Resumo
Este
artigo tem por objetivo analisar a família e as relações de gênero na sociedade
colonial a partir da análise das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia. A idéia é comparar este corpo documental com outras fontes,
especialmente as Ordenações Filipinas, com o intuito de entender as diferenças
que existiam entre a Igreja e a Monarquia Portuguêsa, no que concerne às relações
entre marido e esposa. A distinção entre os gêneros era bastante habitual, no
caso das punições referentes ao adultério, pois embora a Igreja acatasse o
divórcio, não priorizava a honra masculina e a morte da esposa, o que é um
indicativo da importância e da preservação da vida. Enfim, este trabalho busca
aprofundar essa e outras questões relativas ao casamento e separação dos
casais, de modo a elucidar melhor as relações de gênero no Brasil Colonial.
Palavras-Chaves:
Adultério - Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – Relações de
Gênero – Família
Introdução
No
Brasil, durante os séculos XVIII e XIX, várias foram as mulheres que se
envolveram em casos de adultério, apesar da rigidez dos costumes que vigorava
na época e do aparente isolamento em que viviam. Que razões levariam essas
mulheres a infringir a norma e romper com os “santos laços conjugais”? Como a
Igreja, o Estado Português e a própria sociedade legislavam, puniam e tentavam
evitar estes desvios e os atentados à ordem estabelecida? Quais eram
as diferenças de tratamento na legislação, referentes aos adultérios dos homens
e das mulheres?
Mais
do que instigantes essas questões são cruciais para um melhor entendimento das
relações familiares e do papel reservado os gêneros em sociedades patriarcais
como a brasileira.
De
acordo com a legislação portuguesa vigente na Colônia (1500-18222), as
Ordenações Filipinas (1603), o adultério era considerado como falta grave para
ambos os cônjuges e também motivo de divórcio perpétuo pela norma eclesiástica.
Assim, “se a mulher cometer esse adultério ao marido, ou o marido à mulher, por
essa causa se poderão apartar para sempre quanto ao toro e mútua coabitação”.
Aparentemente simples e igualitária essa regra, entretanto, resguardava, na
perspectiva da acusação do desenrolar do processo e grau de punição, distinções
entre os gêneros, colocando a esposa em uma situação inferior do ponto de vista
jurídico.
Na
América portuguesa, conforme o Segundo Título das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, todas as camadas sociais, e, principalmente os escravos,
deveriam ser levados para a verdadeira fé por meio da doutrina católica
cristã. Assim, colonos e cativos
deveriam aprender as virtudes e não praticarem os “pecados mortais”.
Mais do que um delito à alma, o adultério era considerado um crime contra “fé
do matrimônio”, sendo proibido tanto pelo direito canônico quanto civil,
atingindo também a natureza humana.
No
século XIX, após a Independência em 1822, o Código Criminal do Império
(1822-1889), absorvendo os princípios da legislação portuguesa, manteve a mesma
diferença – enquanto que para a mulher bastava um desvio, mas para o marido era
necessário provar que tinha concubina de “pública e notória fama”, o que denota
a continuidade dessas diferenças ao longo do tempo.
Com
certeza, não é fácil penetrar nos “mistérios da fragilidade humana”,
especialmente se considerarmos os limites impostos à análise dos documentos. Considerando
essas dificuldades e assumindo riscos de tratar um tema tão controverso, este
trabalho pretende recuperar as razões confessas dos cônjuges e a própria
concepção do adultério na época. A idéia é justamente comparar testamentos
manuscritos e processos de divórcio com a legislação eclesiástica e civil,
utilizando também os manuais de orientação dos casais. Com base nessas
evidências é que buscamos dar conta de parte das indagações e pressupostos
sobre a condição feminina e a vida privada na Colônia na época das Constituições Primeiras.
Casamento e adultério
No
Reino de Portugal, nos séculos XIV e XV, formou-se um conjunto de leis que
estabeleciam regras para o comportamento dos súditos deste Estado Monárquico em
formação. Nesta legislação era valorizado os ideais de honra e fidalguia que se
transformariam ao longo da Alta Idade Moderna.
As
Ordenações de D. Duarte é uma fonte muito valiosa para tratar da constituição
da legislação luso-brasilieira, pois é à partir dela que serão validadas as
leis posteriores como as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, as quais
foram utilizadas por todo o mundo ibérico, tanto nos reinos quanto no ultramar.
No que se refere ao
casamento, as Ordenações D. Duarte, declarava que os noivos deveriam realizar o
matrimônio “sem pecado, sendo impedidas “as mancebas em cabelos” tornarem-se
esposas sem o consentimento paternos. Estas moças também não podiam ser
deserdadas, bem como aquelas que fossem desonradas ou raptadas. Além disso,
segundo a lei: “se alguma mulher solteira ou casada fazer adultério com outro e
lhe for provado, quer não, ou se foi da casa onde seu marido tem per razão de
fazer fornjzio [sic] com outro, quer o fizesse quer não perdera porende
[sic] o que lhe deram por dom”.
Por
vários momentos, esta legislação tentava resguardar o patrimônio das filhas,
estabelecendo que nenhum pai ou mãe poderiam deserdar as raparigas que fizessem
“maldade ao seu corpo”.
Às
mulheres casadas era declarado que os maridos traídos, tanto os vilões quanto
os fidalgos, teriam que logo declarar aos tabeliões em carta a verdade do
assassinato para que a justiça fosse feita. Isto é, para que conseguissem se
livrar das penas por cometerem crime para a manutenção da honra.
Desse modo, a legislação,
por um lado, tentava manter o patrimônio reservado às filhas e impedir que
estas tivessem sua honra manchada por meio de punições aos homens que tentassem
destruí-las. Por outro, apoiava os maridos que matassem as esposas adúlteras,
mesmo que estas tivessem mal fama. Assim, as mulheres, na legislação lusitana,
deveriam preservar a honra e a família, mantendo-se castas e obedientes à
autoridade paterna e do conjugue. Nesta perspectiva, o Estado Monárquico
pré-estabelecia os padrões de comportamento dos seus súditos e as regras de
convívio de todos os estamentos da sociedade.
Fruto dos valores e da
tradições ibéricas, na América portuguesa, o sacramento do matrimônio foi
objeto da catequese jesuítica desde o século XVI, sendo que os membros da
Companhia de Jesus, estabelecida em 1549 juntamente com o Governo Geral de
Thomé de Sousa, realizavam freqüentemente casamentos coletivos nas aldeias e
nos aldeamentos coloniais. No que se referem aos colonos, poucos eram aqueles
que efetivavam tais rituais, apesar da rigidez normativa das Ordenações.
Ainda em meados do século
XVII, Gregório de Matos, o Boca do Inferno, criticava o comportamento da
sociedade baiana, construindo uma imagem satírica a respeito dos adultérios
femininos, ou, como afirmou Emanuel Araújo, das “relações perigosas”. Além
disso, o poeta notava de maneira sarcástica a grande quantidade de processos
decorrentes deste pecado.
“Que os adúlteros adorem
a alheia mulher, que vêem,
e não queiram, que também
outros a sua namorem:
que então neste caso implorem:
à justiça, ou a vingança
outra ação acusatória.
Boa história.
Mas que uma mulher casada,
sendo o marido um corisio,
pondo-se a tamanho risco
seja louca enamorada:
que se acaso alguém lhe agrada,
com mais marido turbulento
busque o seu divertimento,
como uma mulher solteira.
Longe do centro colonial
baiano, na região dos sertões, em
São Paulo colonial, a defesa da honra levou as famílias Pires
e Camargo a entrarem em uma guerra que
durou quase uns cem anos. O início deste conflito foi quando Alberto Pires
assassinou a esposa Leonor Camargo e o amante e cunhado Antônio Pedroso de
Barros. Não obstante, este caso foi o estopim para o confronto, pois estes
grupos da camada dominante paulista ficavam em conflito permanente devido à
interesses por terras, índios e poder na região.
No século seguinte, com
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, os transmites para o
casamento deveriam ocorrer com um longo processo jurídico. Esta instituição era
determinada pelo poder espiritual como um “vínculo perpétuo”, “indissolúvel”,
sendo, portanto, uma união de fé perante Deus e a Igreja Católica Romana. Além
disso, a matéria deste sacramento era a união dos corpos, por meio das
“palavras dos noivos”, sendo seus ministros os “contrahentes”, com a finalidade
da “propagação” natural da espécie, a “lealdade” e a “inseparabilidade” do
casal, representando ainda a união do Cristo com a Igreja, os cônjugues
deveriam participar de um ritual “santo” e “honesto”, livre do pecado e em
“estado de graça”.
A
partir desta definição canônica, como eram realizados os transmites do casamento?
O varão deveria de ter no mínimo 14
anos, já a mulher 12. Em primeiro lugar, os contraentes informavam ao padre e
antes de celebrar definitivamente o matrimônio, tinham que abrir o “tempo de
denunciações”, época esta em que se realizavam denúncias contra os noivos,
havendo assim muitos impedimentos legais para o casamento.
Para este sacramento,
segundo o Título LXVII (Dos impedimentos do matrimonio; da prova que para eles
basta, e dos que são obrigados a descobri-los), havia a necessidade de passar por um longo
processo, sendo preciso ser a “pessoa certa”. Se um dos “contraentes” fosse
cativo e o outro não, então, o escravo deveria contar a verdade ao outro. Os noivos tinham que fazer os votos
solenemente. O parentesco até quarto grau era impedido de casar sem a
autorização do papa. Precisavam também ter feito os sacramentos do baptismo e
da confirmação. Ambos tinham que ser cristãos, ou seja, ter a mesma religião.
Era proibido o casamento por “constragimento” ou “força”. A impotência, o rapto
da mulher, a ausência do párocho e das testemunhas eram outros termos que
causavam impossibilidade de confirmação do matrimônio. Além desses, havia o
impedimento por crime:
“...convém
a saber, se um dos contrahentes maquinou com effeito a morte da mulher, ou
marido com quem verdadeiramente era casado, ou a do outro cumplice com animo de
contrahir Matrimonio com elle, tendo commetido adulterio sabido, e conhecido
por ambo; ou se ambos os contrahentes maquinarão a morte do defunto ou defunta
casada, para casarem ambos, ainda que não tivessem adulterado: ou quando os
contrahentes sendo um delles casado, cometterão adulterio, se fizerão externa
promessa de casar, se a mulher, ou marido do contrahente morresse primeiro, ou
se casarão de fato, sendo ella viva”.
Ademais, os contraentes deveriam
nomear os pais e os locais de moradia, declarar se eram viúvos e depois de dois
meses de aberto o processo, os noivos juravam fidelidade e pagavam um “caução ”.
Após três semanas de casados, se não houvessem mais denúncias, recebiam o
retorno do dinheiro.
Nos
banhos, as penas para aqueles que fossem impedidos de se casarem conforme o
Concílio Tridentino, seriam prisões, degredo e pagamentos pecuniários.
Também o padre poderia ser facilmente processado caso fosse denunciado. Neste
sentido, a normatização não era extremamente rígida e detalhada para ser
cumprida à risca?
Questão complicada pela
fragmentação das informações existentes, pode-se responder que a dificuldade em
se casar estava também nos custos dos transmites e nas dificuldades da
população livre pobre em ter acesso às normas eclesiásticas e aos dogmas da
Igreja.
Conforme
o Título LXX das Constituições, para haver casamento dos “vagabundos”, os párocos
pediam dispensa do Arcebispado da Bahia , pois “sucede que muitas vezes, que
muitos para mais licenciosamente viverem no vício da concupiscência, e amancebamento,
e escapar ao castigo, usam enganosamente
do Sacramento do Matrimônio, fingindo-se casados com mulheres, que trazem
consigo, deixando eles muitas vezes suas legítimas mulheres, e elas seus legítimos
maridos: querendo Nós evitar, que tais andem em estado de condenação, e nele
perseverem...”
No
parágrafo seguinte deste título, a legislação voltava a condenar os homens
casados que viviam em movimento pela colônia, realizando relações ilícitas e,
portanto, caindo em pecados constantes. Além disso, mandavam que as mulheres
acompanhassem os cônjuges nas suas andanças.
Dessa forma, a legislação
tentava impedir o fluxo da população masculina, sendo, portanto, muito comum a
ausência do esposo para as terras distantes e a chefia da casa pela mulher, que
se responsabilizava pelos negócios e trabalhos nas casas e nos sítios das
cidades e vilas coloniais.
Dentre as atividades femininas da camada senhorial, estava o comando do
trabalho das escravas, as quais deveriam, segundo a legislação colonial, ser
casadas.
Para contrair núpcias, os
cativos deveriam saber rezar o Padre Nosso, a Ave Maria, Creio em Deus Padre e os
Mandamentos da Lei de Deos. Os noivos escravos deveriam ter o consentimento dos
senhores, os quais deveriam fazer denúncias sobre os pecados dos seus
serviçais.
A camada senhorial não
podia fazer objeção impedimento ao casamento do cativo, mesmo que esse tivesse
como cônjuge um indivíduo livre. Para que o casamento misto ocorresse era
necessário que soubesse da condição de escravo do futuro esposo ou esposa.
Enfim, casados os colonos
e cativos deveriam permanecer neste estado e sem pecado conforme o desejo da
Igreja e do Estado. No entanto, eram freqüentes as relações ilícitas
encontradas na América portuguesa e, provavelmente, o adultério feminino era
uma destas práticas mais perseguidas e duramente combatidas.
Nesse sentido, os estudos
demonstram vários casos deste “crime” nas mais diferentes regiões da Colônia. Por
exemplo, Maria Beatriz Nizza da Silva relata o caso de D. Maria da Conceição da
Capitania do Maranhão, que foi mandada da vila de Caxias para a cidade de São
Luiz, no mês de abril de 1804. Esta senhora era acusada de matar o esposo e
viver em adultério com o co-réu do crime, sobrinho e caixeiro do falecido. Além
da acusação daquela, tinha ainda a acusação de ter tentado matar o marido.
Outra processada por adultério e de matar o esposo com o auxílio do amante, foi
Joaquina Marinha de Albuquerque, a qual ficou na cadeia da Casa de Suplicação
do Rio de Janeiro no ano de 1816. Esta última foi, portanto, absolvida de suas
culpas.
Em 1729, D. Helena da
Silva era assassinada pelo esposo, o comerciante Vitorino Vieira de Magalhães,
que alegava ser de condição nobre e ter realizado um crime contra a honra, pois
a falecida o havia traído e por isto pagara com a vida. Este caso tinha como
atacante o pai da morta, o capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro. Por fim, não há
claro o resultado do caso. No entanto, segundo Silva:
“È de notar neste caso
que aqueles que enviam petições ao rei, pai e as irmãs de D. Helena, sempre
acusaram que ela fora morta ‘sem razão’ pelo marido, ou seja, se o adultério
dela fosse verdadeiro, então o marido teria toda a razão de matar. Ignoramos o
desfecho da apelação, mas toda esta documentação nos permite verificar que era
fácil a um uxoricida livrar-se do castigo do seu crime: bastava, por meio de
testemunhas falsas, provar perante os magistrados que a mulher o enganava e que
ele tivera todos os motivos para limpar a sua honra”.
Outro acusado de
assassinar a mulher adúltera fora José Galvão Freire de Guaratinguetá, que
encontrava a esposa, D. Maria Eufrásia de Loyola, com o estudante Manuel de
Moura, que escapara com vida mais com feridas. Segundo a defesa do réu:
“na ocasião, em que este entrou em
casa os achou ambos deitados em uma rede que era bastante para suspeitar-se
perfídia, e adultério, e acender a cólera do suplicante que levado de honra e
brio cometeu aquela morte em desafronta sua, julgando-se ofendido”.
Não
obstante, nem sempre os maridos traídos realizavam assassinatos, Bento Esteves
de Araújo, em 1771, confinava a esposa Ana da Cruz no convento de Nossa Senhora
da Ajuda, no Rio de Janeiro.
Prática
que era recorrente na Colônia, como foi o caso do capitão Francisco da Silva, o
qual queria mandar a sua esposa Maria Francisca do Santos para o recolhimento
de S. Raimundo na Bahia, pois a esta fora seduzida pelo próprio genro.
Também eram frequentes os
adultérios femininos com cônegos, como foi o caso da sentença do Arcebispo da
Bahia contra o Cônego José da Silva Freire considerando-o em um ano de degredo
num dos ilhéus e 300$000 réis de indenização ao autor, Jacinto Tomaz de Faria,
Senhor de Engenho, cuja mulher cometia adultério com o cônego. O clérigo era
figura local importante (da Sé da Bahia) e compadre do Senhor de engenho. Eram
amigos e freqüentava a casa.
No documento são
descritas todas as situações em que o cônego aproveitando-se da ausência do
marido, vinha até a casa em sua cadeira de arruar, parando longe e
utilizando-se dos escravos para acobertar a sua presença. Baseando-se nas
inúmeras provas e nas penas previstas nas Constituições Primeiras do
Arcebispado Lib. 5, tit. 19, nº166 o cônego é condenado. Mas, não sabemos que
destino foi imposto a essa mulher, especialmente no que tange ao destino dos
seus bens.
No entanto, a sua
trajetória somada a muitas outras histórias de vida, nos conduz aos nexos que
articulam as manifestações da intimidade cotidiana com as estruturas básicas da
formação social, tanto na Colônia, como durante o Império.
Em Minas colonial,
Figueiredo aponta que o adultério era favorecido devido à inconstância do
marido no domicílio, podendo este viver de tropas, mineração e ser até oficial
de milícia. Mas o crime ilícito poderia ocorrer devido ainda à maior autonomia
feminina, como acontecia com Joana, preta angola casada, que montara uma venda
no Arraial de Antonio Dias. O seu marido a acusara de adultério com Manuel
Ferreira.
Também Paula Perpétua era
acusada de viver “a todo gênero de torpeza cometendo adultérios com todos e
quaisquer pessoas que a procuram [ileg.] e, supondo que seja casada, vive como
se o não fora porque se absenta de seu marido todas as vezes e quando quer, que
pela sua bondade e velhice julga ele testemunha que o mesmo não a corrige por
temer que a mesma lhe maquine a morte”.
Nota-se assim que o
processo contra o adultério feminino não era raro na colônia, pois as
constantes normatizações por parte da Igreja e do Estado facilitavam aos
maridos o mecanismo do pátrio poder e a tentativa de controle dos
comportamentos das esposas.
Com relação ao adultério
masculino, eram habituais as vistas grossas das autoridades e da sociedade,
pois conforme o comportamento ideal do homem, era comum que este tivesse
relações esporádicas com outras mulheres, principalmente se fossem escravas ou
forras.
Os Castigos do pecado
Falar da luxúria e dos pecados reinantes nos trópicos pode parecer lugar
comum se pensarmos que o assunto sempre suscitou inúmeros comentários. Aos
comportamentos desviantes, concubinas e ilegítimos, dedicavam-se muitas páginas
nos códigos de leis e compêndios normativos. Preocupados com a moral e os bons
costumes de súditos e fiéis, Igreja e Estado, com pequenas diferenças quanto ao
teor, sempre permaneceram unidos a esse respeito. Na salvaguarda do casamento
cristão não faltavam leis e aconselhamentos que, na época, eram sempre seguidos
de punições.
Nas Ordenações de D. Duarte, a honra feminina era salvaguardada a partir
de leis que puniam os homens de “ofício de justiça”, sendo que o clérigo
poderia perder o patrimônio. Os homens da “casa del Rey” perderiam as merçês e
os favores reais. Estes últimos ainda podiam ser deportados por um ano.
Aos homens que cometessem adultério poderiam perder o “ofício”. No entanto,
o castigo para as mulheres era mais rigoroso. Se uma mulher andasse com homem
casado, fosse processada e recorresse no errro, seria açoitada e expulsa da
vila.
A lei contra os homens que andassem
com mulheres de outros era mais rígida, pois causavam dano ao prol comunal da
terra. Além disso, deveriam ser impedidos pelos reis, que tinham a obrigação de
“tolher os usos e costumes” contrários à Deus e aos homens. Se a esposa
adúltera fosse rica ou fidalga, o amante seria degredado e poderia perder os bens.
Os filhos da
luxúria e do adultério eram considerados ilegítimos e, portanto, não tinham
direito à herança.
Esta Ordenação estabelece as bases
para a estruturação legislativa do Reino de Portugal, sendo, portanto,
fundamentais para a compreensão das mudanças de perspectivas no que se refere
ao casamento e, especialmente, ao adultério e à condição dos gêneros na lei
lusitana, ibérica e colonial. Sem entendê-la é, praticamente impossível, estabelecer
as transformações deste discurso e desta normatização.
No século seguinte às Ordenações de
D. Duarte, Fernão Lopes narrador oficial da Coroa, descrevia as histórias de
traição da rainha Leonor Teles, a qual era acusada de adultério, bem como de D.
João, o Mestre de Avis, que se assassinava a esposa acusada deste tenebroso
crime. Para este, provavelmente, o papel da rainha era o de consorte do rei e
do reino e não de reinar.
Estas crônicas do Quatrocentos demonstram a constituição da sociedade de
corte portuguesa e da necessidade de se consolidar as regras rígidas de
comportamento social na fidalguia portuquesa, preservando assim os valores de
punição a este crime presentes na legislação. Nesta perspectiva, as mulheres
adúlteras deveriam sofrer a pena de morte e de derrota na disputa do poder pela
Coroa, pois o ideal de comportamento feminino era a castidade, pureza, honra e
devoção a Deus.
Dessa forma, estas narrativas
continuam no decorrer dos séculos na colônia portuguesa, sendo que nestas
histórias contadas nos compêndios, as esposas adúlteras eram geralmente
sujeitas a graves crimes de consciência e mortes trágicas. Solteiros amasiados
e maridos permissivos também eram personagens constantes nesse cenário. Mas
afinal de quem era a culpa? Da vida nos trópicos? Das esposas adúlteras ou dos
maridos traídos?
Bastante
ilustrativo é o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, escrito no século
XVII por Nuno Marques Pereira, onde relatava os casos que viu suceder por causa
do pecado e crime do adultério. Conclusivos e trágicos estes relatos acabavam
sendo arrematados com o seguinte adágio: “Os filhos de Lisboa nascem na Corte,
criam-se na Índia e perdem-se no Brasil”.
Às mulheres reserva o papel de sedutoras e aos homens o de preservar a própria
honra.
No
entanto, o intuito de Marques Pereira, ao que tudo indica, não era punição de
adultério, mas as formas de evitá-lo e, para isso, constrói um modelo de regras
e intimidações. Para Vainfas, que analisou a sua obra no contexto da legislação
portuguesa, essa era a sua máxima, muito próxima da Igreja e do período colonial
que buscava o equilíbrio dos casamentos e a integridade física das esposas.
O
mesmo não ocorre, entretanto, ao examinarmos a questão no Código Philippino ou
Ordenações e Leis do Reino de Portugal, que vigoraram no Brasil até o início do
século XIX, sendo, inclusive, ainda muito citados nos códigos posteriores
vigentes durante o Império. Neste corpo documental, as disposições são muito
claras e precisas, preservadas as diferenças quanto ao gênero e a condição
social dos envolvidos. No título XXV, “Do que dorme com mulher casada”, reza o
seguinte:
“Porém, se o adúltero for de maior condição, que o
marido della, assi como, se o tal adulterio fosse Fidalgo, e o marido
Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adultero Cavalleiro ou Scudeiro, e o marido peão,
não farão as Justiças melle execução, ate nol-o fazem saber, e verem sobre isso
nosso mandado.
E toda mulher, que fizer adultério a seu marido
morra por isso”.
Além
da punição pela morte, os adúlteros estavam sujeitos a inúmeras outras
penalidades. No caso de “adultério simples”, a esposa podia ser perdoada pelo
marido e, portanto, ser poupada. Nas situações mais complexas que envolviam não
apenas a moral, mas diferenças étnicas, de classe e parentesco, a intervenção
do Estado era precisa:
“E isto haverá lugar, quando somente for acusada de
adultério simples. E sendo ella n’ao somente accusada de adultério, mas que
pecou com Mouro, Judeu, parente ou cunhado de afinidade em tal grau, que deva
haver pena de Justiça, se lhe o marido perdoar, seja relevada da pena, que
devera haver por adultério, e que haja a pena, que deve haver por pecar com
Judeu, Mouro ou parente”.
Aparentemente
simples, a legislação Filipina é rica ao descrever as formas reguladoras para
os indivíduos em circunstâncias de adultério. O perdão do marido significava a
reconciliação do casal, mas cabia ao Estado evitar escândalo público. Nesse
caso, o adultério não podia ser punido com a morte, mais segundo as Ordenações,
devia pagar com o degredo perpétuo para o Brasil, caso o ofendido não retirasse
a acusação. Perdoado também o comparsa da mulher, ainda restava o degredo
temporário de 10 anos na África.
Aos clérigos acusados de participar de atos de adultério com suas fiéis, a
pena, conforme as Constituições do Arcebispado da Bahia era de 5 anos de
degredo na ilha de São Thomé.
Ao Estado cabia não interromper os
processos, mesmo por morte do marido. A esposa, por sua vez, perdia todos os
bens inclusive aqueles adquiridos por dote, que passavam ao acusador e seus
legítimos herdeiros. Ao final do processo e na comprovação do adultério,
garantia-se à mulher o recebimento dos bens do marido.
Nada sabemos sobre a prática das
execuções da lei, pois desconhecemos o destino desses documentos e a rigidez
com que essas regras eram aplicadas. Conhecemos, no entanto, eu homens e
mulheres, de diferentes segmentos sociais, os quais foram acusados de viver em
adultério em vários momentos da História do Brasil. Para isso, basta verificar
o volume de processos de Divórcio e Nulidade de Casamentos que ocorreram pala
justiça Eclesiástica desde 1700 e depois pelo Tribunal Civil, após o advento da
República em 1889, onde o adultério era o motivo da separação.
Momentos confessados de “fragilidade
humana” aparecem também nos testamentos. Para essas mulheres, havia que ter
coragem de assumirem publicamente os filhos ilegítimos, nascidos na constância
do matrimônio. Essa confissão pública do casamento reconhecia o flagrante da
relação extraconjugal e perante a lei colocava o filho como “espúrio”,
excluindo-o direito à herança. Por isso, são raros os testamentos em que se
relatam essas situações. Entre as razões confessas das esposas, ausência ou
abandono do marido eram as mais freqüentes para justificar um “mal passo”.
Sentindo-se frágeis e abandonadas, diziam ter sido difícil resistir às
tentações da carne. As viúvas alegavam os mesmos motivos para o tempo em que
vivia o marido e “fragilidade humana”, após sua morte.
Como se pode perceber, é complexa a
problemática do adultério e envolve inúmeras questões vinculadas ao
comportamento dos casais e à moral que era imposta à sociedade. Além disso,
serve para explicar a existência de concubinas e filhos ilegítimos que eram
mantidos à distância de suas casas, em geral, pelo branco proprietário.
São inúmeras as queixas das esposas
nos séculos XVIII e XIX sobre as atitudes dos maridos que, tinham casos
amorosos e que, muitas vezes, resultavam em concubinas “teúdas e manteúdas”.
Das relações com as escravas nasceram também muitos filhos bastardos, parte
absorvidos no seio das próprias famílias. Como mestiços e filhos do dono com a
escrava, tornava-se fácil o caminho da liberdade e o direito à herança,
especialmente, quando havia falta de herdeiros legítimos.
Embora considerado praticamente
usual para a época, nem sempre as esposas foram complacentes com os desvios do
marido ou o abandono momentâneo do lar. Isso, sem dúvida, era motivo para
iniciar um processo de divórcio e muitas mulheres traídas seguiam esse caminho,
direito assegurado pela legislação eclesiástica e civil.
Para a Igreja, homens e mulheres,
quando adúlteros, eram pecadores e, sendo impossível a reconciliação, o
adultério era uma forte razão para a separação do casal. O texto da lei previa
punições para esses casos, mas não priorizava a honra masculina e a morte da
esposa. Nas Constituições, o tratamento era mais igualitário para ambos os
gêneros:
“Outra causa da separação perpetua sea fornicação
culpável de qualquer genero, em a qual alguns dos casados se deixa cair ainda
por uma só vez, cometendo formalmente adulterio carnal ao outro. Pelo que se a
mulher cometer este adulterio ao marido, ou o marido e mulher; por esta causa
poderao se apartar para sempre, quanto ao toro e mutua coabitação...”
O
Estado Monárquico Português, por sua vez, tratava de punir os homens casados
vivendo publicamente com “barregãas”. Os castigos previam o degredo de 3 anos
para a África e a devolução dos bens que pertenciam à esposa. As concubinas,
além do degredo de um ano para o Castro-Marim, deveriam ser açoitadas pela vila
com “baraço e pregão”.
As Ordenações, entretanto, não previa a punição masculina com a morte, mantendo
a distinção entre os gêneros. Exceção feita ao comparsa da mulher e dos
alcoviteiros: “Qualquer pessoa, assi homem como mulher, que alcovitar mulher
casada, ou consentir que em sua casa faça maldade de seu corpo, morra por ello,
e perca todos os seus bens”.
Na Colônia, a normatização das Constituições, reafirmando muitas vezes as
decisões do Concílio Tridentino, sancionava o concubinato com censura, ou
prisão, ou degredo, sendo ainda, se reincidido três vezes no pecado, obrigado a
pagar uma multa pecuniária.
Desse
modo, pela lei do Reino, compactuar com o pecado era considerado
falta grave e sujeita à execução pública. Na colônia brasileira nada sabemos,
entretanto, sobre a execução dessas regras na prática. Nos séculos XVIII e XIX,
são mais comuns nos documentos queixas dos maridos e/ou esposas quanto ao mau
comportamento do companheiro e reclamos dos habitantes sobre atitudes
escandalosas de homens e mulheres nas vilas e cidades.
Casos de concubinato público também
aparecem nas Devassas Clericais e nos Livros de Visitas que os párocos
realizavam às suas freguesias por ocasião da Páscoa. Preocupados com a moral e
os bons costumes dos fiéis, puniam os pecadores renitentes que viviam
publicamente em desordem com “não-desobriga” ou excomunhão.
No entanto, apesar desses exemplos,
que evidenciam as tentativas de controlar comportamentos considerados
escandalosos para ambos os sexos, na América Portuguesa, morte e honra sempre
estiveram relacionados com o adultério feminino. Recurso utilizado até os dias
de hoje pelos maridos traídos, “os crimes da paixão” tramitaram pela Justiça
com salvo-conduto para os homens como gerentes de bens e da vida das mulheres.
As esposas sempre foram ensinadas a agir com cautela, submissão e resignação.
Nesta perspectiva, por que traíram, correndo todos os riscos? Por que traíram
mesmo sabendo que o flagrante poderia significar a morte imediata?
O título XXXVIII das Ordenações
Filipinas, “Do que matou sua mulher para achar em adultério”, é bastante
incisivo quanto a esse direito irrefutável do marido:
“Achando o homem casado sua mulher em adulterio,
licitamente podera matar assi a ella, como o adulterio, salvo se o marido for
peão, e o adultero Fidalgo, ou nosso Desembagador, ou pessoa de maior
qualidade. Porém, quando matasse algumas das sobreditas pessoas, achando-a com
sua mulher em adulterio, não morrera por isso, mas sera degredado para a África
com pregão e audiencia pelo tempo, que aos julgadores bem parecer; segundo a
pessoa, que matar não passando de tres annos.
I – E nao somente podera o marido matar sua mulher e
o adultero, que achar com ella em adulterio, mas ainda os pode licitamente
matar, sendo certo que lhe commetteram adulterio; e entendendo-o assi provar; e
provando depois o adulterio per prova licita e bastante conforme o Direito,
será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos
segundo acima dito he”.
Esse
direito sobre a vida da mulher não está presente na legislação do período
independente, permanecendo, entretanto, como um princípio arraigado, quase como
uma herança moral para ser preservada dos tempos de conquista.
Dessa forma, aos homens que vivessem em adultério em
“fama pública” as Constituições do Arcebispado da Bahia pediam “admoestação” e
recorressem em tal pena, eram acusados em amancebamento, podendo pagar,
portanto, uma pena de 1$000 (réis). No entanto, caso os amancebados fossem
escravos, estes ficaram livres da multa e os seus senhores ganhariam uma
advertência e até mesmo poderiam ter de ficar sem a posse dos cativos.
Apesar de haver uma política espiritual e temporal
contrária ao concubinato entre os escravos, tal prática ocorria sem ter pena
alguma por toda a América portuguesa. Fazia parte do costume, ou do modo de
vida da população cativa, forra e até mesmo entre livres pobres. Todavia, as
porcentagens de casamentos variavam conforme o tempo e o espaço na Colônia.
Nos tempos do Império, fica mais difícil conhecer as
verdadeiras regras em jogo que pautavam as relações marido-esposa. Os Códigos
de Leis são lacunares e ainda se legisla muito com base nas Ordenações
Filipinas e as obras dos juristas da primeira metade do Oitocentos nos mostram
bem essa problemática.
Questões
morais cedem espaço ao Direito das Sucessões, que parece ser uma das maiores
preocupações dos jurisconsultos até o final do século XIX. Com o advento da
República em 1889, o divórcio passava também a ser matéria do Estado e isso
centralizava um amplo debate na época.
No
bojo dessas discussões e desenrolar dos processos civis, o adultério continuou
sendo o principal motivo de separação dos casais. As punições persistem, mas
não aparecem mais expressas com tanto vigor e riqueza de detalhes nas
descrições das situações possíveis de envolvimentos. De concreto, encontramos
apenas o Código Criminal do Império do Brasil de 1830, que considera o
adultério um crime ao qual pagava a mulher com pena de prisão com trabalho
forçado pelo período de 1 a
3 anos. Ao companheiro reservava-se idêntico castigo e ao marido traído havia
sempre que provar que nunca compactuara com essa data de situação.
Mulheres
proibidas sempre foram sedutoras aos olhos dos homens desavisados. Na tradição
oral, adágios e contos populares, essas histórias tinham finais trágicos na
tentativa de coibir os abusos da população. Entretanto, apesar dos alertas e
castigos, as “amizades ilícitas” proliferaram, resultando em separação de
casais, alto índice de ilegitimidade e mestiçagem. Como figuras do cotidiano,
concubinas e mestiços bastardos foram, de algum modo, absorvidos pela sociedade
colonial, apesar das pressões da Igreja e do Estado. E, se pecado e castigo
sempre andam juntos, nos “mistérios da fragilidade humana” está bem presente a
questão do adultério. Se for assim, não há muito o que desvendar...
Diante
desse quadro, como fica o historiador, tão distante e ao mesmo tempo tão
próximo dos segredos da alma? Com base apenas na legislação e nas evidências
encontradas nas fontes manuscritas da época, como entender ou mesmo explicar o
comportamento humano?
Como
tema delicado e polêmico, as razões confessas das esposas apareciam
principalmente nos processos de divórcio. Nos testamentos, já perto da morte,
as descrições são mais fluidas. Ficava também mais fácil falar do marido,
queixar-se da vida monótona, do abandono e assumir os filhos naturais.
Sendo
assim, e com tantas acusações e evidências a contabilizar, tudo indica que, por
“mistério da fragilidade humana”, ineficácia dos receituários escritos para garantir
a fidelidade conjugal, ou talvez, dificuldades de aplicação prática da
legislação, as regras tiveram muitas exceções.
No
entanto, fica claro que, apesar das distinções de gênero e o apreço da Igreja e
do Estado quanto à preservação dos matrimônios o direito eclesiástico clamava
pela vida e era nesse núcleo que as esposas estavam protegidas, apesar de
culpadas e em pecado criminoso de adultério.
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