi um fato de grande consequência. Em primeiro lugar, levou as comunidades protestantes, nas imediações de 1560, a se colocarem sob a proteção do senhor huguenote mais próximo. E progressivamente os reformadores de todo o país tiveram a ideia de enfileirarem atrás de um ‘protetor’ geral. Em seguida, porque a fidelidade vassálica era ainda uma realidade viva, os grandes senhores arrastavam atrás de si os pequenos fidalgos, e uns e outros os seus camponeses. Era tamanha a difusão do Protestantismo em França que Coligny, em 1562, podia falar de pelo menos 2150 comunidades reformadas no Reino. O curda da província estaria exagerando ao afirmar que um quarto da França tinha se tornado protestante?” (Idem, p. 148)
                     No princípio do século XVI, “os grupos heréticos deviam ser principalmente Luteranos, mas com referencia ao Lutero anterior a 1525, o que enfatizava resolutamente o diálogo interior da alma com Deus e negligenciava a organização exterior da Igreja. Tratava-se em suma de piedosas comunidades, sem estreita hierarquia e sem laços sólidos umas com outras. Era o protestantismo do livre congregarionismo. Nas reuniões, pouca preocupação havia com sacramentos, mas liam-se com fervor as Escrituras. Esses primeiros Reformadores franceses – digamos esquematizando os de antes de 1555 – convertiam mais pelo exemplo que pela propaganda. Obrigado a uma semiclandestinidade, continuavam por vezes a seguir as cerimônias católicas e a receber os sacramentos da Igreja romana. Porém, esse ‘nicodemismo’ não era do gosto de Calvino que por esse tempo organizava de maneira rigorosa a Igreja visível de Genebra. Ora, o reformador acompanhava de perto os negócios da França. Não fora para defender seus concidadãos martirizados que redigira a primeira versão da Instituição Cristã, cujo prefácio era dirigido a Francisco I? Ele levou a peito a estruturação do Protestantismo francês e a ereção de Igrejas num país onde só existiam até então múltiplos grupinhos de professos mal organizados. Eviatar-se-ia deste modo a anarquia e os gestos irreflectidos; assim, os Reformados se sentiriam mais fortes e poderiam deixar de sacrificar com rito de idolatria romana. O estabelecimento de um corpo de Igreja não seria a própria condição da distribuição dos sacramentos em cada comunidade? Porque, se isso fosse possível e o ‘microdemismo’ inevitável, seria preferível para os Protestantes abandonar tudo e vir para Genebra”. (Idem, p. 149)
“Os primeiros grupos de protestantes que organizaram em França a celebração da ceia, foram, parece, os de Saint-Foy (1541), de Aubigny e Meaux (1542), de Tours e Pau (1545). Mas foi sobretudo a partir de 1555, que Calvino, cuja posição estava nessa altura consolidado em Genebra, tomou a cargo as Igrejas reformadas do reino. Muito naturalmente estas acolheram com simpatia a mensagem e as instruções daquele que falava a língua e era um dos seus. Vieram de Genebra alguns pastores para assumirem a direção das mais importantes comunidades protestantes: 88 no mínimo entre 1555 e 1562 talvez 120 entre 1555 e 1565. O culto à Genebra organizou-se em Paris precisamente em 1555, porque um nobre exigiu o batismo de seu filho segundo o rito reformado. Desde então foram ‘exigidas’ igrejas de tipo calvinista um pouco por toda a parte: a lista do pastor Mours permitem afirmar que existiam mais de 670, em fins de 1561, no território da França...” (Idem, pp. 149-150)
              O calvinismo espalhava-se no território francês, “no colóquio de Poissy (a partir de setembro de 1561), do qual Catarina de Médicis e Michel de L’Hospital esperavam a reconciliação religiosa do reino, foi Theodore de Beza quem expôs a crença reformada. Ele foi cortês e fascinante, mas sua doutrina da Eucaristia fez malograr o colóquio no momento em que a fórmula luterana parecia aceitável a pessoas tão diversas como o cardeal de Lorena, o cardeal de Châtillon (conquistado para a Reforma) e Michel de L’Hospital. Beza declarou: “O corpo de Cristo está distante do pão e do vinho tanto quanto o ponto mais alto do céu está próximo da terra’. O cardeal de Lorena se irritou: ‘Ele blasfemou’. O geral dos jesuítas, Laimez, ficou então em boa condições para remeter os católicos para as decisões do Concílio de Trento, ainda não encerrado nessa altura, e para ameaçar de excomunhão aqueles que continuassem a discutir com ‘esses macacos e essas raposas’”(Idem, p. 151)
            A religião na França era um problema de fragmentação do poder monárquico dos Valois, “Henrique II estava decidido a combater sem dó os Protestantes. Em compensação Catarina de Médicis, Francisco I, Carlos IX e Henrique III não combateram os Protestantes senão intempestivamente. No Século XVI, a política régia francesa foi totalmente falha daquela coerência subentendida no vocábulo ‘Contra-Reforma’. Menos de um ano após a noite de São Bartolomeu, Carlos IX concedia aos calvinistas o Edito de Bolonha (julho de 1573) que lhes prometia a liberdade de consciência e o livre acesso a todas as funções e empregos. Em contrapartida, existia os Guises e arruinou a Liga a vontade de destruir o Protestantismo. Essa Liga, com ardente piedade, fanatismo, procissões de monges, foi verdadeiramente um típico fenômeno da Contra-Reforma. Ela não conseguiu se manter no poder na França do século XVI....” (Idem, p. 165)
              Embora tenha causados várias disputas políticas, a reforma na França era minoritária. “Todavia, entre 1555 e 1572, pôde se perguntar se o pais não iria pender para o lado do Protestantismo. Que causas o retiravam finalmente nesse pendor? Antes de mais, o clero francês e sobretudo o Episcopado estavam provavelmente menos abaixo de sua missão em nosso país que na Alemanha, Inglaterra ou Países Baixos. Além disso, reis e rainhas de França, não obstante numerosas hesitações, se decidiram pelo Catolicismo. Sua autoridade fêz, portanto, sentir em favor desta confissão. O parlamento de Paris, mais galiciano e mais ortodoxo que o soberano, não deixou por seu lado de agir contra o Protestantismo em seu imenso poder. Não foi por acaso que a Reforma não se manteve solidamente senão nas regiões periféricas do reino. Em conclusão, o papel desempenhado por Paris foi essencial. Única cidade verdadeiramente importante do reino, ela impôs suas preferencias. Ora, a despeito de manifestações reformadas de uma certa amplitude – em 1558 e 1561 por exemplo – a capital permaneceu fiel ao catolicismo”. (Idem, p. 175)
                 “No começo do seu reinado, Francisco I não se mostrou de sistemática hostilidade às novas ideias. À volta dele algumas pessoas se inclinaram para a Reforma ou pelo menos para o Evangelismo. Besquin era membro do seu conselho, Margarida de Angoulêne entretinha seu irmão predileto em sentimentos de tolerância. O parlamento de Paris se aproveitou do cativeiro do rei para tomar medidas rigorosas contra os luteranos. A partir de maio de 1525, intentou um processo a Briçonet, mandou deter Berquin. Na primavera seguinte, proibiu qualquer tradução francesa das escrituras. Berquin, salvo pelo rei, em 1526, foi executado em 1529. A questão dos placards (outubro de 1534) irritou Francisco I, que ordenou perseguições contra as quais protestou Calvino, de Basiléia. Foi ainda no reinado de Francisco I – sem que suas responsabilidades direta estivesse envolvida que se produziu a tentativa de exterminação dos Valdenses do Lubéron. Em 1546, a Igreja reformada de Meaux foi designada pela perseguição. Sob Henrique III (1547-1559), a atitude do poder em relação aos Protestantes ainda endureceu mais. Uma ‘câmara ardente’, criada em outubro de 1547 no Parlamento de Paris, pronunciou em três anos mais de quinhentas sentenças contra heresia. Foram retiradas aos inculpados as funções municipais ou judiciárias. O Edito de Campiè de julho de 1557, sem retirar as câmaras eclesiásticas o conhecimento dos crimes de heresia, reservou aos tribunais laicos o julgamento de Protestantes, desde que tivesse existido escândalo público. Todos os heréticos seriam condenados à morte. Finalmente o Édito de Écouen (2 de junho de 1559) ordenou a execução sem julgamento de qualquer Reformado revoltoso em fuga. Alguns dias depois, o rei mandou deter vários membros do Parlamento que tinham solicitado a reunião de um concilio e a suspensão das perseguições contra os protestantes. Entre esses conselhos figurava Ana de Bourg, que havia protestado contra os suplícios. Iria para a fogueira sete meses depois. Entretanto, por essa altura Henrique II falecia (10 de julho de 1559). Ele aguardava que a paz de Chateau-Cambrésis (abril de 1559) lhe permitisse consagrar todos os esforços à destruição do Protestantismo”. (Idem, pp. 165-167)
           “A execução de Ana de Bourg (21 de dezembro de 1559) e a crescente influencia dos Guises, parentes da nova rainha Maria Stuart, alarmaram os protestantes. Calvino e Teodoro de Beza, com sua atitude pouco clara, não desencorajaram a parada militar que  o príncipe de Condé e o fidalgo do Perigord, La Renaudie, preparavam. Mas até mesmo Catarina de Médicis desconfiava dos Guise. Por edito de 8 de março de 1560, ela mandava anistiar os ‘que sentem mal a fé e, alguns dias mais tarde, os Protestantes haviam sido autorizados a enviar o delegado ao rei. O ataque ao castelo de Amboise por La Renaudie ocorreu entrementes (17 de março) e foi um fracasso. Condé desautorizou seus amigos; a repressão foi atrós”. (Idem, p. 177)
            A tentativa frustrada de Catarina de Médicis levava à uma série de conflitos religiosos na França à partir de 1562. “Foi a programa por ela executado quando da Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572) – chacina cuja responsabilidade de partilha com os Guise. Os Reformados, vindos em grande número a Paris, para o casamento de Henrique de Navarra com a filha de Catarina, Margarida, foram massacrados em massa. O próprio futuro Henrique IV, ameaçado de morte, teve que abjurar. De 25 de agosto a 3 de outubro se generalizou no reino a carnificina. Foram deste modo vítimas dos massacres pelo menos 3.000 protestantes, tanto em Paris, o músico Goudinel em Lyon ficaram entre os mortos”. (Idem, p. 179)
                “Tal foi o clima da guerras de religião em França. De tantos excessos nasceu finalmente o cansaço, não sem danos. Ainda em 1590, por ocasião do cerco e Paris por Henrique IV, o fanatismo na capital estava no auge. Em 1595, a Bretanha, no Pitou, no Maine e em Anjou, alguns membros da Liga enforcavam os prisioneiros, amarravam-nos às aspas dos moinhos, queimavam-nos, faziam-nos morrer à fome, atiravam-nos vivos aos poços em que apodreciam cadáveres. Mas nesse final do período as perturbações, a guerra caia no fanatismo”. (Idem, pp. 179-180)
                  Delumeau distingue “oito guerras de religião (1562-1563, 1567-1568, 1568-1570, 1572-1576, 1579-1580, 1585-1598). A última se encerrou em luta contra Filipe II, que tinha apoiado a Liga. Mas outras intervenções estrangeiras se produzem muitas vezes seguidas: as de Elizabeth, dos príncipes protestantes alemães, dos duques de Sabóia e de Lorena. Por outro lado, os duques de Épernone Mocoeu tentaram, depois de 1589, criar para eles principados autônomos, um na Provença, outro na Bretanha. Os repetidos assassinos dos príncipes chefes políticos aumentaram a confusão na França. Assim, pereceram, entre outros, do lado protestante, Condé (1569) e Coligny (1572); do lado católico, Francisco de Guise (1563), Henrique, o Marcado e o cardeal de Guise (1588), Henrique III (1589). A anarquia no reino teria indubitavelmente sido menor se, de 1562 até a morte de Henrique II, a política real tivesse sido mais contínua. Mas foi incoerente. O culto protestante foi autorizado – certamente com restrições – em janeiro de 1562, março de 1563 (Paz de Amboise), março de 1568 (Paz de Longuneau), agosto de 1570 (Paz de Saint-Germain), julho de 1573 (edito de Bolonha), maio de 1576 (Paz de Beuailieu), setembro de 1577 (Paz de Bergerac seguida do édito de Poitiers), novembro de 1580 (Paz de Fleix), e abril de 1589. Porém, foi interditado em abril de 1562, setembro de 1568 (édito de Saint-Maur), agosto de 1572 (após a noite de São Bartolomeu), julho de 1585 e julho de 1588 (nestes dois últimos casos, sob pressão da Liga” (Idem, p. 180)
              Os protestantes realizavam um Estado dentro do outro na França. Como tentativa de pacificação das disputas entre os nobres, Henrique IV abjurava em 1593. Essa decisão era porque o mesmo “temia o recomeço de uma guerra civil, o Edito de Nantes foi antes de mais uma obra de circunstâncias. Aliás, ele foi constituído, não por um único texto, mas por quatro ( 13 de abril – 2 de maio de 1598): uma proclamação solene, um anexo de 56 artigos ‘secretos’ concernentes ao culto, um ‘título’ relativo ao tratamento dos ministros, finalmente um segundo grupo de artigos ‘secretos’ sobre os locais de ‘refúgio’”. (Idem, p. 182)

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