quarta-feira, 11 de setembro de 2013

TEMPOS DE CRISE. (2013) IGOR DE LIMA


LAT. Exiliu
Expatriar

Desterrar
Banir
Expulsão

Exil – francês

Bannir, Déporter, expatrier, expulser, proscrire

LES PROSCRITS (BALZAC)

Die Exil

Como memórias de uma menina de Mallorca nos meados do século passado, a autora Carme Riera, em Tiempo de inocencia, faz uma bela narrativa em primeira pessoa. Um dos aspectos mais interessantes são as descrições dos personagens, avós, pais, irmãos, tia. Na infância, passava mais tempo na companhia da avó Catarina, que lhe contava de sua vida, adaptando as narrativas ao momento da sua idade. As histórias da avó foram preservadas na memória da menina e permanece ainda com um fantástico encanto.
A avó contava fatos cotidianos e histórias de encontros e desencontros. Do pai, a descrição passa pela resistência ao regime de Franco, o qual é o pano de fundo do momento histórico da narrativa toda. A marca da resistência ao seu governo está nas entrelinhas das descrições do cotidiano, nos costumes, casos amorosos, onde a população podia realizar história. E a história é vista sob a perspectiva da memória de uma mulher adulta. Esta adulta lembra os momentos marcantes de sua infância. Relações de gênero, idade, cotidiano, realidade e ficção, escrita e leitura são temas destacados para pensarmos nesta obra.
Sobre a marca do cotidiano, está uma das mais belas descrições literárias da obra para os historiadores, no capítulo Campanas, relojes, plumas y secantes, descreve o tempo. “Las campanas cotidianas marcaban el paso del tiempo, tanto los días de fiesta, como los labores”. 
Mais adiante, descreve a importância de alguns artefatos que recebeu em um dos rituais de passagem da primeira infância para o início da adolescência. “Al primer reloj solía ir associado otro objeto que entonces tambien se consideraba significativo: la pluma esferográfica. Saber usar la pluma, cargar la tinta sin mancharte los dedos, no despuntar el plunín – en la época sin apenas boligrafos imperaban las lápices – requerian tambien una concentración y habilidad que los adultos consideraban que consiguirías al subir el primer peldaño que te separaba de la edad de la absoluta inocencia. Consultar el reloj y escrinir con pluma suponían ingressar en un mundo nuevo” (p. 98)
A perda da inocência com o conhecimento da escrita com caneta tinteiro e o relógio são significados simbólicos importantes. O tempo capitalista marcado pelo relógio e o mundo intelectual destacado pela escrita em caneta tinteiro, que naqueles tempos era importante para a concentração e para a coordenação motora. E que hoje com o universo tecnológico digital torna-se realmente fato distante do nosso presente e provavelmente inimaginável para os jovens do século XXI. Será que a ausência da caneta tinteiro e da escrita não irá interferir na capacidade de concentração das novas gerações? Aí a desconcentração remonta mesmo a um momento anterior, ao final do século XX quando a tinteiro vai sendo substituída pela esferográfica e os trabalhos passavam a ser realizados nos computadores, com corretivos, possiblidade de apagar, recortar, colar, buscas na internet, como neste blog.
 A escrita mudou, e por seguinte o seu conteúdo, e as transformações das escolhas temáticas e perspectivas de análise não são poucas. Não é por acaso que a história do livro, da leitura, do cotidiano, das relações de gênero e da cultura material (fundamental para nossa existência) despontam com força total no início do século XXI - tempos de crise e desencanto.
A Crise contemporânea é descrita por Joseph Fontana, em El futuro es un país extraño. Reflexión sobre la crisis global de comienzos del siglo XXI, em que descreve a drástica decadência da sociedade de consumo, onde os filhos vivem menos e em piores condições de vida que seus pais. Em outras palavras, a geração atual não ascende socialmente, mas decai. Para o autor, a decadência sistêmica é agravada entre outras causas, pela privatização da política, crescimento da guerra do terror e pelos interesses bélicos norte americanos (que dominaram o mundo como nunca antes). A saída para o autor está na construção de um Novo Mundo. Porém, esta saída já existiu no período colonial com os desterrados da própria terra, mas parece que não se encontra no momento como uma alternativa. Os desterrados estão agora em outras terras.
Enquanto Fontana trata da crise pública em termos históricos. Carme Riera descreve as suas memórias de infância, ou seja, trata da vida privada e do cotidiano. Estas duas análises, aparentemente excludentes e até díspares, na verdade se complementam, pois é perceptível o encanto do passado e o desencanto do mundo atual nas duas obras publicadas em 2013, por dois indivíduos de gênero diferentes que convivem no meio universitário catalão e no mundo, e principalmente, em um Estado em crise. Não é por acaso que o movimento separatista catalão tem crescido.
Ao enquadrar as duas obras em um esquema, pode-se perceber a visão feminina de Riera, tratando da vida privada, da casa, da infância, da família, das preocupações com o pisicológico e a visão masculina de Fontana abordando a vida publica, a política econômica, os conflitos sociais e a guerra de terror, valorizada pela política norte americana. Sobre as contradições e desigualdades norte americanas, um amigo monárquico castelhano disse: como pode um país com o desenvolvimento econômico como os Estados Unidos enviar pessoas inocentes para a pena de morte? Como eles não possuem um sistema de saúde público? Descobrimos agora que nós temos um sistema público de saúde e eles não. Como isto é possível? O Estado Liberal, a terceira via, mesmo para a direita espanhola é impensável, bem como o fim do sistema de saúde e da aposentadoria pública.
Em Berlim, um alemão me contava que no tempo do muro, os alemães do leste possuíam casa e emprego, mas não televisão. Ademais, enquanto na Berlim do Oeste era expressamente proibido por lei haver relações sexuais com o mesmo sexo, no Leste, esta lei havia caído por muito tempo. E agora, muitos dos alemães do leste estão sem emprego e casas, mas com tvs coloridas, bem como, diferente da França e do governo de direita espanhol, não há lei, e parece que também nem o apoio do executivo, a favor do casamento entre o mesmo sexo. O legislativo parece ter tomado também ali a iniciativa.
Tal reflexão faz parte do regresso político desenvolvidos amplamente nas décadas de 1980 e 1990. Está se colhendo no momento atual o que foi plantado neste período. E parece que o Estado Alemão não acordou para as desigualdades crescentes do próprio país. Berlim, cidade dos exilados turcos e brasileiros, parece ser o estado de exceção. Como dizia, Madame de Staël, em suas Memoire, depois de dez anos no exílio, no início do século XIX, fugindo do governo napoleônico: “Quoi quil en soit, Berlin était un des pays les plus heureux de la terre et le plus éclairés”. Para alguns exilados brasileiros nesta cidade e em outras como Londres, a única tristeza é a culpa por não quererem retornar.
Mudando de assunto, ao historiador atual está a dificuldade de realizar as conexões possíveis entre estas duas esferas. A cultura material pode ser uma das alternativas para desconstruir as ideias fixas de distinções de gênero. Mulheres guerreiras e homens alfaiates e modistas talvez sejam alternativas interessantes de objetos de pesquisa.
Ainda no texto de Riera, o momento importante da perda da inocência estava na leitura do mundo. A proibição paterna dos livros da biografia é sugestiva nestes dias trágicos. Traz a lembrança da negação de leitura de fontes primárias em um importante arquivo brasileiro na década passada. O que ajudou muito, pois a pesquisa foi feita em outras paragens inenarravelmente mais interessantes.
Também significativa na obra de Riera é a presença da francesa que fumava, se vestia de homem e escrevia, George Sand (a mulher que embaralhava os gêneros) e Chopin em Mallorca e na recepção literária da autora. As referencias literárias de Cervantes e a justificativa de personagens de outros romances, trazidos da memória da infância complementam o cotidiano infantil em Palmas.
A religiosidade cotidiana na década de 1950, no colégio de freiras, nas procissões, no sonho em ser anjo, no dia de Los Reyes estão sempre presentes em vários momentos da obra, assim como na formação da geração de mulheres desta autora, pois a Igreja Católica era ainda uma das possibilidade para a educação formal feminina para os países como Espanha, Portugal e da América Latina.
A autora ainda se refere à tristeza do fim do latim no ensino, ao aumento extensivo do lixo, às dificuldades da contemporaneidade em se adequar as mudanças. Outra peculiaridade da obra é compreender como a infância marcou profundamente todos os trabalhos literários da autora. A sua memória de infância está, deste modo, sempre presente na sua literatura.
Enfim, em tempo de desencanto e crise é importante abrir o pensamento para o mundo, descobrindo novos temas, novas pesquisas e procurar, por vezes no exílio, novos encantos.