segunda-feira, 12 de março de 2012

MULHERES HERÓICAS BANDEIRANTES DE ADALZIRA BITTENCOURT (HISTORIADORA AMADORA)



Adalzira Bittencourt, em A mulher paulista na História, construiu de forma épica o mito da mulher bandeirante, heroína de raça branca. Sua obra, produzida na década de 1950, nas comemorações do “Quarto Centenário” da História de São Paulo, apontava para uma outra temática e inseria a História das Mulheres no mundo colonial. Iniciava o seu estudo com a narrativa do encontro entre as índias idealizadas e os colonos civilizados. “Os rapazes ficavam encantados com a notícia das moças morenas, de corpos cor de cobre, talhados em curvas sedutoras, as quais andavam inteiramente nuas e belas...”, escrevia logo nas primeiras linhas.[1]
O amor e a formação familiar entre a índia Batira e João Ramalho era entendido sob uma ótica idealizada. A partir desse novo núcleo, a sociedade paulista encontrava as suas origens, que eram desmembradas com a formação da “mulher civilizada branca”.[2] E, dentre as mulheres senhoriais, destaca-se a figura de Izabel Dias que, conforme a autora,
“deve descerrar as cortinas do pórtico da História da Mulher Paulista, pois que o sangue vem passando de geração em geração nas veias de gente de nossa terra, formando os bandeirantes que alargaram as fronteiras  da Pátria, sangue que ainda hoje circula nas veias dos estadistas, dos agricultores, dos industriais, dos poetas, dos operários, e da juventude gloriosa de São Paulo”[3]
No discurso de Aldazira, a mulher bandeirante paulista ganhava ares de senhora matrona e atingia o pedestal, juntamente com os homens bandeirantes, ou a “Raça de Gigantes”, na “Era das Bandeiras”.  Nessa sociedade, a condição feminina era auxiliar o homem no avanço civilizatório. E, dessa maneira, a historiadora amadora constituía o mito da boa mãe e a imagem da passividade e do caráter cordato feminino.
“As mulheres são matronas respeitáveis que comungam com os maridos no anseio de dilatar as fronteiras do Brasil.
Dir-se-ia que o entusiasmo era gerado na alma das mulheres, como no laboratório do sagrado de seus ventres é que se formava a raça de heróis e sertanistas ousados. Como poderá a História da bandeirologia esquecer o nome das mães dos titãs?
Quantos nomes interessantes poderíamos ter guardado, não fosse o hábito de menosprezar as cousas e atos femininos, encobrindo com o descaso os nomes de que eram portadores?
A violeta se esconde sob a folhagem, mas o perfume denuncia o encanto.
As bandeirantes ficaram esquecidas na voz da história, mas os feitos de outra denunciam e põem à mostra o valor daquelas que foram sufocadas no esquecimento absoluto”.[4]

Originária de São Paulo, a mulher bandeirante, formadora da raça paulista, era o modelo ideal feminino para a Pátria, pois fazia parte da sua natureza a inteligência, a bravura e o patriotismo.[5]
Tal imagem feminina se complementava com os estudos das matronas como Ana Pimentel, senhora fidalga e rica, que realizava o sacrifício de trabalhar nas terras de São Vicente para a glorificação da Nova Pátria. Aldazira ainda afirmava que
“em chegando ao Brasil, no desconforto da habitação, Ana Pimentel, que vivia no solar dos Duques de Bragança, tem agora por morada uma ligeira habitação de palha. Que importa? A moça palaciana vai se transformando. Trabalha, levanta cedo para ver as suas plantas, atende o gentio; quer cuidar dos homens do mar, dos flâmulos. Manda construir a casa onde viveu, em São Vicente, o pequeno burgo fundado a primeira vez por Cosme Fernandes, e aí vê crescer a cidadezinha com a ajuda dos jesuítas e dos colonos que ali viviam ou os que com ela vieram da Metrópole. Tudo fez para somar as dificuldades encontradas”[6]

Catarina de Lemos, outra mulher bandeirante valorizada, era a “mãe branca e civilizada de gente nobre da terra de Bento Gonçalves, e lá foi para o sul a alma bandeirante, nas saias e num coração de mulher”.[7] Entretanto, outras imagens menos cristalizadas são formadas, como no caso da cigana Francisca Rodrigues, dona de um comércio na vila de São Paulo. Também se destacava Dona Catarina de Siqueira, que era uma das poucas letradas e cultas, proprietária de uma biblioteca importantíssima para o universo paulista.
O texto de Bittencourt destaca-se pelas representações de seu próprio gênero e pela repercussão de que as mulheres no período colonial “cuidavam da família e dos negócios e também das lavouras nascentes”.[8]
Enquanto as abordagens de Alcântara Machado, em Vida e Morte Bandeirante, e Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, escritos anteriormente, colocaram a atuação feminina no interior da família, sob o domínio e a ótica do senhor patriarcal, Aldazira Bitencourt inseriu o papel do feminino subordinado ao poder do Estado. A autora, portanto, submeteu a relação do gênero feminino ao poder da “Pátria”, quando afirmava que as mulheres bandeirantes “alargavam as fronteiras do Brasil”. Como historiadora e amadora, Aldazira Bittencourt chamava a atenção, na década de 1950, de uma maneira literária e descritiva, no “Amanhecer de São Paulo”, capítulo de sua obra sobre as mulheres paulistas bandeirantes, para a relevância do tema das mulheres na História de São Paulo.


Igor de Lima


[1] Aldaíza Bittencourt. A mulher paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, S.A., 1954, p. 15.
[2] Ibidem, p.38.
[3] Ibidem, p.17.
[4] Ibidem, p. 75.
[5] Ibidem, pp. 80-91.
[6] Ibidem, pp. 26-31.
[7] Ibidem, p. 43.
[8] Ibidem, p. 45.

Homens, mulheres e a prática histórica


“(...) As mulheres amadoras, com seu público leitor ardente, desaparecem da historiografia; longe de informar história,elas parecem estagná-la. A história social e cultural, sobretudo quando voltada para preocupações e questões femininas da vida cotidiana, passam a ter pouco valor. Independentemente de quantas marcas características a história social possa ter ocasionalmente, a política e os homens que escrevem sobre ela são o ‘feijão com arroz’ da grande história. No entanto, quando vistas como produto de forças intelectuais e culturais que entrelaçaram historiografia com gênero, as biografias dos grandes historiadores homens – aqueles que escreveram sobre política – ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo a suprimir a obra histórica das mulheres”.

Bonnie G. Smith. Gênero e História. Homens, mulheres e a prática histórica. Bauru: Edusc, 2003, p. 156.

domingo, 4 de março de 2012

As mulheres bandeirantes paulistas na leitura de Alcântara Machado. Igor de Lima.



Igor de Lima*

"O estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção que é afirmativo".
Homi K. Bhabha [1]

No Brasil, houve inicialmente uma historiografia que discorreu sobre a participação feminina dentro de uma perspectiva senhorial e patriarcal, na qual as mulheres viviam em reclusão, em total opressão no interior doméstico e sem nenhum papel significativo nas transformações econômicas e sociais da América Portuguesa. Além disso, construiu uma série de imagens esteriotipadas do gênero feminino na história da América portuguesa.
 Alcântara Machado, em Vida e morte do bandeirante, obra publicada em 1929, analisava pela primeira vez os inventários pos-mortem e testamentos paulistas.  Debatendo com Olivera Viana, defendia a idéia das difíceis condições de existência dos bandeirantes paulistas, os quais viviam na pobreza, distantes do centro Metropolitano. Com uma abordagem descritiva dessas fontes, compunha um quadro do cotidiano dos bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A interiorização e o isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma sociedade pobre, com baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era relativizada com a presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do mobiliário, que tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da mineração.[2]
Em um contexto de transformações lentas na vida material, as mulheres bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos bens e escravos. Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos próprios filhos e da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos, porém, a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça, penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da colônia”. [3]
Para Alcântara Machado, a família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto. Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do patriciado”.[4]

Nessa perspectiva, o poder inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela. “Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua educação”. Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e do matrimônio.[5]
Ao lado da família legítima, estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo Machado possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e faceira”, estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o historiador, o português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de Deus..." [6]

 Por outro lado, as escravas faziam parte do botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.[7]

Em relação às mulheres das famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". [8] O espaço feminino era reservado ao lar e à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza; elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.[9]
            Na obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros, mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho. Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata, adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
            Para as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano. É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha, contra a penetração das setas inimigas”.[10]

Na vila, fazia-se importante o indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada. A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650, quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote; outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.[11]
Diferentemente, as roupas femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.[12] Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende vasquinha, saia de roda exuberante, franzida na cintura; e, ajustado ao busto, o corpinho; e, por cima deste, o gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio, casacão rabilongo de mangas perdidas, com abertura ao nível dos cotovelos, dando passagem e liberdade aos braços; e, cobrir tudo isso, como se tudo isso não bastasse, o manto. Com muito menos se supõem vestidas as damas da atualidade. E têm razão. Entre outros motivos, porque, parecendo obedecer à intimação das modas peregrinas, se inspiram de fato no figurino guaianás das filhas de Caiubi e Tibiriçá”[13]

Apesar de não haver variação dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o “cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em quarenta mil réis.[14] Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre as diferentes camadas sociais. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas de utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das “senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada. Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras pulseiras e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas de d. Ana de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado de verde, branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior.  Para essas mulheres eram reservados os rosários com cruzes de ouro ou de prata.[15]
Distantes da cultura erudita, sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos incidentes dessa natureza o mais curioso é o que se desenvolve no inventário de Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento Pires Ribeiro. Curioso, não pela substância jurídica do caso, mas pela qualidade das pessoas em lide. Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça de Deus, tem e possui com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem necessite alguma cousa, pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da inventariada, se lhe defira a curadoria dos netos. Não está por isso o capitão Fernão Pais Leme, tio dos órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela franqueza que respira, o protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa por acentuar que a suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e muitos anos, e tão doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não pode fazer sem ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os sobrinhos com sua gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como no mais, e também na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e de raiz, não tem outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de outra forma, os órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.[16]

Essa senhora fora a principal protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par, ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos debulhados em lágrimas. A turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do matador, se deixa vencer e desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a devassa. Concluído o processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para levá-lo à Bahia, onde deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do sertão bravio, Inez Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do filho. Mas antes de lá chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam, resolvem executá-lo covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no mar nas alturas da Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar a sua criatura, desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série e infindável de conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um século ensangüenta e sobressalta a nossa terra”.[17]

As senhoras “matronas”[18] eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo.  Nessa perspectiva, entendeu-se que as mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia,  em momentos de exceção, existiam algumas mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando, ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações das senhoras paulistas.
Além disso, em sua análise dos inventários post-mortem enfocava a narrativa do cotidiano bandeirante.  Descrever de maneira colorida a vida e morte dos habitantes de São Paulo no século XVII, era, de certa forma, retomar as condições de vida dos antigos moradores da cidade de São Paulo. E as mulheres bandeirantes paulistas forneciam maneira nobre e honrada condições para que seus maridos, esposos e filhos expandissem os limites do sertão. Nesse sentido, os volores morais e ideais da honra e nobreza eram retomados pelo autor para reconstruir a imagem digna dos valorosos homens e das mulheres bandeirantes paulistas de outrora.


* Pos-Doutorando FAPESP no Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina FFLCH/USP.
[1] Homi K. Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.110.
[2] Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp. 65-74.
[3] Ibidem, p. 67.
[4] Ibidem, p. 151.
[5] Ibidem, p. 153.
[6] Ibidem, p. 157.                                                                                                                                                                        
[7] Ibidem, p. 156.
[8] Ibidem, p. 94.
[9] Ibidem, p. 77.
[10] Ibidem, pp. 240-241.
[11] Ibidem, p. 88.
[12] Ibidem, p. 89.
[13] Ibidem, pp. 89-90.
[14] Ibidem, pp. 90-91.
[15] Ibidem, p. 94.
[16] Ibidem, p. 121.
[17] Ibidem, pp. 223-224.
[18] Ibidem, p. 161.

sábado, 3 de março de 2012

Sob o signo do pecado: Gênero e adultério no ordenamento da Colônia. Eni de Mesquita Samara & Igor de Lima.


Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar a família e as relações de gênero na sociedade colonial a partir da análise das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. A idéia é comparar este corpo documental com outras fontes, especialmente as Ordenações Filipinas, com o intuito de entender as diferenças que existiam entre a Igreja e a Monarquia Portuguêsa, no que concerne às relações entre marido e esposa. A distinção entre os gêneros era bastante habitual, no caso das punições referentes ao adultério, pois embora a Igreja acatasse o divórcio, não priorizava a honra masculina e a morte da esposa, o que é um indicativo da importância e da preservação da vida. Enfim, este trabalho busca aprofundar essa e outras questões relativas ao casamento e separação dos casais, de modo a elucidar melhor as relações de gênero no Brasil Colonial.
Palavras-Chaves: Adultério - Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – Relações de Gênero – Família

Introdução

No Brasil, durante os séculos XVIII e XIX, várias foram as mulheres que se envolveram em casos de adultério, apesar da rigidez dos costumes que vigorava na época e do aparente isolamento em que viviam. Que razões levariam essas mulheres a infringir a norma e romper com os “santos laços conjugais”? Como a Igreja, o Estado Português e a própria sociedade legislavam, puniam e tentavam evitar estes desvios e os atentados à ordem estabelecida? Quais eram as diferenças de tratamento na legislação, referentes aos adultérios dos homens e das mulheres?
Mais do que instigantes essas questões são cruciais para um melhor entendimento das relações familiares e do papel reservado os gêneros em sociedades patriarcais como a brasileira.
De acordo com a legislação portuguesa vigente na Colônia (1500-18222), as Ordenações Filipinas (1603), o adultério era considerado como falta grave para ambos os cônjuges e também motivo de divórcio perpétuo pela norma eclesiástica. Assim, “se a mulher cometer esse adultério ao marido, ou o marido à mulher, por essa causa se poderão apartar para sempre quanto ao toro e mútua coabitação”.[3] Aparentemente simples e igualitária essa regra, entretanto, resguardava, na perspectiva da acusação do desenrolar do processo e grau de punição, distinções entre os gêneros, colocando a esposa em uma situação inferior do ponto de vista jurídico.
Na América portuguesa, conforme o Segundo Título das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, todas as camadas sociais, e, principalmente os escravos, deveriam ser levados para a verdadeira fé por meio da doutrina católica cristã.  Assim, colonos e cativos deveriam aprender as virtudes e não praticarem os “pecados mortais”.[4] Mais do que um delito à alma, o adultério era considerado um crime contra “fé do matrimônio”, sendo proibido tanto pelo direito canônico quanto civil, atingindo também a natureza humana.[5]
No século XIX, após a Independência em 1822, o Código Criminal do Império (1822-1889), absorvendo os princípios da legislação portuguesa, manteve a mesma diferença – enquanto que para a mulher bastava um desvio, mas para o marido era necessário provar que tinha concubina de “pública e notória fama”, o que denota a continuidade dessas diferenças ao longo do tempo.
Com certeza, não é fácil penetrar nos “mistérios da fragilidade humana”, especialmente se considerarmos os limites impostos à análise dos documentos. Considerando essas dificuldades e assumindo riscos de tratar um tema tão controverso, este trabalho pretende recuperar as razões confessas dos cônjuges e a própria concepção do adultério na época. A idéia é justamente comparar testamentos manuscritos e processos de divórcio com a legislação eclesiástica e civil, utilizando também os manuais de orientação dos casais. Com base nessas evidências é que buscamos dar conta de parte das indagações e pressupostos sobre a condição feminina e a vida privada na Colônia na época das Constituições Primeiras.

Casamento e adultério
            No Reino de Portugal, nos séculos XIV e XV, formou-se um conjunto de leis que estabeleciam regras para o comportamento dos súditos deste Estado Monárquico em formação. Nesta legislação era valorizado os ideais de honra e fidalguia que se transformariam ao longo da Alta Idade Moderna.
            As Ordenações de D. Duarte é uma fonte muito valiosa para tratar da constituição da legislação luso-brasilieira, pois é à partir dela que serão validadas as leis posteriores como as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, as quais foram utilizadas por todo o mundo ibérico, tanto nos reinos quanto no ultramar.
No que se refere ao casamento, as Ordenações D. Duarte, declarava que os noivos deveriam realizar o matrimônio “sem pecado, sendo impedidas “as mancebas em cabelos” tornarem-se esposas sem o consentimento paternos. Estas moças também não podiam ser deserdadas, bem como aquelas que fossem desonradas ou raptadas. Além disso, segundo a lei: “se alguma mulher solteira ou casada fazer adultério com outro e lhe for provado, quer não, ou se foi da casa onde seu marido tem per razão de fazer fornjzio [sic] com outro, quer o fizesse quer não perdera porende [sic] o que lhe deram por dom”.[6]
            Por vários momentos, esta legislação tentava resguardar o patrimônio das filhas, estabelecendo que nenhum pai ou mãe poderiam deserdar as raparigas que fizessem “maldade ao seu corpo”.[7]
            Às mulheres casadas era declarado que os maridos traídos, tanto os vilões quanto os fidalgos, teriam que logo declarar aos tabeliões em carta a verdade do assassinato para que a justiça fosse feita. Isto é, para que conseguissem se livrar das penas por cometerem crime para a manutenção da honra. 
Desse modo, a legislação, por um lado, tentava manter o patrimônio reservado às filhas e impedir que estas tivessem sua honra manchada por meio de punições aos homens que tentassem destruí-las. Por outro, apoiava os maridos que matassem as esposas adúlteras, mesmo que estas tivessem mal fama. Assim, as mulheres, na legislação lusitana, deveriam preservar a honra e a família, mantendo-se castas e obedientes à autoridade paterna e do conjugue. Nesta perspectiva, o Estado Monárquico pré-estabelecia os padrões de comportamento dos seus súditos e as regras de convívio de todos os estamentos da sociedade.
Fruto dos valores e da tradições ibéricas, na América portuguesa, o sacramento do matrimônio foi objeto da catequese jesuítica desde o século XVI, sendo que os membros da Companhia de Jesus, estabelecida em 1549 juntamente com o Governo Geral de Thomé de Sousa, realizavam freqüentemente casamentos coletivos nas aldeias e nos aldeamentos coloniais. No que se referem aos colonos, poucos eram aqueles que efetivavam tais rituais, apesar da rigidez normativa das Ordenações.[8]
Ainda em meados do século XVII, Gregório de Matos, o Boca do Inferno, criticava o comportamento da sociedade baiana, construindo uma imagem satírica a respeito dos adultérios femininos, ou, como afirmou Emanuel Araújo, das “relações perigosas”.[9] Além disso, o poeta notava de maneira sarcástica a grande quantidade de processos decorrentes deste pecado.

“Que os adúlteros adorem
a alheia mulher, que vêem,
e não queiram, que também
outros a sua namorem:
que então neste caso implorem:
à justiça, ou a vingança
outra ação acusatória.
Boa história.

Mas que uma mulher casada,
sendo o marido um corisio,
pondo-se a tamanho risco
seja louca enamorada:
que se acaso alguém lhe agrada,
com mais marido turbulento
busque o seu divertimento,
como uma mulher solteira.
Boa asneira”.[10]
           
Longe do centro colonial baiano, na região dos sertões, em São Paulo colonial, a defesa da honra levou as famílias Pires e Camargo a entrarem  em uma guerra que durou quase uns cem anos. O início deste conflito foi quando Alberto Pires assassinou a esposa Leonor Camargo e o amante e cunhado Antônio Pedroso de Barros. Não obstante, este caso foi o estopim para o confronto, pois estes grupos da camada dominante paulista ficavam em conflito permanente devido à interesses por terras, índios e poder na região. [11]
No século seguinte, com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, os transmites para o casamento deveriam ocorrer com um longo processo jurídico. Esta instituição era determinada pelo poder espiritual como um “vínculo perpétuo”, “indissolúvel”, sendo, portanto, uma união de fé perante Deus e a Igreja Católica Romana. Além disso, a matéria deste sacramento era a união dos corpos, por meio das “palavras dos noivos”, sendo seus ministros os “contrahentes”, com a finalidade da “propagação” natural da espécie, a “lealdade” e a “inseparabilidade” do casal, representando ainda a união do Cristo com a Igreja, os cônjugues deveriam participar de um ritual “santo” e “honesto”, livre do pecado e em “estado de graça”.
            A partir desta definição canônica, como eram realizados os transmites do casamento? O varão deveria de ter no mínimo  14 anos, já a mulher 12. Em primeiro lugar, os contraentes informavam ao padre e antes de celebrar definitivamente o matrimônio, tinham que abrir o “tempo de denunciações”, época esta em que se realizavam denúncias contra os noivos, havendo assim muitos impedimentos legais para o casamento.
Para este sacramento, segundo o Título LXVII (Dos impedimentos do matrimonio; da prova que para eles basta, e dos que são obrigados a descobri-los),  havia a necessidade de passar por um longo processo, sendo preciso ser a “pessoa certa”. Se um dos “contraentes” fosse cativo e o outro não, então, o escravo deveria contar a verdade  ao outro. Os noivos tinham que fazer os votos solenemente. O parentesco até quarto grau era impedido de casar sem a autorização do papa. Precisavam também ter feito os sacramentos do baptismo e da confirmação. Ambos tinham que ser cristãos, ou seja, ter a mesma religião. Era proibido o casamento por “constragimento” ou “força”. A impotência, o rapto da mulher, a ausência do párocho e das testemunhas eram outros termos que causavam impossibilidade de confirmação do matrimônio. Além desses, havia o impedimento por crime:
“...convém a saber, se um dos contrahentes maquinou com effeito a morte da mulher, ou marido com quem verdadeiramente era casado, ou a do outro cumplice com animo de contrahir Matrimonio com elle, tendo commetido adulterio sabido, e conhecido por ambo; ou se ambos os contrahentes maquinarão a morte do defunto ou defunta casada, para casarem ambos, ainda que não tivessem adulterado: ou quando os contrahentes sendo um delles casado, cometterão adulterio, se fizerão externa promessa de casar, se a mulher, ou marido do contrahente morresse primeiro, ou se casarão de fato, sendo ella viva”. [12]
           
Ademais, os contraentes deveriam nomear os pais e os locais de moradia, declarar se eram viúvos e depois de dois meses de aberto o processo, os noivos juravam fidelidade e pagavam um “caução ”. Após três semanas de casados, se não houvessem mais denúncias, recebiam o retorno do dinheiro.
            Nos banhos, as penas para aqueles que fossem impedidos de se casarem conforme o Concílio Tridentino, seriam prisões, degredo e pagamentos pecuniários.[13] Também o padre poderia ser facilmente processado caso fosse denunciado. Neste sentido, a normatização não era extremamente rígida e detalhada para ser cumprida à risca?
Questão complicada pela fragmentação das informações existentes, pode-se responder que a dificuldade em se casar estava também nos custos dos transmites e nas dificuldades da população livre pobre em ter acesso às normas eclesiásticas e aos dogmas da Igreja.
            Conforme o Título LXX das Constituições, para haver casamento dos “vagabundos”, os párocos pediam dispensa do Arcebispado da Bahia , pois “sucede que muitas vezes, que muitos para mais licenciosamente viverem no vício da concupiscência, e amancebamento, e escapar ao castigo,  usam enganosamente do Sacramento do Matrimônio, fingindo-se casados com mulheres, que trazem consigo, deixando eles muitas vezes suas legítimas mulheres, e elas seus legítimos maridos: querendo Nós evitar, que tais andem em estado de condenação, e nele perseverem...”[14]
            No parágrafo seguinte deste título, a legislação voltava a condenar os homens casados que viviam em movimento pela colônia, realizando relações ilícitas e, portanto, caindo em pecados constantes. Além disso, mandavam que as mulheres acompanhassem os cônjuges nas suas andanças.
Dessa forma, a legislação tentava impedir o fluxo da população masculina, sendo, portanto, muito comum a ausência do esposo para as terras distantes e a chefia da casa pela mulher, que se responsabilizava pelos negócios e trabalhos nas casas e nos sítios das cidades e vilas coloniais.[15] Dentre as atividades femininas da camada senhorial, estava o comando do trabalho das escravas, as quais deveriam, segundo a legislação colonial, ser casadas.
Para contrair núpcias, os cativos deveriam saber rezar o Padre Nosso, a Ave Maria, Creio em Deus Padre e os Mandamentos da Lei de Deos. Os noivos escravos deveriam ter o consentimento dos senhores, os quais deveriam fazer denúncias sobre os pecados dos seus serviçais.
A camada senhorial não podia fazer objeção impedimento ao casamento do cativo, mesmo que esse tivesse como cônjuge um indivíduo livre. Para que o casamento misto ocorresse era necessário que soubesse da condição de escravo do futuro esposo ou esposa.[16]
Enfim, casados os colonos e cativos deveriam permanecer neste estado e sem pecado conforme o desejo da Igreja e do Estado. No entanto, eram freqüentes as relações ilícitas encontradas na América portuguesa e, provavelmente, o adultério feminino era uma destas práticas mais perseguidas e duramente combatidas.
Nesse sentido, os estudos demonstram vários casos deste “crime” nas mais diferentes regiões da Colônia. Por exemplo, Maria Beatriz Nizza da Silva relata o caso de D. Maria da Conceição da Capitania do Maranhão, que foi mandada da vila de Caxias para a cidade de São Luiz, no mês de abril de 1804. Esta senhora era acusada de matar o esposo e viver em adultério com o co-réu do crime, sobrinho e caixeiro do falecido. Além da acusação daquela, tinha ainda a acusação de ter tentado matar o marido. Outra processada por adultério e de matar o esposo com o auxílio do amante, foi Joaquina Marinha de Albuquerque, a qual ficou na cadeia da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro no ano de 1816. Esta última foi, portanto, absolvida de suas culpas.
Em 1729, D. Helena da Silva era assassinada pelo esposo, o comerciante Vitorino Vieira de Magalhães, que alegava ser de condição nobre e ter realizado um crime contra a honra, pois a falecida o havia traído e por isto pagara com a vida. Este caso tinha como atacante o pai da morta, o capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro. Por fim, não há claro o resultado do caso. No entanto, segundo Silva:
“È de notar neste caso que aqueles que enviam petições ao rei, pai e as irmãs de D. Helena, sempre acusaram que ela fora morta ‘sem razão’ pelo marido, ou seja, se o adultério dela fosse verdadeiro, então o marido teria toda a razão de matar. Ignoramos o desfecho da apelação, mas toda esta documentação nos permite verificar que era fácil a um uxoricida livrar-se do castigo do seu crime: bastava, por meio de testemunhas falsas, provar perante os magistrados que a mulher o enganava e que ele tivera todos os motivos para limpar a sua honra”.[17]
Outro acusado de assassinar a mulher adúltera fora José Galvão Freire de Guaratinguetá, que encontrava a esposa, D. Maria Eufrásia de Loyola, com o estudante Manuel de Moura, que escapara com vida mais com feridas. Segundo a defesa do réu:
“na ocasião, em que este entrou em casa os achou ambos deitados em uma rede que era bastante para suspeitar-se perfídia, e adultério, e acender a cólera do suplicante que levado de honra e brio cometeu aquela morte em desafronta sua, julgando-se ofendido”.[18]
            Não obstante, nem sempre os maridos traídos realizavam assassinatos, Bento Esteves de Araújo, em 1771, confinava a esposa Ana da Cruz no convento de Nossa Senhora da Ajuda, no Rio de Janeiro.
            Prática que era recorrente na Colônia, como foi o caso do capitão Francisco da Silva, o qual queria mandar a sua esposa Maria Francisca do Santos para o recolhimento de S. Raimundo na Bahia, pois a esta fora seduzida pelo próprio genro.[19]
Também eram frequentes os adultérios femininos com cônegos, como foi o caso da sentença do Arcebispo da Bahia contra o Cônego José da Silva Freire considerando-o em um ano de degredo num dos ilhéus e 300$000 réis de indenização ao autor, Jacinto Tomaz de Faria, Senhor de Engenho, cuja mulher cometia adultério com o cônego. O clérigo era figura local importante (da Sé da Bahia) e compadre do Senhor de engenho. Eram amigos e freqüentava a casa.
No documento são descritas todas as situações em que o cônego aproveitando-se da ausência do marido, vinha até a casa em sua cadeira de arruar, parando longe e utilizando-se dos escravos para acobertar a sua presença. Baseando-se nas inúmeras provas e nas penas previstas nas Constituições Primeiras do Arcebispado Lib. 5, tit. 19, nº166 o cônego é condenado. Mas, não sabemos que destino foi imposto a essa mulher, especialmente no que tange ao destino dos seus bens.[20]
No entanto, a sua trajetória somada a muitas outras histórias de vida, nos conduz aos nexos que articulam as manifestações da intimidade cotidiana com as estruturas básicas da formação social, tanto na Colônia, como durante o Império.
Em Minas colonial, Figueiredo aponta que o adultério era favorecido devido à inconstância do marido no domicílio, podendo este viver de tropas, mineração e ser até oficial de milícia. Mas o crime ilícito poderia ocorrer devido ainda à maior autonomia feminina, como acontecia com Joana, preta angola casada, que montara uma venda no Arraial de Antonio Dias. O seu marido a acusara de adultério com Manuel Ferreira.
Também Paula Perpétua era acusada de viver “a todo gênero de torpeza cometendo adultérios com todos e quaisquer pessoas que a procuram [ileg.] e, supondo que seja casada, vive como se o não fora porque se absenta de seu marido todas as vezes e quando quer, que pela sua bondade e velhice julga ele testemunha que o mesmo não a corrige por temer que a mesma lhe maquine a morte”.[21]
Nota-se assim que o processo contra o adultério feminino não era raro na colônia, pois as constantes normatizações por parte da Igreja e do Estado facilitavam aos maridos o mecanismo do pátrio poder e a tentativa de controle dos comportamentos das esposas.
Com relação ao adultério masculino, eram habituais as vistas grossas das autoridades e da sociedade, pois conforme o comportamento ideal do homem, era comum que este tivesse relações esporádicas com outras mulheres, principalmente se fossem escravas ou forras.

Os Castigos do pecado

Falar da luxúria e dos pecados reinantes nos trópicos pode parecer lugar comum se pensarmos que o assunto sempre suscitou inúmeros comentários. Aos comportamentos desviantes, concubinas e ilegítimos, dedicavam-se muitas páginas nos códigos de leis e compêndios normativos. Preocupados com a moral e os bons costumes de súditos e fiéis, Igreja e Estado, com pequenas diferenças quanto ao teor, sempre permaneceram unidos a esse respeito. Na salvaguarda do casamento cristão não faltavam leis e aconselhamentos que, na época, eram sempre seguidos de punições.
Nas Ordenações de D. Duarte, a honra feminina era salvaguardada a partir de leis que puniam os homens de “ofício de justiça”, sendo que o clérigo poderia perder o patrimônio. Os homens da “casa del Rey” perderiam as merçês e os favores reais. Estes últimos ainda podiam ser deportados por um ano.[22]
Aos homens que cometessem adultério poderiam perder o “ofício”. No entanto, o castigo para as mulheres era mais rigoroso. Se uma mulher andasse com homem casado, fosse processada e recorresse no errro, seria açoitada e expulsa da vila.[23]
            A lei contra os homens que andassem com mulheres de outros era mais rígida, pois causavam dano ao prol comunal da terra. Além disso, deveriam ser impedidos pelos reis, que tinham a obrigação de “tolher os usos e costumes” contrários à Deus e aos homens. Se a esposa adúltera fosse rica ou fidalga, o amante seria degredado e poderia perder os bens.[24]
Os filhos da luxúria e do adultério eram considerados ilegítimos e, portanto, não tinham direito à herança.[25]
            Esta Ordenação estabelece as bases para a estruturação legislativa do Reino de Portugal, sendo, portanto, fundamentais para a compreensão das mudanças de perspectivas no que se refere ao casamento e, especialmente, ao adultério e à condição dos gêneros na lei lusitana, ibérica e colonial. Sem entendê-la é, praticamente impossível, estabelecer as transformações deste discurso e desta normatização.
            No século seguinte às Ordenações de D. Duarte, Fernão Lopes narrador oficial da Coroa, descrevia as histórias de traição da rainha Leonor Teles, a qual era acusada de adultério, bem como de D. João, o Mestre de Avis, que se assassinava a esposa acusada deste tenebroso crime. Para este, provavelmente, o papel da rainha era o de consorte do rei e do reino e não de reinar.
Estas crônicas do Quatrocentos demonstram a constituição da sociedade de corte portuguesa e da necessidade de se consolidar as regras rígidas de comportamento social na fidalguia portuquesa, preservando assim os valores de punição a este crime presentes na legislação. Nesta perspectiva, as mulheres adúlteras deveriam sofrer a pena de morte e de derrota na disputa do poder pela Coroa, pois o ideal de comportamento feminino era a castidade, pureza, honra e devoção a Deus.[26]
            Dessa forma, estas narrativas continuam no decorrer dos séculos na colônia portuguesa, sendo que nestas histórias contadas nos compêndios, as esposas adúlteras eram geralmente sujeitas a graves crimes de consciência e mortes trágicas. Solteiros amasiados e maridos permissivos também eram personagens constantes nesse cenário. Mas afinal de quem era a culpa? Da vida nos trópicos? Das esposas adúlteras ou dos maridos traídos?
Bastante ilustrativo é o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, escrito no século XVII por Nuno Marques Pereira, onde relatava os casos que viu suceder por causa do pecado e crime do adultério. Conclusivos e trágicos estes relatos acabavam sendo arrematados com o seguinte adágio: “Os filhos de Lisboa nascem na Corte, criam-se na Índia e perdem-se no Brasil”[27]. Às mulheres reserva o papel de sedutoras e aos homens o de preservar a própria honra.
No entanto, o intuito de Marques Pereira, ao que tudo indica, não era punição de adultério, mas as formas de evitá-lo e, para isso, constrói um modelo de regras e intimidações. Para Vainfas, que analisou a sua obra no contexto da legislação portuguesa, essa era a sua máxima, muito próxima da Igreja e do período colonial que buscava o equilíbrio dos casamentos e a integridade física das esposas.[28]
O mesmo não ocorre, entretanto, ao examinarmos a questão no Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, que vigoraram no Brasil até o início do século XIX, sendo, inclusive, ainda muito citados nos códigos posteriores vigentes durante o Império. Neste corpo documental, as disposições são muito claras e precisas, preservadas as diferenças quanto ao gênero e a condição social dos envolvidos. No título XXV, “Do que dorme com mulher casada”, reza o seguinte:
“Porém, se o adúltero for de maior condição, que o marido della, assi como, se o tal adulterio fosse Fidalgo, e o marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adultero Cavalleiro ou Scudeiro, e o marido peão, não farão as Justiças melle execução, ate nol-o fazem saber, e verem sobre isso nosso mandado.
E toda mulher, que fizer adultério a seu marido morra por isso”.[29]
           
Além da punição pela morte, os adúlteros estavam sujeitos a inúmeras outras penalidades. No caso de “adultério simples”, a esposa podia ser perdoada pelo marido e, portanto, ser poupada. Nas situações mais complexas que envolviam não apenas a moral, mas diferenças étnicas, de classe e parentesco, a intervenção do Estado era precisa:
“E isto haverá lugar, quando somente for acusada de adultério simples. E sendo ella n’ao somente accusada de adultério, mas que pecou com Mouro, Judeu, parente ou cunhado de afinidade em tal grau, que deva haver pena de Justiça, se lhe o marido perdoar, seja relevada da pena, que devera haver por adultério, e que haja a pena, que deve haver por pecar com Judeu, Mouro ou parente”.[30]
           
Aparentemente simples, a legislação Filipina é rica ao descrever as formas reguladoras para os indivíduos em circunstâncias de adultério. O perdão do marido significava a reconciliação do casal, mas cabia ao Estado evitar escândalo público. Nesse caso, o adultério não podia ser punido com a morte, mais segundo as Ordenações, devia pagar com o degredo perpétuo para o Brasil, caso o ofendido não retirasse a acusação. Perdoado também o comparsa da mulher, ainda restava o degredo temporário de 10 anos na África.[31] Aos clérigos acusados de participar de atos de adultério com suas fiéis, a pena, conforme as Constituições do Arcebispado da Bahia era de 5 anos de degredo na ilha de São Thomé.[32]
            Ao Estado cabia não interromper os processos, mesmo por morte do marido. A esposa, por sua vez, perdia todos os bens inclusive aqueles adquiridos por dote, que passavam ao acusador e seus legítimos herdeiros. Ao final do processo e na comprovação do adultério, garantia-se à mulher o recebimento dos bens do marido.
            Nada sabemos sobre a prática das execuções da lei, pois desconhecemos o destino desses documentos e a rigidez com que essas regras eram aplicadas. Conhecemos, no entanto, eu homens e mulheres, de diferentes segmentos sociais, os quais foram acusados de viver em adultério em vários momentos da História do Brasil. Para isso, basta verificar o volume de processos de Divórcio e Nulidade de Casamentos que ocorreram pala justiça Eclesiástica desde 1700 e depois pelo Tribunal Civil, após o advento da República em 1889, onde o adultério era o motivo da separação.[33]
            Momentos confessados de “fragilidade humana” aparecem também nos testamentos. Para essas mulheres, havia que ter coragem de assumirem publicamente os filhos ilegítimos, nascidos na constância do matrimônio. Essa confissão pública do casamento reconhecia o flagrante da relação extraconjugal e perante a lei colocava o filho como “espúrio”, excluindo-o direito à herança. Por isso, são raros os testamentos em que se relatam essas situações. Entre as razões confessas das esposas, ausência ou abandono do marido eram as mais freqüentes para justificar um “mal passo”. Sentindo-se frágeis e abandonadas, diziam ter sido difícil resistir às tentações da carne. As viúvas alegavam os mesmos motivos para o tempo em que vivia o marido e “fragilidade humana”, após sua morte.[34]
            Como se pode perceber, é complexa a problemática do adultério e envolve inúmeras questões vinculadas ao comportamento dos casais e à moral que era imposta à sociedade. Além disso, serve para explicar a existência de concubinas e filhos ilegítimos que eram mantidos à distância de suas casas, em geral, pelo branco proprietário.
            São inúmeras as queixas das esposas nos séculos XVIII e XIX sobre as atitudes dos maridos que, tinham casos amorosos e que, muitas vezes, resultavam em concubinas “teúdas e manteúdas”. Das relações com as escravas nasceram também muitos filhos bastardos, parte absorvidos no seio das próprias famílias. Como mestiços e filhos do dono com a escrava, tornava-se fácil o caminho da liberdade e o direito à herança, especialmente, quando havia falta de herdeiros legítimos. [35]
            Embora considerado praticamente usual para a época, nem sempre as esposas foram complacentes com os desvios do marido ou o abandono momentâneo do lar. Isso, sem dúvida, era motivo para iniciar um processo de divórcio e muitas mulheres traídas seguiam esse caminho, direito assegurado pela legislação eclesiástica e civil.
            Para a Igreja, homens e mulheres, quando adúlteros, eram pecadores e, sendo impossível a reconciliação, o adultério era uma forte razão para a separação do casal. O texto da lei previa punições para esses casos, mas não priorizava a honra masculina e a morte da esposa. Nas Constituições, o tratamento era mais igualitário para ambos os gêneros:
“Outra causa da separação perpetua sea fornicação culpável de qualquer genero, em a qual alguns dos casados se deixa cair ainda por uma só vez, cometendo formalmente adulterio carnal ao outro. Pelo que se a mulher cometer este adulterio ao marido, ou o marido e mulher; por esta causa poderao se apartar para sempre, quanto ao toro e mutua coabitação...”[36]
           
O Estado Monárquico Português, por sua vez, tratava de punir os homens casados vivendo publicamente com “barregãas”. Os castigos previam o degredo de 3 anos para a África e a devolução dos bens que pertenciam à esposa. As concubinas, além do degredo de um ano para o Castro-Marim, deveriam ser açoitadas pela vila com “baraço e pregão”.[37] As Ordenações, entretanto, não previa a punição masculina com a morte, mantendo a distinção entre os gêneros. Exceção feita ao comparsa da mulher e dos alcoviteiros: “Qualquer pessoa, assi homem como mulher, que alcovitar mulher casada, ou consentir que em sua casa faça maldade de seu corpo, morra por ello, e perca todos os seus bens”.[38]
            Na Colônia, a normatização das Constituições, reafirmando muitas vezes as decisões do Concílio Tridentino, sancionava o concubinato com censura, ou prisão, ou degredo, sendo ainda, se reincidido três vezes no pecado, obrigado a pagar uma multa pecuniária.[39]
            Desse modo, pela lei do Reino, compactuar com o pecado era considerado falta grave e sujeita à execução pública. Na colônia brasileira nada sabemos, entretanto, sobre a execução dessas regras na prática. Nos séculos XVIII e XIX, são mais comuns nos documentos queixas dos maridos e/ou esposas quanto ao mau comportamento do companheiro e reclamos dos habitantes sobre atitudes escandalosas de homens e mulheres nas vilas e cidades.
            Casos de concubinato público também aparecem nas Devassas Clericais e nos Livros de Visitas que os párocos realizavam às suas freguesias por ocasião da Páscoa. Preocupados com a moral e os bons costumes dos fiéis, puniam os pecadores renitentes que viviam publicamente em desordem com “não-desobriga” ou excomunhão.[40]
            No entanto, apesar desses exemplos, que evidenciam as tentativas de controlar comportamentos considerados escandalosos para ambos os sexos, na América Portuguesa, morte e honra sempre estiveram relacionados com o adultério feminino. Recurso utilizado até os dias de hoje pelos maridos traídos, “os crimes da paixão” tramitaram pela Justiça com salvo-conduto para os homens como gerentes de bens e da vida das mulheres. As esposas sempre foram ensinadas a agir com cautela, submissão e resignação. Nesta perspectiva, por que traíram, correndo todos os riscos? Por que traíram mesmo sabendo que o flagrante poderia significar a morte imediata?
            O título XXXVIII das Ordenações Filipinas, “Do que matou sua mulher para achar em adultério”, é bastante incisivo quanto a esse direito irrefutável do marido:
“Achando o homem casado sua mulher em adulterio, licitamente podera matar assi a ella, como o adulterio, salvo se o marido for peão, e o adultero Fidalgo, ou nosso Desembagador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse algumas das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adulterio, não morrera por isso, mas sera degredado para a África com pregão e audiencia pelo tempo, que aos julgadores bem parecer; segundo a pessoa, que matar não passando de tres annos.
I – E nao somente podera o marido matar sua mulher e o adultero, que achar com ella em adulterio, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe commetteram adulterio; e entendendo-o assi provar; e provando depois o adulterio per prova licita e bastante conforme o Direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito he”.
           
Esse direito sobre a vida da mulher não está presente na legislação do período independente, permanecendo, entretanto, como um princípio arraigado, quase como uma herança moral para ser preservada dos tempos de conquista.
Dessa forma, aos homens que vivessem em adultério em “fama pública” as Constituições do Arcebispado da Bahia pediam “admoestação” e recorressem em tal pena, eram acusados em amancebamento, podendo pagar, portanto, uma pena de 1$000 (réis). No entanto, caso os amancebados fossem escravos, estes ficaram livres da multa e os seus senhores ganhariam uma advertência e até mesmo poderiam ter de ficar sem a posse dos cativos.[41]
Apesar de haver uma política espiritual e temporal contrária ao concubinato entre os escravos, tal prática ocorria sem ter pena alguma por toda a América portuguesa. Fazia parte do costume, ou do modo de vida da população cativa, forra e até mesmo entre livres pobres. Todavia, as porcentagens de casamentos variavam conforme o tempo e o espaço na Colônia.
Nos tempos do Império, fica mais difícil conhecer as verdadeiras regras em jogo que pautavam as relações marido-esposa. Os Códigos de Leis são lacunares e ainda se legisla muito com base nas Ordenações Filipinas e as obras dos juristas da primeira metade do Oitocentos nos mostram bem essa problemática.
Questões morais cedem espaço ao Direito das Sucessões, que parece ser uma das maiores preocupações dos jurisconsultos até o final do século XIX. Com o advento da República em 1889, o divórcio passava também a ser matéria do Estado e isso centralizava um amplo debate na época.
No bojo dessas discussões e desenrolar dos processos civis, o adultério continuou sendo o principal motivo de separação dos casais. As punições persistem, mas não aparecem mais expressas com tanto vigor e riqueza de detalhes nas descrições das situações possíveis de envolvimentos. De concreto, encontramos apenas o Código Criminal do Império do Brasil de 1830, que considera o adultério um crime ao qual pagava a mulher com pena de prisão com trabalho forçado pelo período de 1 a 3 anos. Ao companheiro reservava-se idêntico castigo e ao marido traído havia sempre que provar que nunca compactuara com essa data de situação.[42]
Mulheres proibidas sempre foram sedutoras aos olhos dos homens desavisados. Na tradição oral, adágios e contos populares, essas histórias tinham finais trágicos na tentativa de coibir os abusos da população. Entretanto, apesar dos alertas e castigos, as “amizades ilícitas” proliferaram, resultando em separação de casais, alto índice de ilegitimidade e mestiçagem. Como figuras do cotidiano, concubinas e mestiços bastardos foram, de algum modo, absorvidos pela sociedade colonial, apesar das pressões da Igreja e do Estado. E, se pecado e castigo sempre andam juntos, nos “mistérios da fragilidade humana” está bem presente a questão do adultério. Se for assim, não há muito o que desvendar...
Diante desse quadro, como fica o historiador, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo dos segredos da alma? Com base apenas na legislação e nas evidências encontradas nas fontes manuscritas da época, como entender ou mesmo explicar o comportamento humano?
Como tema delicado e polêmico, as razões confessas das esposas apareciam principalmente nos processos de divórcio. Nos testamentos, já perto da morte, as descrições são mais fluidas. Ficava também mais fácil falar do marido, queixar-se da vida monótona, do abandono e assumir os filhos naturais.
Sendo assim, e com tantas acusações e evidências a contabilizar, tudo indica que, por “mistério da fragilidade humana”, ineficácia dos receituários escritos para garantir a fidelidade conjugal, ou talvez, dificuldades de aplicação prática da legislação, as regras tiveram muitas exceções.
No entanto, fica claro que, apesar das distinções de gênero e o apreço da Igreja e do Estado quanto à preservação dos matrimônios o direito eclesiástico clamava pela vida e era nesse núcleo que as esposas estavam protegidas, apesar de culpadas e em pecado criminoso de adultério.


Fontes

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Bibliografia

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[1] Professora Titular do Departamento de História/FFLCH/USP e Diretora do CEDHAL/FFLCH/USP.
[2] Bolsista de doutorado pelo CNPq e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica do departamento de História/FFLCH/USP.
[3] Ordenações do Reino de Portugal, Livro I, Tit. LXXII, p. 312.
[4] Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (1707) Brasília: Senado Federal, 2007, Título I, p. 3.
[5] Idem, Título XIX, p. 334.
[6] Ordenações de D. Duarte...p.89.
[7] Ordenações de D, Duarte, p. 185.
[8] Sobre o casamento no período colonial ver Maria Beatriz Nizza da Silva. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 1984 e Eliana Rea Goldschmidt. Casamentos mistos. Liberdade e escravidão em São Paulo Colonial. São Paulo: Anablume, 2004.
[9] Emanuel Araújo. Arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: Mary del Priore. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, (1ª ed. 1999), 2001, pp. 58-65.
[10] James Amado (org.). Gregório de Matos: obra poética. Rio de Janeiro, vol.1, 1990, p. 391.
[11] Sobre o conflito entre os Pires e Camargo ver Luiz de Aguiar Costa Pinto. Lutas de famílias no Brasil. São Paulo: Nacional, 1ª ed. 1946, 1980, pp. 37-94, Muriel Nazzari. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. [Disappearence of the dowry. Women, families, and social change in São Paulo, Brazil, 1600-1900, 1991.]. John Manuel Monteiro. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 200.
[12] Constituições. Op. Cit.,  p. 117.
[13]Idem, p.114-115.
[14] Constituições. Op. Cit., p. 124.
[15] Igor de Lima. O fio e a trama: trabalhos e negócios femininos na vila de São Paulo. Dissertação de mestrado defendida no departamento de História/FFLCH/USP, 2006.
[16] Constituições. Livro LXXI, pp. 125-126.
[17] Maria Beatriz Nizza da Silva. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.298-299.
[18]Idem. Apud. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Intendência Geral da Polícia, Cód. 323, vol. 3, fls. 61-61.
[19] Idem, pp. 256-257.
[20] Arquivo da Torre do Tombo. 1775.
[21] Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Livro z-8 (1756-7), fl.8. Apud. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Barrocas Famílias. Vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 97.
[22] Ordenações de D. Duarte...p. 284.
[23] Ordenações de D. Duarte, p. 349.
[24] Ordenações de d. Duarte, pp.440-443.
[25] Ordenações de D. Duarte, p. 587.
[26] Crônicas de Fernão Lopes.
[27] Nuno Marques Pereira. Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 6a ed., p.181.
[28] Ver a respeito Ronaldo Vainfas. “A condenação do adultério”.  In: Lana Lage Gama Lima. (org.) Mulheres, adúlteros e padres. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986, pp. 33-55.
[29] Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, recopiladas por mandado d’ el Rei D. Philippe I, Typ. do Instituto Philomático, 1869, p.1176.
[30] Idem.
[31] Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Processos de Divórcio e Nulidade de Casamentos (MSS) 1700-1899. Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Contencioso de Casamentos (MSS), 1889-1899.
[32] Título XIX, p.334.
[33] Arquivo da Cúria Metropolitana. Op. cit.
[34] Ver Eni de Mesquita Samara. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero, 1989.
[35] Idem.
[36] Constituições. Op. Cit.
[37] Ordenações. Livro Quinto, pp. 273-274.
[38] Idem, p. 279.
[39] Constituições. Op. Cit., pp.338-341.
[40] Ver Eni de Mesquita Samara. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 4a ed., 1993.
[41] Constituições. Op. Cit., pp.338-341.
[42] Código Criminal do Império do Brasil, art. 250, 1830, p 76.



Eni de Mesquita Samara[1]

Igor de Lima[2]