quinta-feira, 26 de abril de 2012

TRABALHO E POPULAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA. Igor de Lima



 
O estudo sobre a transição do trabalho indígena para o africano na América Portuguesa ainda está por fazer. Mas o debate sobre a mudança da mão-de-obra escrava para a livre contém uma longa trajetória. Desde a década de 1970, a historiografia brasileira discute sobre isso. São inaugurais, no campo da História, as obras de Eni de Mesquita Samara, Maria Odila da Silva Dias e Laura de Mello e Sousa, as quais estudaram a população livre pobre de maneiras e locais distintos, mas com a preocupação de compreender o papel do trabalho livre no mundo escravista.[1]
Durante a década de 90, os estudos diversificaram e as análises demográficas impulsionaram outros trabalhos sobre as minorias como Mulheres, Escravos, Forros e Indígenas surgiram. Como exemplo marcante, destaca-se a obra de John Manuel Monteiro, Negros da Terra, na qual o autor destaca a transição da mão-de-obra indígena para a africana.[2]
Também as pesquisas sobre a escravidão e alforria cresceram e vários novos trabalhos foram surgindo, destacando a constituição das famílias cativas, o cotidiano da mão-de-obra, bem como os aspectos culturais, mais presentes a partir da década de 1980 e muito freqüentes durante o decênio seguinte.[3]
No início do século XXI, os historiadores parecem voltar novamente para os aspectos mais conectados com o universo econômico, destacando os papéis de uma multiplicidade de atores, dentre os quais, a população livre pobre, forra, feminina e infantil. [4]
Assim, é nesse contexto de retomada da História Econômica e da sua relação com o universo da População e do Cotidiano, que se apresenta o trabalho de Paulo César Gonçalves. Em Migração e mão-de-obra, o autor discute a migração interna em fins do século XIX, destacando a formação de um grande contingente de mercado de trabalho livre no Brasil. Para isso, o autor, em um primeiro momento, trata da expansão da economia cafeeira, em detrimento do açúcar e do algodão, da persistência da atuação dos braços livres e no processo de desmantelamento da escravidão.
A economia e as condições de vida do Nordeste são os temas centrais abordados na segunda parte da obra. Destaca-se, nesse contexto, o acirramento da seca no Nordeste, principalmente nos anos de 1877, 1879, 1888, 1889, 1900 e 1901, quando somente dentre setembro e julho de 88, morrem aproximadamente 27 mil pessoas.[5]
Outro aspecto interessante e inovador do trabalho é o destaque dado para a movimentação da população no interior do país para esse período, pois as constantes secas formavam contingentes populacionais de retirantes, os quais formavam abarracamentos – locais em que ficavam os flagelados. Essa população fugia da fome em busca de emprego. Como exemplo, no Amazonas, em 1877, chegavam 827 homens, mulheres e crianças. Contudo, segundo o autor,

“Migrando em grupos familiares, muitos retirantes chegaram a São Paulo e foram prontamente encaminhados à lavoura cafeeira, conforme interesse dos fazendeiros. Deslocados de seu mundo, entraram em contato com uma nova realidade, na qual o café predominava economicamente e o escravismo permeava as relações de trabalho. Algumas semelhanças também se faziam: a grande propriedade, que dificultava o acesso à terra e ao trabalho familiar em terras alheias”.[6]
           
Dessa maneira, a migração para a economia cafeeira é o tema de análise da ultima parte do trabalho. Idéia central do mestrado, Gonçalves destaca o emprego da mão-de-obra migrante e a sua relevância para o contingente de força de trabalho nas lavouras paulistas. O autor observa que até a década de 1880, eram poucos os cearenses que migravam para São Paulo. Todavia, em 1900, passavam pela Hospedaria da Ilha das Flores, com destino a essa cidade, 324 pessoas. E, no mesmo ano, entre outubro e dezembro, para o Pará iam 2.320 retirantes, conforme os dados do Relatório do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas.[7] Desse modo, essa população, conforme o próprio autor, “tornam-se elemento privilegiado para a análise. Expropriados de seus meios de vida pelas secas e pela estrutura fundiária do sertão, restou-lhes a alternativa da migração”.[8]
Assim, os movimentos populacionais em fins do século XIX ganhavam uma dimensão distinta dos tempos coloniais, com o fim da escravidão e da necessidade de trabalho nos centros econômicos como São Paulo e Rio de Janeiro.
Retomando o trabalho livre na História do Brasil, Gutierrez, Ida Lewkowicz e Florentino realizaram uma obra de síntese. Em um primeiro momento, abordam a mão-de-obra compulsória indígena, africana e forra. Com relação ao trabalho dos gentios, destacam as atividades de exploração dos recursos naturais da Amazônia, com a coleta de drogas e a utilização do trabalho cativo indígena até o avançar do século XVIII. Segundo os autores,
“As expedições de coleta de drogas ou de apresamento de índios, partiam, em geral, de uma aldeia de missionários ou de algum porto à beira do rio, no período de setembro a janeiro. As canoas eram grandes o suficiente para transportar de trezentas a quinhentas arrobas de mercadorias. O comandante, em geral branco ou mestiço, chefiava a tripulação composta por cerca de dezoito remadores indígenas. Quando atingiam um local adequado, armavam uma cabana e um estrado para secar o cacau e armazená-lo. Permaneciam no mato por aproximadamente oito dias e voltavam do armazém para descarregar. A viagem fluvial de retorno a Belém podia durar uma ou duas semanas”.[9]

Por meio de um longo processo, o trabalho indígena era substituído pelos africanos, os quais faziam parte do tráfico atlântico e da montagem da economia açucareira no Nordeste, bem como trabalhavam nas lavras do ouro, ou mesmo nas atividades urbanas de comércio, serviços domésticos e das mais varias formas de artesanatos como alfaiates, sapateiros, carpinteiros e roceiros.
Desse modo, a escravidão africana constituiu o pilar da central de toda a economia colonial. Contudo, a alforria de uma minoria de cativos, constituía um contingente populacional intermediário, excluída de certos cargos públicos e do prestígio social. Desse modo, a população de “pardos, mulatos livres” representavam cerca de 42% da população.[10]
Na segunda parte da obra, os autores analisam a população trabalhadora livre e os processos migratórios, destacando a sua constante circulação, a chegada dos imigrantes, as atividades nas pequenas propriedades e nas grandes lavouras, principalmente de café.
Outro aspecto a ser salientado, diz respeito ao trabalho fabril a partir dos fins do século XIX e os papéis dos imigrantes nesse setor econômico. No entanto, com o avançar do século XX, o predomínio dos estrangeiros diminuía em detrimento do mercado de mão-de-obra interno, com as migrações dos retirantes do Nordeste.
No que se refere à industria Têxtil, os historiadores apontam que, em 1912, as ocupações no setor abrangiam mais de 30, tais como batedores, passadeiras, fiandeiras, tecedeiras, tintureiros, limpadeiras, costureiras de sacos, pessoal de oficinas, contramestres, serralheiros, carpinteiros, etc”[11] Observa-se também que essas atividades contavam com o trabalho feminino, sendo representadas por 64%, tendo 71% a idade de 12 e 22 anos.
E o trabalho feminino faz parte da análise do terceiro capítulo da obra. Nesse momento, destacam-se os papéis das mulheres escravas, principalmente nos centros urbanos, aonde conseguiam comprar com mais facilidade que os homens a alforria. Além disso, eram atividades consideradas como femininas, a ama de leite, a tecelagem e os serviços domésticos. Os autores também analisam os papéis das mulheres chefes de domicílio, imigrantes e operárias.
O trabalho feminino, mais abundante e barato que os do gênero masculino, constituiu uma das características mais importantes da formação de mercado de trabalho no Brasil e mesmo ainda atualmente, sendo que “estão cada vez mais em todos os setores e atividades, mesmo naqueles que muito pouco tempo eram redutos masculinos”.[12]
No quarto e ultimo capítulo, os historiadores abordam a atuação das crianças no universo do trabalho. E, desse modo, tratam de um tema ainda pouco tratado pela historiografia. Desde os tempos coloniais, a mão-de-obra infantil foi utilizada desde as populações indígenas.  Além disso, destacam o tráfico de crianças na economia atlântica, notando que
Entre 1734 e 1769, deixaram o porto de Luanda, em Angola, em média, 540 crianças por ano, com destino ao Brasil. Foram, ao todo, quase vinte mil crianças. Desse total, 75% já caminhavam e as demais acompanhavam sua mãe. Houve embarcações negreiras no século XVIII que transportaram quase seiscentos escravos de uma só vez, um quarto dos quais crianças. O habitual, no entanto, era o transporte de poucas crianças, entre vinte e trinta por navio.[13]

Nesse sentido, o trabalho dos pequenos foi constante na população escrava e mesmo na livre pobre, sendo as meninas dedicadas desde até aproximadamente os 5 anos a atividades de fiação, tecelagem e costura, principalmente no interior do domicílio. E, os meninos trabalhavam geralmente como sapateiros, jornaleiros, carpinteiros e tropeiros.
È interessante notar, portanto, que o trabalho infantil, na São Paulo, em 1920, continha cerca de 20 crianças, exercendo atividades de fiandeiras, dobradeiras, retorcedeiras e meadeiras, dentre idades de 13 e 14 anos, com salários menores que os adultos. Havendo, assim, uma “lucratividade maior” dos empreendedores.[14]
Contudo, apenas a partir do século XIX e com o decorrer do período seguinte que o trabalho infantil foi sendo combatido, por meio da intervenção do Estados e das Leis restritivas e punitivas à mão-de-obra de meninas e meninos, jovens e crianças.
Em suma, a formação de mercado de trabalho no Brasil constituiu-se em um longo processo de desprezo pelos ofícios mecânicos e pela valorização do ócio e do comando. Além disso, reservando às mulheres os piores trabalhos e salários, bem como às crianças a inviabilidade da infância. Em outras palavras, desde o período colonial, as crianças eram vistas como adultos em miniatura e necessitavam de trabalhar do mesmo modo, mas não havia ainda uma preocupação em proteger o menor, ou mesmo o aparato do próprio Estado, com educação, saúde que existe de maneira ainda que precária na atualidade.



[1] Eni de Mesquita. O papel do agregado na região de Itu, 1780-1830. São Paulo: FAPESP, Coleção Museu Paulista da USP, 1977.Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. Maria Odila da Silva Dias. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, (1ª ed. 1982) 2ªed., 1984. Hebe Maria Mattos de Castro. Ao sul da História. Lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
[2] John Manuel Monteiro. Negros da terra. Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[3] Dentre os vários trabalhos sobre cultura popular destaca-se o de Laura de Mello e Sousa. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
[4] A respeito das transformações econômicas e da população na Capitania e, posteriormente, Província de São Paulo, ver. Francisco Vidal Luna & Hebert Klein. Evolução da Sociedade e Economia de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005.
[5] Paulo Cesar Gonçalves. Migração e mão-de-obra. Retirantes cearenses na economia cafeeira do centro-sul (1877-1901). São Paulo: Humanitas, 2006, p. 116-117.
[6] Idem, p. 154.
[7] Idem, p. 174.
[8] Idem, p. 211.
[9] Ida Lewkowicz. Horacio Gutiérrez & Manolo Florentino. Trabalho Compulsório e trabalho livre na história do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2008, pp.17-18.
[10] Idem, p. 41.
[11] Idem, p. 67.
[12] Idem, p. 104
[13] Idem, p. 109.
[14] Idem, p. 124.

OBJETIVO DO BLOG

Esse blog possui como objetivo discutir temas relacionados com História e Gênero, enfocando principalmente História da História, História das Mulheres, História da Moda, Literatura Feminina e Mulheres na Literatura. E a ideia é publicar uma vez por semana algumas anotações de pesquisa que não estão presentes no suporte impresso.
Curriculum: I entered the History course at the Universidade de São Paulo/ University of São Paulo in1997, and started as a researcher in the Centro de Demografia Histórica da América Latina (Center of Studies of Demographic History of Latin America - CEDHAL/FFLCH/USP), in which I worked as a scientific initiation, master’s and doctoral researcher until 2011. I presented my master’s thesis, O fio e a trama: negócios e trabalhos femininos na vila de São Paulo (1554-1640)/ Thread and fabric: business and feminine works in the São Paulo village (1554-1640), in 2006. The doctoral dissertation, on gender, economy and clothing culture (1554-1640), dealt with themes such as the modifications in the way of dyeing and of representing colors; textile production and clothing, highlighting the role of guilds; the circulation of second-hand clothes and of the cultural manifestations of clothing consumption; the roles of gender in the economy and the clothing culture. My post-doctoral research, regarding Gênero, têxteis e vestuário no Novo Mundo (1580-1640)/ Gender, textiles and clothes in the New World (1580-1640) on the one hand aimed to keep the themes discussed in my doctoral research and, on the other hand, to considerably expand the scope of the research to the Iberian colonization, dealing with the production, the circulation of the fabrics and ways of dressing. In this post-doctoral research, I investigated different regions besides Brazil, such as Peru, Mexico, Spain, the United States and Germany.

POEMA DE SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ

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 “Claro honor de las mujeres
y del hombre docto ultraje,
vos probáis que no es el sexo
de la inteligencia parte”.

“... de immensas joyas
Compuso mi adorno.
Vistome con ropas
tejidas com oro,
y con corona
me honro como Esposo,
Lo que he deseado
ya lo ven mis ojos,
y lo que esperaba
ya feliz lo gozo.”

“Si la flor delicada,
si la peña, que altiva no consciente
del tiempo ser hollada,
ambas me imitan, aunque variamente,
ya con fragilidad, ya con dureza,
mi dicha aquélla y ésta mi firmeza”.

(Sor Juana Inés de La Cruz)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Resenha: Wanda Maleronka. Fazer roupa virou moda. Um figurino de ocupação da mulher (São Paulo, 1920-1950). São Paulo: Senac, 2008, 232p. IGOR DE LIMA


 
Wanda Maleronka publica a sua tese de doutorado mais de dez anos depois de concluída. Nela, analisa a documentação da Escola Profissional Feminina no Brás, o Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, iniciado em 1934. Também aborda de maneira crítica os livros do período, como o Livro de Costura Singer, a revista Cine-Modearte, iniciada em 1929, artigos de jornais como a “Economia da Moda” de Cecília Meireles na Revista O Observador Econômico e Financeiro de setembro de 1939, e realiza interpretações bem interessantes de entrevistas com várias antigas costureiras e modistas.
Com esse vasto acervo documental e com análise das fontes primárias, retrata o cotidiano das trajetórias de vida de costureiras e modistas na São Paulo na primeira metade do Século XX. Além disso, percebe que a vida desses grupos femininos estava relacionada ao universo do trabalho, o qual naquele momento estava em plena expansão e transformação, com novas demandas de luxo e ofertas de empregos.
Dessa maneira, segundo a autora, existiam basicamente três tipos de trabalho. O primeiro era independente, caracterizado pelo trabalho doméstico e pelas atividades exercidas entre as mulheres das mesmas famílias, sendo muito comum o auxílio das filhas. Nessa espécie de atividade, filhas e netas coziam, embainhavam, bem como realizavam tarefas de limpezas e compras para a casa. A segunda forma de trabalho contava com o assalariamento das modistas e costureiras, as quais faziam roupas pré-fabricadas ou exerciam atividades em Mesons. Por fim, o terceiro tipo era a atividade sazonal, a qual impunha às mulheres a dependência dos empregadores, assim como a dificuldade de fixarem-se nos empregos e receber salários para lhes provessem o sustento.
Pra conseguirem realizar um bom ofício na indústria indumentária, as costureiras necessitavam de um longo conhecimento técnico, havendo um processo acirrado de competição entre as mais diferentes classes de trabalhadoras, as quais se dedicavam aos figurinos e às inovações técnicas sobre novas cores, modelos, tecidos e aviamentos para a fabricação das indumentárias.
A partir da década de 1940, houve um significativo florescimento da industria e do comércio de roupas na cidade de São Paulo, como a Fábrica de Roupas Magazine de Patriarca, a qual fornecia para o Magazine de Modas. No entanto, a expansão da industrialização e comercial de roupas contava majoritariamente com a participação de pequenas empresas, geralmente, familiar.
Em decorrência dessas transformações, nas camadas populares, as mulheres, geralmente, realizavam a aprendizagem escolar e trabalhavam ao mesmo tempo, em algum ofício. Sobre as dificuldades do cotidiano dessa mão-de-obra, Wanda relata a visão de Antonia Ramos. Essa professora de Corte e Confecção do Instituto Profissional Feminino contava que aos três anos começava a aprender algumas ‘coisinhas’ com a mãe exigente. Outro depoimento importante, foi o de Angelina Perrota, a qual descreve o aprendizado da costura na infância:
“No meu tempo aprendi com minha mãe a bordar e costurar. Minha mãe costurava à máquina e eu ficava sentada no chão a seu lado. Foi assim que a minha mãe ensinou-me a fazer a bainha na mão. Bem pequena eu já era rápida e muito caprichosa. Minha mãe costurava roupas brancas para uma fábrica de turcos, e sempre havia um montão de peças, como ceroulas e pijamas, para fazer. Muitas vezes, enquanto minha mãe trabalhava, eu ficava arrumando os apetrechos de costura: os carretéis, os botões, a cartelinha de agulhas, as sobras de elásticos, colchetes, retalhos de tecido, que ficavam sempre misturados. Naquele tempo, era tanto o trabalho que tudo passava rápido e nem sempre misturados. Naquele tempo, era tanto trabalho que tudo passava rápido e nem sobrava tempo para pensar em aprender outro ofício.” (p.64)
Desse modo, nas escolas de trabalho e nas oficinas, as meninas limpavam, coletavam cortes e fiapos espalhados, costuravam fitas, pregavam etiquetas, colocavam forros nos acabamentos dos chapéus e entregavam encomendas, podendo ter até mesmo 11 horas de serviço diário.
Maleronka observa, no quadro de trabalhos paulistanos, os salários das mulheres do setor têxtil eram de 604,00 cruzeiros, enquanto que o dos homens era de 889,00. No campo do vestuário e toucador, elas recebiam 672,00 e eles 977,00. A diferença ficava ainda maior na esfera da produção dos artefatos de luxo, sendo 831,20 para 440,10.
Além desses dados, demonstra o difícil cotidiano das modistas, costureiras e bordadeiras, pois essas mulheres eram obrigadas a exercer um bom trabalho, atendendo bem seus clientes e nem sempre eram reconhecidas por isso. Também retrata o dia-a-dia e o conhecimento feminino nas ruas do centro da cidade, conhecendo lojistas, comprando e escolhendo tecidos e fabricando com capacidade técnica as indumentárias desejadas pelos novos consumidores da cidade de São Paulo. Esses últimos exigiam uma mão-de-obra qualificada, a qual conhecesse os meandros da etiqueta impostos pela elite paulistana, bem como os padrões de bom gosto. Nesse sentido os  novos gostos de consumo e as novas regras de etiqueta da elite foram difundidos na vida urbana, principalmente, nas novas lojas de artigos de luxo, como o Mappim Stores.
Nessas lojas e indústrias era muito comum o trabalho feminino infantil, havendo meninas de 11 e 12 anos, as quais eram responsáveis pelos serviços menores e recebiam um pequeno salário. Com o tempo, essas meninas aprendiam o ofício e conseguiam com sorte acumular algum pecúlio para comprar o enxoval e casarem-se.
Todavia, as costureiras, modistas e bordadeiras tinham um trabalho cotidiano imenso com agulhas, máquinas de costurar, comprando tecidos, fazendo moldes, recortando, alinhavando, bordando, atendendo a clientes exigentes e mantendo-se em dia com as metamorfoses da moda.
Em suma, Wanda Maleronka traça com maestria o cotidiano feminino no ramo da costura, moldando as diferenças e as transformações dos seus ofícios, relacionando isso com a moda na cidade de São Paulo, bem como destacando os avanços econômicos e os problemas sociais relacionados a isso.
Assim, a autora segue passos da historiografia sobre a História das Mulheres e do mundo criativo da Moda. Além disso, fornece possibilidades de estudos para outras regiões e para outros períodos e instiga os pesquisadores a reconstituir, compreender, explicar e problematizar a História da Moda.

UMA RESENHA DE: ROCHE, Daniel. A cultura das aparências. Uma história da indumentária (Séculos XVII-XVIII). São Paulo: Senac, 2007. [La culture des apparences: une histoire du vêtement (XVIIe. – XVIIIe., 1989]. (trad. Assef Kfori). Igor de Lima




Daniel Roche publicou várias obras no decênio de 1980. Le pouple de Paris. Essai sur la culture populaire du XVIIIe. Siècle, em 1981, traduzido para o português e publicado pela EDUSP, Les Français et L’Ancien Regime, em 1984, Le Republicains des letres. Gens de culture et Lumières au XVIII siècle, em 1988, e, por fim, La cultura des apparences. Une histoire du vêtement, XVII-XVIII siècle, em 1989. Essa última foi traduzida pela editora Senac, em 2007.
A tradução desta última obra contém alguns problemas, a palavra “vestimentaires” foi traduzida por roupas, indumentárias e vestimentárias; “vêtements”, por indumentárias, vestimentas e roupas; “costume”, por vestuário e costume. Essas traduções não contém propriamente erro, mas demonstram uma falta de coerência nas palavras e nos conceitos, sendo que os termos possuem significados diferentes para os especialistas. O trecho intitulado “Perruques et Eglise, costume e coutume”, ficou em português, “A peruca e a Igreja, costume e costume” seria melhor, “A peruca e a Igreja, costumes e hábitos”. Outro problema de tradução foi o termo em françês é “Le besoin nobiliaires” (Necessidades nobiliárquicas), e o mesmo está traduzido para somente “Os nobres”. No entanto, o subtítulo da tradução mais complicado foi  “A roupa das mulheres na época de Luís XIV”, que em françês é mais belo: “L’ esprit des formes feminines ou temps de Louis XIV”. A tradução, apesar de no geral estar bem feita, contém estes detalhes que escondem um pouco o elegante estilo do autor. Outro subtítulo que poderia ser melhor traduzido é o “Paris aprende a assoar o nariz”, sendo, neste caso, indispensável “o nariz”.
Esta obra retrata as transformações dos modos de vestir da sociedade parisiense. A idéia central é de que houve uma indumentária específica do Ancien Regime. Ou seja, constituiu-se, na formação do Estado françês, uma indumentária do Antigo Regime. O tema do consumo das roupas é centrado na sua influência de Fernand Braudel e na crítica à Quicherat, o qual não se preocupa com a “função da roupa” e das “mudanças de sensibilidades”. Preocupações centrais para um historiador da cultura material como Roche.
Em sua perspectiva, estabelece conexões entre a situação das roupas na economia, cultura e na política. Além disso, insere as transformações nas vestimentas como “uma escolha em matéria de aparência”. (p.180) Desse modo, a História da Vestimenta passa a ter uma relação entre as estruturas e os desejos e a ação dos indivíduos, sendo destacado a população que antes estava excluída da historiografia, como as mulheres revendedoras de roupas.
Na segunda parte, o autor analisa a economia dos guardas-roupas, sendo destacado o processo de consumo das vestimentas entre toda a sociedade parisiense, tendo o povo miudo a possibilidade de adquirir novos bens vestimentários. O consumo, no entanto, ainda não era de massas, havendo, portanto, uma escassez de artefatos de vestir luxuosos. Essa economia de consumo era policiada pelo Estado em formação e pela nobreza. Nessa economia das vestimentas, a invenção da roupa branca, o linge françês, e a circulação de roupas usadas foi fundamental para o desenvolvimento econômico do “setor têxtil” e para a sociedade pré-industrial:
“(...) Expressão de uma higiene diferente da nossa, em conformidade com o estilo moral das civilidades, adaptadas aos dados tecnológicos do tempo da água escassa, a invenção da roupa-branca marca o apogeu de uma civilização aristocrática em que o parecer triunfou”. (p.185)

Nessa civilização aristocrática, as leis suntuárias tinham um significado fundamental de protecionismo à manufaturas locais por parte da política econômica da Coroa. Apesar da constante preocupação da Monarquia em normatizar as regras de vestir entre os Estados, as roupas, principalmente as roupas brancas, passam a ser consumidas por cada vez mais durante o século XVIII.
“(...) O sonho e a realidade, por vezes confundidos, subverteram o teatro das aparências aristocráticas mediante custosas libertações. O desejo do natural e da simplicidade conduz mais do que nunca aos gastos. O conjunto dos significados da roupa feminina se hipertrofia ao infinito entre a economia dos usos indispensáveis e a dos imperativos de seguir o gosto. É preciso, para aí se encontrar, ler as gazetas e os Monuments du costume...” (p.152)

O uniforme, constituído a partir da formação dos Estados Modernos e Monárquicos, também é tratado com as relações e distinções entre os aspectos militares e civis, bem como entre o masculino e o feminino. Segundo o autor,
“A disciplina do século XVIII, o recrutamento, as casernas e serviços, tudo contribui para a separação rotineira entre o civil e o militar, entre o masculino e o feminino. As guerras da Revolução e o Império ajudaram incontestávelmente a acelerar as profundas transformações por meio do serviço militar obrigatório e da duração e da distância das operações bélicas” (p.238)

Na terceira parte da obra, o autor demonstra que toda uma série de ofícios passam a trabalhar com o mercado de vestes. Por toda Paris, e em todas as camadas sociais, esses circuitos passam a assumir um papel cada vez mais relevante, se expalhando pelas províncias francesas.
Havia em Paris, toda uma teatralização das aparências e dos gestos, originários de um ideal aristocrático. A aristocracia tentava se distinguir pela forma de vestir, mas não conseguia impedir que a burguesia mantivesse um consumo constante das roupas e dos indumentos. Para a sociedade de corte, a burguesia consumia roupas mediocres, não conseguindo adquirir a perfeição do gosto aristocrático. Por um lado, essa mediocridade ocorria por meio do uso de trajes ostentatórios de idivíduos que desejavam ascender socialmente, o que significava adquirir títulos de nobreza e vestir melhor. Por outro, a ostentação vestimentária atingiu não somente as camadas dominantes, mas acabou se extendendo a uma maior parte da população. Nesta revolução no consumo das vestes, as mulheres adquiriam um papel fundamental. Eram elas, fundamentalmente, no terceiro Estado que adquiriam a maior variedade de aventais, saiotes, camisas, sapatos e outros artefatos, que aparecem constantemente nas fontes notariais francesas. No que se refere ao gênero oposto, o consumo ostentatório era mais importante entre os homens aristocratas, sendo o consumo masculino burguês baseado em tons escuros e no conforto. Nesse contexto, a calça passa a ser consumida por setores da camada trabalhadora e mercantil. E o seu consumo macisso só ocorre depois da  consolidação da burguesia no século XIX.
Em suma, a ascenção da indumentária burguesa era impedida pela sociedade aristocrática do Antigo Regime, que considerava os valores, os gestos e os comportamentos dos burgueses medíocres.
No âmbito da produção de tecidos e roupas, destacavam-se as atuações das costureiras e modistas de Paris no tempo das Luzes, surgindo na segunda metade do século, as modistas, que se tornavam autônomas em relação às coorporações de ofícios. Nessa perspectiva, as modistas revolucionavam a moda parisiense e deram o estopim ao processo de produção de consumo de luxo françês que cresceria em grande escala no século seguinte.
Daniel Roche tem uma forma fascinante de escrever. Seu estilo próprio faz o debate sobre as transformações da História da “vestimenta” e da moda avançar na historiografia francesa e mundial. No entanto, existem algumas questões que se constituem ausêntes na obra. A primeira, é o significado da História da “Vestimenta”, preocupação teórica central no seu trabalho. Como pode existir uma história do vestígio ou objeto em si, se história presupõe o humano e o social? Ou seja, será que tecidos, roupas e indumentárias possuem história? Ou, a história da vestimenta, ou da moda, nada mais é do que a história das relações entre os indivíduos e os texteis, tecidos, roupas, ornamentos? Dessa forma, o tema e a abordagem do autor necessitava de uma explicação metodológica e teórica ainda maior sobre disciplina História e as maneiras de vestir.
O segundo ponto, se refere à historiografia. Há falta de um debate mais aprofundado com o seu contemporâneo Gilles Lipovetsky. Daniel Roche faz uma breve referência negativa a este autor. No entanto, não aproveita alguns dados deste autor, bem como ignora o importante debate teórico europeu, como os alemães, inglêses e italianos. A sua discussão se fixa na historiografia francesa e com isto fornece a impressão de que a França descobriu a moda, não tendo influência importante de mais nenhuma outra região. Esquece de que apesar do fim da unidade européia cristã, a França mantinha contatos culturais, econômicos e mesmo políticos importante com a Espanha, as cidades italianas, a Inglaterra e mesmo a região dos Países Baixos e da Flandres. Sem contar a presença religiosa protestante alemã que interpretará as formas de vestir de maneiras diferenciadas. Enfim, ao ler o fantástico trabalho de Daniel Roche há uma ausencia dos intercâmbios do universo das aparências. Ou seja, a França não foi palco de todas as invenções da moda, embora seja por um grande período o seu centro.
No que se refere ao contexto, Roche pouco se refere às transformações econômicas, não desenvolvendo a temática da transição do feudalismo para o capitalismo, sendo este apenas mercantil, mas não fica claro o processo de transição de capital. Ou seja, fica-se a questão: como ocorreu a formação do capital industrial na França?
Na esfera da política econômica mercantilista, o autor desenvolve alguns assuntos. No entanto, não fica claro as transações econômicas e culturais referentes à indumentária, entre a França do Antigo Regime, com o resto da Europa e do mundo. Parece, portanto, que era privilégio da corte e do mundo françês a cultura das aparências, não havendo nenhuma espécie de circulação entre a moda francesa e  as cidades-italianas, o huniverso ibérico e anglo-saxão, bem como os Países Baixos. A corte dos Habsburgos, por exemplo, é excluída da interpretação de Roche, que também esquece da política de casamentos entre as realezas européias. Além do mais, a formação do uniforme militar parece ser constituído em outras regiões.
Apesar de todas estas questões, o trabalho de Daniel Roche é de suma importância para a História da Moda e da Indumentária, pois avança em questões e temas, fazendo com que as roupas sejam apenas um belo pretexto para tratar das relações entre o vestuário e os indivíduos. Em outras palavras, o que importa são as transformações das relações humanas com os artefatos.