Daniel
Roche publicou várias obras no decênio de 1980. Le pouple de Paris. Essai sur
la culture populaire du XVIIIe. Siècle, em 1981, traduzido para o português e publicado
pela EDUSP, Les Français et L’Ancien Regime, em 1984, Le Republicains des
letres. Gens de culture et Lumières au XVIII siècle, em 1988, e, por fim, La
cultura des apparences. Une histoire du vêtement, XVII-XVIII siècle, em 1989.
Essa última foi traduzida pela editora Senac, em 2007.
A tradução
desta última obra contém alguns problemas, a palavra “vestimentaires” foi traduzida por roupas, indumentárias e
vestimentárias; “vêtements”, por
indumentárias, vestimentas e roupas; “costume”,
por vestuário e costume. Essas traduções não contém propriamente erro, mas
demonstram uma falta de coerência nas palavras e nos conceitos, sendo que os
termos possuem significados diferentes para os especialistas. O trecho
intitulado “Perruques et Eglise, costume e coutume”, ficou em português, “A
peruca e a Igreja, costume e costume” seria melhor, “A peruca e a Igreja,
costumes e hábitos”. Outro problema de tradução foi o termo em françês é “Le
besoin nobiliaires” (Necessidades nobiliárquicas), e o mesmo está traduzido
para somente “Os nobres”. No entanto, o subtítulo da tradução mais complicado
foi “A roupa das mulheres na época de
Luís XIV”, que em françês é mais belo: “L’ esprit des formes feminines ou temps
de Louis XIV”. A tradução, apesar de no geral estar bem feita, contém estes
detalhes que escondem um pouco o elegante estilo do autor. Outro subtítulo que
poderia ser melhor traduzido é o “Paris aprende a assoar o nariz”, sendo, neste
caso, indispensável “o nariz”.
Esta
obra retrata as transformações dos modos de vestir da sociedade parisiense. A
idéia central é de que houve uma indumentária específica do Ancien Regime. Ou
seja, constituiu-se, na formação do Estado françês, uma indumentária do Antigo
Regime. O tema do consumo das roupas é centrado na sua influência de Fernand
Braudel e na crítica à Quicherat, o qual não se preocupa com a “função da
roupa” e das “mudanças de sensibilidades”. Preocupações centrais para um
historiador da cultura material como Roche.
Em
sua perspectiva, estabelece conexões entre a situação das roupas na economia,
cultura e na política. Além disso, insere as transformações nas vestimentas
como “uma escolha em matéria de aparência”. (p.180) Desse modo, a História da Vestimenta
passa a ter uma relação entre as estruturas e os desejos e a ação dos
indivíduos, sendo destacado a população que antes estava excluída da
historiografia, como as mulheres revendedoras de roupas.
Na
segunda parte, o autor analisa a economia dos guardas-roupas, sendo destacado o
processo de consumo das vestimentas entre toda a sociedade parisiense, tendo o
povo miudo a possibilidade de adquirir novos bens vestimentários. O consumo, no
entanto, ainda não era de massas, havendo, portanto, uma escassez de artefatos
de vestir luxuosos. Essa economia de consumo era policiada pelo Estado em
formação e pela nobreza. Nessa economia das vestimentas, a invenção da roupa
branca, o linge françês, e a
circulação de roupas usadas foi fundamental para o desenvolvimento econômico do
“setor têxtil” e para a sociedade pré-industrial:
“(...) Expressão de uma higiene diferente da nossa, em
conformidade com o estilo moral das civilidades, adaptadas aos dados
tecnológicos do tempo da água escassa, a invenção da roupa-branca marca o
apogeu de uma civilização aristocrática em que o parecer triunfou”. (p.185)
Nessa
civilização aristocrática, as leis suntuárias tinham um significado fundamental
de protecionismo à manufaturas locais por parte da política econômica da Coroa.
Apesar da constante preocupação da Monarquia em normatizar as regras de vestir
entre os Estados, as roupas, principalmente as roupas brancas, passam a ser
consumidas por cada vez mais durante o século XVIII.
“(...) O sonho e a realidade, por vezes confundidos,
subverteram o teatro das aparências aristocráticas mediante custosas
libertações. O desejo do natural e da simplicidade conduz mais do que nunca aos
gastos. O conjunto dos significados da roupa feminina se hipertrofia ao
infinito entre a economia dos usos indispensáveis e a dos imperativos de seguir
o gosto. É preciso, para aí se encontrar, ler as gazetas e os Monuments du costume...” (p.152)
O
uniforme, constituído a partir da formação dos Estados Modernos e Monárquicos,
também é tratado com as relações e distinções entre os aspectos militares e
civis, bem como entre o masculino e o feminino. Segundo o autor,
“A disciplina do
século XVIII, o recrutamento, as casernas e serviços, tudo contribui para a
separação rotineira entre o civil e o militar, entre o masculino e o feminino.
As guerras da Revolução e o Império ajudaram incontestávelmente a acelerar as
profundas transformações por meio do serviço militar obrigatório e da duração e
da distância das operações bélicas” (p.238)
Na
terceira parte da obra, o autor demonstra que toda uma série de ofícios passam
a trabalhar com o mercado de vestes. Por toda Paris, e em todas as camadas
sociais, esses circuitos passam a assumir um papel cada vez mais relevante, se
expalhando pelas províncias francesas.
Havia
em Paris, toda uma teatralização das aparências e dos gestos, originários de um
ideal aristocrático. A aristocracia tentava se distinguir pela forma de vestir,
mas não conseguia impedir que a burguesia mantivesse um consumo constante das roupas
e dos indumentos. Para a sociedade de corte, a burguesia consumia roupas
mediocres, não conseguindo adquirir a perfeição do gosto aristocrático. Por um
lado, essa mediocridade ocorria por meio do uso de trajes ostentatórios de
idivíduos que desejavam ascender socialmente, o que significava adquirir
títulos de nobreza e vestir melhor. Por outro, a ostentação vestimentária
atingiu não somente as camadas dominantes, mas acabou se extendendo a uma maior
parte da população. Nesta revolução no consumo das vestes, as mulheres
adquiriam um papel fundamental. Eram elas, fundamentalmente, no terceiro Estado
que adquiriam a maior variedade de aventais, saiotes, camisas, sapatos e outros
artefatos, que aparecem constantemente nas fontes notariais francesas. No que
se refere ao gênero oposto, o consumo ostentatório era mais importante entre os
homens aristocratas, sendo o consumo masculino burguês baseado em tons escuros
e no conforto. Nesse contexto, a calça passa a ser consumida por setores da
camada trabalhadora e mercantil. E o seu consumo macisso só ocorre depois da consolidação da burguesia no século XIX.
Em
suma, a ascenção da indumentária burguesa era impedida pela sociedade
aristocrática do Antigo Regime, que considerava os valores, os gestos e os
comportamentos dos burgueses medíocres.
No
âmbito da produção de tecidos e roupas, destacavam-se as atuações das
costureiras e modistas de Paris no tempo das Luzes, surgindo na segunda metade
do século, as modistas, que se tornavam autônomas em relação às coorporações de
ofícios. Nessa perspectiva, as modistas revolucionavam a moda parisiense e
deram o estopim ao processo de produção de consumo de luxo françês que
cresceria em grande escala no século seguinte.
Daniel
Roche tem uma forma fascinante de escrever. Seu estilo próprio faz o debate
sobre as transformações da História da “vestimenta” e da moda avançar na historiografia
francesa e mundial. No entanto, existem algumas questões que se constituem
ausêntes na obra. A primeira, é o significado da História da “Vestimenta”,
preocupação teórica central no seu trabalho. Como pode existir uma história do
vestígio ou objeto em si, se história presupõe o humano e o social? Ou seja,
será que tecidos, roupas e indumentárias possuem história? Ou, a história da
vestimenta, ou da moda, nada mais é do que a história das relações entre os
indivíduos e os texteis, tecidos, roupas, ornamentos? Dessa forma, o tema e a
abordagem do autor necessitava de uma explicação metodológica e teórica ainda
maior sobre disciplina História e as maneiras de vestir.
O
segundo ponto, se refere à historiografia. Há falta de um debate mais aprofundado
com o seu contemporâneo Gilles Lipovetsky. Daniel Roche faz uma breve
referência negativa a este autor. No entanto, não aproveita alguns dados deste
autor, bem como ignora o importante debate teórico europeu, como os alemães,
inglêses e italianos. A sua discussão se fixa na historiografia francesa e com
isto fornece a impressão de que a França descobriu a moda, não tendo influência
importante de mais nenhuma outra região. Esquece de que apesar do fim da
unidade européia cristã, a França mantinha contatos culturais, econômicos e
mesmo políticos importante com a Espanha, as cidades italianas, a Inglaterra e
mesmo a região dos Países Baixos e da Flandres. Sem contar a presença religiosa
protestante alemã que interpretará as formas de vestir de maneiras diferenciadas.
Enfim, ao ler o fantástico trabalho de Daniel Roche há uma ausencia dos
intercâmbios do universo das aparências. Ou seja, a França não foi palco de
todas as invenções da moda, embora seja por um grande período o seu centro.
No
que se refere ao contexto, Roche pouco se refere às transformações econômicas,
não desenvolvendo a temática da transição do feudalismo para o capitalismo,
sendo este apenas mercantil, mas não fica claro o processo de transição de
capital. Ou seja, fica-se a questão: como ocorreu a formação do capital
industrial na França?
Na
esfera da política econômica mercantilista, o autor desenvolve alguns assuntos.
No entanto, não fica claro as transações econômicas e culturais referentes à
indumentária, entre a França do Antigo Regime, com o resto da Europa e do
mundo. Parece, portanto, que era privilégio da corte e do mundo françês a
cultura das aparências, não havendo nenhuma espécie de circulação entre a moda
francesa e as cidades-italianas, o
huniverso ibérico e anglo-saxão, bem como os Países Baixos. A corte dos
Habsburgos, por exemplo, é excluída da interpretação de Roche, que também
esquece da política de casamentos entre as realezas européias. Além do mais, a
formação do uniforme militar parece ser constituído em outras regiões.
Apesar
de todas estas questões, o trabalho de Daniel Roche é de suma importância para
a História da Moda e da Indumentária, pois avança em questões e temas, fazendo
com que as roupas sejam apenas um belo pretexto para tratar das relações entre
o vestuário e os indivíduos. Em outras palavras, o que importa são as
transformações das relações humanas com os artefatos.
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