sexta-feira, 13 de abril de 2012

UMA RESENHA DE: ROCHE, Daniel. A cultura das aparências. Uma história da indumentária (Séculos XVII-XVIII). São Paulo: Senac, 2007. [La culture des apparences: une histoire du vêtement (XVIIe. – XVIIIe., 1989]. (trad. Assef Kfori). Igor de Lima




Daniel Roche publicou várias obras no decênio de 1980. Le pouple de Paris. Essai sur la culture populaire du XVIIIe. Siècle, em 1981, traduzido para o português e publicado pela EDUSP, Les Français et L’Ancien Regime, em 1984, Le Republicains des letres. Gens de culture et Lumières au XVIII siècle, em 1988, e, por fim, La cultura des apparences. Une histoire du vêtement, XVII-XVIII siècle, em 1989. Essa última foi traduzida pela editora Senac, em 2007.
A tradução desta última obra contém alguns problemas, a palavra “vestimentaires” foi traduzida por roupas, indumentárias e vestimentárias; “vêtements”, por indumentárias, vestimentas e roupas; “costume”, por vestuário e costume. Essas traduções não contém propriamente erro, mas demonstram uma falta de coerência nas palavras e nos conceitos, sendo que os termos possuem significados diferentes para os especialistas. O trecho intitulado “Perruques et Eglise, costume e coutume”, ficou em português, “A peruca e a Igreja, costume e costume” seria melhor, “A peruca e a Igreja, costumes e hábitos”. Outro problema de tradução foi o termo em françês é “Le besoin nobiliaires” (Necessidades nobiliárquicas), e o mesmo está traduzido para somente “Os nobres”. No entanto, o subtítulo da tradução mais complicado foi  “A roupa das mulheres na época de Luís XIV”, que em françês é mais belo: “L’ esprit des formes feminines ou temps de Louis XIV”. A tradução, apesar de no geral estar bem feita, contém estes detalhes que escondem um pouco o elegante estilo do autor. Outro subtítulo que poderia ser melhor traduzido é o “Paris aprende a assoar o nariz”, sendo, neste caso, indispensável “o nariz”.
Esta obra retrata as transformações dos modos de vestir da sociedade parisiense. A idéia central é de que houve uma indumentária específica do Ancien Regime. Ou seja, constituiu-se, na formação do Estado françês, uma indumentária do Antigo Regime. O tema do consumo das roupas é centrado na sua influência de Fernand Braudel e na crítica à Quicherat, o qual não se preocupa com a “função da roupa” e das “mudanças de sensibilidades”. Preocupações centrais para um historiador da cultura material como Roche.
Em sua perspectiva, estabelece conexões entre a situação das roupas na economia, cultura e na política. Além disso, insere as transformações nas vestimentas como “uma escolha em matéria de aparência”. (p.180) Desse modo, a História da Vestimenta passa a ter uma relação entre as estruturas e os desejos e a ação dos indivíduos, sendo destacado a população que antes estava excluída da historiografia, como as mulheres revendedoras de roupas.
Na segunda parte, o autor analisa a economia dos guardas-roupas, sendo destacado o processo de consumo das vestimentas entre toda a sociedade parisiense, tendo o povo miudo a possibilidade de adquirir novos bens vestimentários. O consumo, no entanto, ainda não era de massas, havendo, portanto, uma escassez de artefatos de vestir luxuosos. Essa economia de consumo era policiada pelo Estado em formação e pela nobreza. Nessa economia das vestimentas, a invenção da roupa branca, o linge françês, e a circulação de roupas usadas foi fundamental para o desenvolvimento econômico do “setor têxtil” e para a sociedade pré-industrial:
“(...) Expressão de uma higiene diferente da nossa, em conformidade com o estilo moral das civilidades, adaptadas aos dados tecnológicos do tempo da água escassa, a invenção da roupa-branca marca o apogeu de uma civilização aristocrática em que o parecer triunfou”. (p.185)

Nessa civilização aristocrática, as leis suntuárias tinham um significado fundamental de protecionismo à manufaturas locais por parte da política econômica da Coroa. Apesar da constante preocupação da Monarquia em normatizar as regras de vestir entre os Estados, as roupas, principalmente as roupas brancas, passam a ser consumidas por cada vez mais durante o século XVIII.
“(...) O sonho e a realidade, por vezes confundidos, subverteram o teatro das aparências aristocráticas mediante custosas libertações. O desejo do natural e da simplicidade conduz mais do que nunca aos gastos. O conjunto dos significados da roupa feminina se hipertrofia ao infinito entre a economia dos usos indispensáveis e a dos imperativos de seguir o gosto. É preciso, para aí se encontrar, ler as gazetas e os Monuments du costume...” (p.152)

O uniforme, constituído a partir da formação dos Estados Modernos e Monárquicos, também é tratado com as relações e distinções entre os aspectos militares e civis, bem como entre o masculino e o feminino. Segundo o autor,
“A disciplina do século XVIII, o recrutamento, as casernas e serviços, tudo contribui para a separação rotineira entre o civil e o militar, entre o masculino e o feminino. As guerras da Revolução e o Império ajudaram incontestávelmente a acelerar as profundas transformações por meio do serviço militar obrigatório e da duração e da distância das operações bélicas” (p.238)

Na terceira parte da obra, o autor demonstra que toda uma série de ofícios passam a trabalhar com o mercado de vestes. Por toda Paris, e em todas as camadas sociais, esses circuitos passam a assumir um papel cada vez mais relevante, se expalhando pelas províncias francesas.
Havia em Paris, toda uma teatralização das aparências e dos gestos, originários de um ideal aristocrático. A aristocracia tentava se distinguir pela forma de vestir, mas não conseguia impedir que a burguesia mantivesse um consumo constante das roupas e dos indumentos. Para a sociedade de corte, a burguesia consumia roupas mediocres, não conseguindo adquirir a perfeição do gosto aristocrático. Por um lado, essa mediocridade ocorria por meio do uso de trajes ostentatórios de idivíduos que desejavam ascender socialmente, o que significava adquirir títulos de nobreza e vestir melhor. Por outro, a ostentação vestimentária atingiu não somente as camadas dominantes, mas acabou se extendendo a uma maior parte da população. Nesta revolução no consumo das vestes, as mulheres adquiriam um papel fundamental. Eram elas, fundamentalmente, no terceiro Estado que adquiriam a maior variedade de aventais, saiotes, camisas, sapatos e outros artefatos, que aparecem constantemente nas fontes notariais francesas. No que se refere ao gênero oposto, o consumo ostentatório era mais importante entre os homens aristocratas, sendo o consumo masculino burguês baseado em tons escuros e no conforto. Nesse contexto, a calça passa a ser consumida por setores da camada trabalhadora e mercantil. E o seu consumo macisso só ocorre depois da  consolidação da burguesia no século XIX.
Em suma, a ascenção da indumentária burguesa era impedida pela sociedade aristocrática do Antigo Regime, que considerava os valores, os gestos e os comportamentos dos burgueses medíocres.
No âmbito da produção de tecidos e roupas, destacavam-se as atuações das costureiras e modistas de Paris no tempo das Luzes, surgindo na segunda metade do século, as modistas, que se tornavam autônomas em relação às coorporações de ofícios. Nessa perspectiva, as modistas revolucionavam a moda parisiense e deram o estopim ao processo de produção de consumo de luxo françês que cresceria em grande escala no século seguinte.
Daniel Roche tem uma forma fascinante de escrever. Seu estilo próprio faz o debate sobre as transformações da História da “vestimenta” e da moda avançar na historiografia francesa e mundial. No entanto, existem algumas questões que se constituem ausêntes na obra. A primeira, é o significado da História da “Vestimenta”, preocupação teórica central no seu trabalho. Como pode existir uma história do vestígio ou objeto em si, se história presupõe o humano e o social? Ou seja, será que tecidos, roupas e indumentárias possuem história? Ou, a história da vestimenta, ou da moda, nada mais é do que a história das relações entre os indivíduos e os texteis, tecidos, roupas, ornamentos? Dessa forma, o tema e a abordagem do autor necessitava de uma explicação metodológica e teórica ainda maior sobre disciplina História e as maneiras de vestir.
O segundo ponto, se refere à historiografia. Há falta de um debate mais aprofundado com o seu contemporâneo Gilles Lipovetsky. Daniel Roche faz uma breve referência negativa a este autor. No entanto, não aproveita alguns dados deste autor, bem como ignora o importante debate teórico europeu, como os alemães, inglêses e italianos. A sua discussão se fixa na historiografia francesa e com isto fornece a impressão de que a França descobriu a moda, não tendo influência importante de mais nenhuma outra região. Esquece de que apesar do fim da unidade européia cristã, a França mantinha contatos culturais, econômicos e mesmo políticos importante com a Espanha, as cidades italianas, a Inglaterra e mesmo a região dos Países Baixos e da Flandres. Sem contar a presença religiosa protestante alemã que interpretará as formas de vestir de maneiras diferenciadas. Enfim, ao ler o fantástico trabalho de Daniel Roche há uma ausencia dos intercâmbios do universo das aparências. Ou seja, a França não foi palco de todas as invenções da moda, embora seja por um grande período o seu centro.
No que se refere ao contexto, Roche pouco se refere às transformações econômicas, não desenvolvendo a temática da transição do feudalismo para o capitalismo, sendo este apenas mercantil, mas não fica claro o processo de transição de capital. Ou seja, fica-se a questão: como ocorreu a formação do capital industrial na França?
Na esfera da política econômica mercantilista, o autor desenvolve alguns assuntos. No entanto, não fica claro as transações econômicas e culturais referentes à indumentária, entre a França do Antigo Regime, com o resto da Europa e do mundo. Parece, portanto, que era privilégio da corte e do mundo françês a cultura das aparências, não havendo nenhuma espécie de circulação entre a moda francesa e  as cidades-italianas, o huniverso ibérico e anglo-saxão, bem como os Países Baixos. A corte dos Habsburgos, por exemplo, é excluída da interpretação de Roche, que também esquece da política de casamentos entre as realezas européias. Além do mais, a formação do uniforme militar parece ser constituído em outras regiões.
Apesar de todas estas questões, o trabalho de Daniel Roche é de suma importância para a História da Moda e da Indumentária, pois avança em questões e temas, fazendo com que as roupas sejam apenas um belo pretexto para tratar das relações entre o vestuário e os indivíduos. Em outras palavras, o que importa são as transformações das relações humanas com os artefatos.

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