O estudo sobre a transição do trabalho indígena para o africano na
América Portuguesa ainda está por fazer. Mas o debate sobre a mudança da mão-de-obra
escrava para a livre contém uma longa trajetória. Desde a década de 1970, a
historiografia brasileira discute sobre isso. São inaugurais, no campo da
História, as obras de Eni de Mesquita Samara, Maria Odila da Silva Dias e Laura
de Mello e Sousa, as quais estudaram a população livre pobre de maneiras e
locais distintos, mas com a preocupação de compreender o papel do trabalho
livre no mundo escravista.[1]
Durante a década de 90, os estudos diversificaram e as análises
demográficas impulsionaram outros trabalhos sobre as minorias como Mulheres,
Escravos, Forros e Indígenas surgiram. Como exemplo marcante, destaca-se a obra
de John Manuel Monteiro, Negros da Terra, na qual o autor destaca a transição
da mão-de-obra indígena para a africana.[2]
Também as pesquisas sobre a escravidão e alforria cresceram e vários
novos trabalhos foram surgindo, destacando a constituição das famílias cativas,
o cotidiano da mão-de-obra, bem como os aspectos culturais, mais presentes a
partir da década de 1980 e muito freqüentes durante o decênio seguinte.[3]
No início do século XXI, os historiadores parecem voltar novamente para
os aspectos mais conectados com o universo econômico, destacando os papéis de
uma multiplicidade de atores, dentre os quais, a população livre pobre, forra,
feminina e infantil. [4]
Assim, é nesse contexto de retomada da História Econômica e da sua
relação com o universo da População e do Cotidiano, que se apresenta o trabalho
de Paulo César Gonçalves. Em Migração e
mão-de-obra, o autor discute a migração interna em fins do século XIX,
destacando a formação de um grande contingente de mercado de trabalho livre no
Brasil. Para isso, o autor, em um primeiro momento, trata da expansão da
economia cafeeira, em detrimento do açúcar e do algodão, da persistência da
atuação dos braços livres e no processo de desmantelamento da escravidão.
A economia e as condições de vida do Nordeste são os temas centrais
abordados na segunda parte da obra. Destaca-se, nesse contexto, o acirramento
da seca no Nordeste, principalmente nos anos de 1877, 1879, 1888, 1889, 1900 e
1901, quando somente dentre setembro e julho de 88, morrem aproximadamente 27
mil pessoas.[5]
Outro aspecto interessante e inovador do trabalho é o destaque dado para
a movimentação da população no interior do país para esse período, pois as
constantes secas formavam contingentes populacionais de retirantes, os quais
formavam abarracamentos – locais em que ficavam os flagelados. Essa população
fugia da fome em busca de emprego. Como exemplo, no Amazonas, em 1877, chegavam
827 homens, mulheres e crianças. Contudo, segundo o autor,
“Migrando em grupos familiares,
muitos retirantes chegaram a São Paulo e foram prontamente encaminhados à
lavoura cafeeira, conforme interesse dos fazendeiros. Deslocados de seu mundo,
entraram em contato com uma nova realidade, na qual o café predominava
economicamente e o escravismo permeava as relações de trabalho. Algumas
semelhanças também se faziam: a grande propriedade, que dificultava o acesso à
terra e ao trabalho familiar em terras alheias”.[6]
Dessa maneira, a migração para a economia cafeeira é o tema de análise da
ultima parte do trabalho. Idéia central do mestrado, Gonçalves destaca o
emprego da mão-de-obra migrante e a sua relevância para o contingente de força
de trabalho nas lavouras paulistas. O autor observa que até a década de 1880,
eram poucos os cearenses que migravam para São Paulo. Todavia, em 1900,
passavam pela Hospedaria da Ilha das Flores, com destino a essa cidade, 324
pessoas. E, no mesmo ano, entre outubro e dezembro, para o Pará iam 2.320
retirantes, conforme os dados do Relatório do Ministério da Indústria, Viação e
Obras Públicas.[7]
Desse modo, essa população, conforme o próprio autor, “tornam-se elemento
privilegiado para a análise. Expropriados de seus meios de vida pelas secas e
pela estrutura fundiária do sertão, restou-lhes a alternativa da migração”.[8]
Assim, os movimentos populacionais em fins do século XIX ganhavam uma
dimensão distinta dos tempos coloniais, com o fim da escravidão e da
necessidade de trabalho nos centros econômicos como São Paulo e Rio de Janeiro.
Retomando o trabalho livre na História do Brasil, Gutierrez, Ida Lewkowicz e
Florentino realizaram uma obra de síntese. Em um primeiro momento, abordam a
mão-de-obra compulsória indígena, africana e forra. Com relação ao trabalho dos
gentios, destacam as atividades de exploração dos recursos naturais da
Amazônia, com a coleta de drogas e a utilização do trabalho cativo indígena até
o avançar do século XVIII. Segundo os autores,
“As expedições de coleta de
drogas ou de apresamento de índios, partiam, em geral, de uma aldeia de
missionários ou de algum porto à beira do rio, no período de setembro a
janeiro. As canoas eram grandes o suficiente para transportar de trezentas a
quinhentas arrobas de mercadorias. O comandante, em geral branco ou mestiço,
chefiava a tripulação composta por cerca de dezoito remadores indígenas. Quando
atingiam um local adequado, armavam uma cabana e um estrado para secar o cacau
e armazená-lo. Permaneciam no mato por aproximadamente oito dias e voltavam do
armazém para descarregar. A viagem fluvial de retorno a Belém podia durar uma
ou duas semanas”.[9]
Por meio de um longo processo, o trabalho indígena era substituído pelos
africanos, os quais faziam parte do tráfico atlântico e da montagem da economia
açucareira no Nordeste, bem como trabalhavam nas lavras do ouro, ou mesmo nas
atividades urbanas de comércio, serviços domésticos e das mais varias formas de
artesanatos como alfaiates, sapateiros, carpinteiros e roceiros.
Desse modo, a escravidão africana constituiu o pilar da central de toda a
economia colonial. Contudo, a alforria de uma minoria de cativos, constituía um
contingente populacional intermediário, excluída de certos cargos públicos e do
prestígio social. Desse modo, a população de “pardos, mulatos livres”
representavam cerca de 42% da população.[10]
Na segunda parte da obra, os autores analisam a população trabalhadora
livre e os processos migratórios, destacando a sua constante
circulação, a chegada dos imigrantes, as atividades nas pequenas propriedades e
nas grandes lavouras, principalmente de café.
Outro aspecto a ser salientado, diz respeito ao trabalho fabril a partir
dos fins do século XIX e os papéis dos imigrantes nesse setor econômico. No
entanto, com o avançar do século XX, o predomínio dos estrangeiros diminuía em
detrimento do mercado de mão-de-obra interno, com as migrações dos retirantes
do Nordeste.
No que se refere à industria Têxtil, os historiadores apontam que, em
1912, as ocupações no setor abrangiam mais de 30, tais como batedores,
passadeiras, fiandeiras, tecedeiras, tintureiros, limpadeiras, costureiras de
sacos, pessoal de oficinas, contramestres, serralheiros, carpinteiros, etc”[11]
Observa-se também que essas atividades contavam com o trabalho feminino, sendo
representadas por 64%, tendo 71% a idade de 12 e 22 anos.
E o trabalho feminino faz parte da análise do terceiro capítulo da obra.
Nesse momento, destacam-se os papéis das mulheres escravas, principalmente nos
centros urbanos, aonde conseguiam comprar com mais facilidade que os homens a
alforria. Além disso, eram atividades consideradas como femininas, a ama de
leite, a tecelagem e os serviços domésticos. Os autores também analisam os
papéis das mulheres chefes de domicílio, imigrantes e operárias.
O trabalho feminino, mais abundante e barato que os do gênero masculino,
constituiu uma das características mais importantes da formação de mercado de
trabalho no Brasil e mesmo ainda atualmente, sendo que “estão cada vez mais em
todos os setores e atividades, mesmo naqueles que muito pouco tempo eram
redutos masculinos”.[12]
No quarto e ultimo capítulo, os historiadores abordam a atuação das
crianças no universo do trabalho. E, desse modo, tratam de um tema ainda pouco
tratado pela historiografia. Desde os tempos coloniais, a mão-de-obra infantil
foi utilizada desde as populações indígenas. Além disso, destacam o tráfico de crianças na
economia atlântica, notando que
Entre
1734 e 1769, deixaram o porto de Luanda, em Angola, em média, 540 crianças por
ano, com destino ao Brasil. Foram, ao todo, quase vinte mil crianças. Desse
total, 75% já caminhavam e as demais acompanhavam sua mãe. Houve embarcações
negreiras no século XVIII que transportaram quase seiscentos escravos de uma só
vez, um quarto dos quais crianças. O habitual, no entanto, era o transporte de
poucas crianças, entre vinte e trinta por navio.[13]
Nesse sentido, o trabalho dos pequenos foi constante na população escrava
e mesmo na livre pobre, sendo as meninas dedicadas desde até aproximadamente os
5 anos a atividades de fiação, tecelagem e costura, principalmente no interior
do domicílio. E, os meninos trabalhavam geralmente como sapateiros,
jornaleiros, carpinteiros e tropeiros.
È interessante notar, portanto, que o trabalho infantil, na São Paulo, em
1920, continha cerca de 20 crianças, exercendo atividades de fiandeiras,
dobradeiras, retorcedeiras e meadeiras, dentre idades de 13 e 14 anos, com
salários menores que os adultos. Havendo, assim, uma “lucratividade maior” dos
empreendedores.[14]
Contudo, apenas a partir do século XIX e com o decorrer do período
seguinte que o trabalho infantil foi sendo combatido, por meio da intervenção
do Estados e das Leis restritivas e punitivas à mão-de-obra de meninas e
meninos, jovens e crianças.
Em suma, a formação de mercado de trabalho no Brasil constituiu-se em um
longo processo de desprezo pelos ofícios mecânicos e pela valorização do ócio e
do comando. Além disso, reservando às mulheres os piores trabalhos e salários,
bem como às crianças a inviabilidade da infância. Em outras palavras, desde o
período colonial, as crianças eram vistas como adultos em miniatura e
necessitavam de trabalhar do mesmo modo, mas não havia ainda uma preocupação em proteger o menor, ou mesmo o aparato do próprio Estado, com educação, saúde que existe de maneira ainda que precária na atualidade.
[1]
Eni de Mesquita. O papel do agregado na
região de Itu, 1780-1830. São Paulo: FAPESP, Coleção Museu Paulista da USP,
1977.Laura de Mello e Souza. Desclassificados
do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
Maria Odila da Silva Dias. Quotidiano e
poder. São Paulo: Brasiliense, (1ª ed. 1982) 2ªed., 1984. Hebe Maria Mattos
de Castro. Ao sul da História. Lavradores
pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
[2]
John Manuel Monteiro. Negros da terra.
Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
[3]
Dentre os vários trabalhos sobre cultura popular destaca-se o de Laura de Mello
e Sousa. O diabo e a Terra de Santa Cruz.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
[4]
A respeito das transformações econômicas e da população na Capitania e, posteriormente,
Província de São Paulo, ver. Francisco Vidal Luna & Hebert Klein. Evolução da Sociedade e Economia de São
Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005.
[5] Paulo Cesar Gonçalves. Migração e mão-de-obra.
Retirantes cearenses na economia cafeeira do centro-sul (1877-1901). São Paulo:
Humanitas, 2006, p. 116-117.
[6]
Idem, p. 154.
[7]
Idem, p. 174.
[8]
Idem, p. 211.
[9]
Ida Lewkowicz. Horacio Gutiérrez & Manolo
Florentino. Trabalho Compulsório e
trabalho livre na história do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2008, pp.17-18.
[10]
Idem, p. 41.
[11]
Idem, p. 67.
[12]
Idem, p. 104
[13]
Idem, p. 109.
[14]
Idem, p. 124.