Fernand
Braudel, no primeiro volume de Civilização Material, Economia e Capitalismo.
As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível, trata da importância
da lenta transformação no universo da vida material – dos consumidores, do
consumo e das formas produtivas. Descreve com densidade as mudanças quase imperceptíveis das condições
elementares da vida, como as formas de alimentar, vestir, morar e de produzir
em uma época muito diferente da atual, nesse aspecto. [1]
Esse
primeiro volume da obra tripartida de Braudel, abordando o cotidiano e o
consumo, ultrapassa o espaço geográfico da Europa e atinge regiões mais
distantes dos centros econômicos como o Novo Mundo. Sendo assim, a
cotidianeidade é definida pelo autor como
“(...) os fatos minúsculos que
quase não deixam marca no tempo e no espaço. Quanto mais se encurta o espaço da
observação, mais aumentam as oportunidades de nos encontrarmos no próprio
terreno da vida material: os grandes círculos correspondem habitualmente à
grande história, ao comércio longínquo, às redes de economias nacionais ou
urbanas. Quando restringimos o tempo observado a duas pequenas frações, temos o
conhecimento ou a ocorrência; o acontecimento quer-se, crê-se único; a
ocorrência repete-se e, ao repetir-se, torna-se generalidade, ou melhor,
estrutura. Invade a sociedade em todos os seus níveis, caracteriza maneiras de
ser e de agir desmedidamente perpetuadas (...). É ao longo de pequenos
incidentes, de relatos de viagem que uma sociedade se revela. A maneira de
comer, de vestir, de morar, para os diversos estratos, nunca é diferente. E
esses instantâneos afirmam também, de uma sociedade para outra, contrastes e
disparates nem todos superficiais. É um jogo divertido, que creio não ser
fútil, o de compor estas imagens”.[2]
Ademais, o autor
coloca, em outro texto, “A longa duração” de 1958, em questão as diferentes temporalidades
históricas, nas quais os acontecimentos articulam-se em basicamente três tempos
entrecruzados, o curto, a conjuntura e a estrutura.[3]
A reflexão de Braudel é importante por colocar limites
ao papel dos indivíduos anônimos. Em outras palavras, o autor relaciona a
atuação dos personagens com as “estruturas” de longa duração da vida material,
sendo esta a infra-economia, ou as formas primárias de sobrevivência cotidiana.
Contudo, o historiador define, neste artigo o plástico conceito de estrutura:
“...muito
mais útil é a palavra estrutura. Boa ou má, é ela que domina os problemas de
longa duração. Os observadores do social entendem por estrutura uma
organização, uma coerência, umas
relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais. Para nós,
historiadores, uma estrutura é
indubitavelmente um semblante, uma arquitetura; porém, mais ainda, uma
realidade que o tempo tarda enormemente em desgastar e em transportar. Certas
estruturas estão dotadas de tão larga vida que se convertem em elementos
estáveis de uma infinidade de generalizações: obstroem a história, a
interrompem e para tanto determinam seu transcorrer. Outras, pelo contrário,
desintegram-se mais rapidamente. Mas todas elas constituem, ao mesmo tempo,
sustenta obstáculos. Em tanto que obstáculos apresentam-se como limites
(envolventes, em sentido matemático) dos que o homem e suas experiências não
podem emancipar-se. Pensando-se na dificuldade de romper certos marcos
geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, e
até determinadas coações espirituais: também os enquadramentos mentais
representam prisões de longa duração”. [4]
O pensamento estrutural de Braudel auxilia a pensar na longa duração dos
modos de vida na época moderna. No entanto, estes enquadramentos levantam
alguns problemas. Como compreender as relações entre estrutura, conjuntura e
acontecimentos? Essa maneira de entender a realidade não engessaria os papéis
dos indivíduos na História? Em outras palavras, os sujeitos históricos estariam
presos às essas estruturas? Qual é o papel dos sujeitos de diferentes gêneros, etnias e classe?
A historiografia, longe de responder definitivamente estas questões, não
encontrou consenso. No entanto, as análises estruturalistas são cada vez mais
raras, sendo praticamente ditas como um pensamento arcaico. Mas o pos
estruturalismo, entretanto, têm dificuldades explicativas gritantes. Como
compreender a crise atual e o seus efeitos? Todos nós temos responsabilidade
pelos desencantos do mundo, sejam eles pessoais ou coletivos?
É triste em um país historicamente injusto e desigual como o nosso,
pensar que os sujeitos são responsáveis por tudo quando a reprodução social e material
da desigualdade possui uma longa duração na nossa história.
[1] Fernand Braudel. Civilização Material, economia e
capitalismo. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São
Paulo: Martins Fontes, vol. 1, 1997.
[2]
Ibidem, p. 17.
[3]
Sobre as diferentes temporalidades braudelianas ver: Fernand Braudel. La Historia das ciencias sociales. Madrid: Alianza Editorial, 1970.
[4]“...mucho más
útil, es la palabra estructura. Buena ou mala, es ella la que domina los
problemas de larga duración. Los observadores de lo social entienden por
estructura una organización, una coherencia, unas relaciones suficientemente
fijas entre realidades y masas sociales. Para nosotros, historiadores, una
estrutura es indudablemente un ensamblaje, una arquitectura; pero, más aún, una
realidad que el tiempo tarda enormemente en desgastar y en transportar. Ciertas
estructuras están dotadas de tan larga vida que se convierten en elementos
estables de una infinidad de generaciones: obstruen la historia, la entorpecen
y, por tanto, determinan su transcurrir. Otras, por el contrario, se
desintegran más rápidamente. Pero todas ellas, constituen, al mismo tiempo,
sostenes y obstáculos. En tanto que obstáculos, se presentan como limites
(envolventes, en el sentido matemático) de los que el hombre y sus experiencias
no pueden emanciparse. Piénsese en la dificuldad de romper ciertos marcos
geográficos, ciertas realidades biológicas, ciertos límites de la produtividad,
y hasta determinadas coacciones espirituales: también los encuadramientos
mentales representan prisiones de larga duración”. Fernand Braudel. “La larga
duração”. In: La Historia das ciencias sociales. Madrid: Alianza
Editorial, 1970, pp.70-71.