terça-feira, 27 de outubro de 2015

A construção dos gêneros nas modas renascentistas. Igor Renato Machado de Lima

No florescer da Renascença, a linguagem das roupas modificava-se em relação aos gêneros, ao estilo, às cores e às texturas. Na literatura cavalheiresca, o universo da arte do vestir era evidenciado no discurso moral de poetas, menestréis e escritores que sobreviviam em torno da realeza.
Nesse sentido, é preciso destacar o trabalho de Johan Huizinga, O outono da Idade Média, no que se refere à ideia de moda na Renascença. Para o autor, na França e em Flandres, as camadas dominantes deslocavam-se com ornamentos e teram acompanhados por vassalos, aparatos e armas. Cada camada social possuía seus trajes, que tinham diferenças com relação ao gênero.[1] Observando o luto dos reis, o autor afirma que “Em uma esplêndida reunião em Troyes, Felipe acompanha as rainhas da França e da Inglaterra em uma roupagem de veludo de luto, que pende até o chão ao lombo de seu cavalo. Ele e seu séqüito continuam a se vestir de luto ainda um bom tempo.”[2]
Ainda de acordo com o mesmo, “O meio de expressão que os une não é a arte, mas a moda. Neste momento, a moda, de um modo geral, está muito mais próxima da arte do que a estética acadêmica gostaria de admitir. Como uma acentuação artificial da beleza e da movimentação do corpo, ela apresenta uma ligação estreita com uma das artes: a dança. Mas, além disso, no século XV o domínio da moda, ou melhor dizendo, o código dos trajes, está muito mais perto da arte do que tendemos a imaginar. Não somente pelo fato do uso freqüente de jóias e metais trabalhados nos trajes de guerra, que lhes conferem um elemento artesanal imediato. A moda partilha as mesmas características essenciais da arte: estilo e ritmo também são indispensáveis para ela. O período da Idade Média tardia sempre expressou no código dos trajes uma medida do estilo de vida...Na vida cotidiana as diferenças de peles e cores, capas e toucas indicavam a rígida ordem das classes, as dignidades esplendorosas, o estado de alegria ou sofrimento, a relação terna entre amigos e amantes”.[3]
Continuando a arte na vida durante o Quatrocentos nota que o “vestuário, não se pode negar, também pertencia à arte. Mas é parte da própria finalidade social das roupas que a pompa e o esplendor prevaleçam sobre a própria beleza. Além disso, a vaidade pessoal puxa a arte da moda para a esfera da paixão e da sensualidade, em que as características que constituem a essência da arte revelada – equilíbrio e harmonia – são secundárias”.[4]
As modificações da moda franco-borguinhã mantinham-se inigualáveis, segundo Huizinga, durante os anos de 1350 até 1480, sendo que o “traje de corte” era “sobrecarregado com centenas de pedras preciosas. Todas as medidas são exageradas, chegando ao grau do ridículo.” Os modos de vestir variavam conforme os gêneros, sendo o penteado das mulheres com “o formato de pão de açúcar do hemmin, ou seja, o cabelo natural é escondido ou removido das têmporas e da área da testa, para exibir as frontes excepcionalmente arqueadas, consideradas bonitas; subitamente começou o uso dos decotes”.[5]
Adicionado a isso, as vestes masculinas transformavam-se com maior intensidade, como: os sapatos de bico fino, os poulaines; as mangas bufantes, chamadas de houppelandes; as jaquetas curtas; os chapéus pontiagudos, drapeados ao redor da cabeça. Desse modo, “quanto mais solene, mais extravagante; pois todo o belo significava poma de estat”. O traje de luto que Filipe, o Bom, usa depois do assassinato de seu pai, para receber o rei da Inglaterra, é tão longo que pende grande corcel que cavalgava até o chão.[6]
A produção têxtil predominante era originária da economia doméstica, de modo que servos, plebeus e mesmo as damas medievais eram obrigadas ao árduo trabalho cotidiano para fabricar tecidos e túnicas. Na Inglaterra do Trezentos, as donas de casa, chamadas de mesuer em francês antigo, ou mesmo housewif , em inglês medieval, possuíam rocas, fusos e teares e dominavam a produção lanífera caseira. A expressão latina textrix significava tecedeira. A palavra latina trama permaneceu a mesma em português, mas em inglês, o termo spoole era originário do francês espole e de spola da língua germânica. As linguagens dos têxteis caseiros parecem ter circulado no norte da Europa, entre a Ilha Britânica, Flandres e o Norte da França.[7]
Nas cidades italianas, moças e mulheres adultas trabalhavam na seda – criação do bicho da seda, preparação dos casulos, dobagem e fiação – nas oficinas de empresários a partir do século XII e sobretudo no seguinte.[8]
A produtividade lanífera tornava-se significativa nos países do Norte, especialmente na Inglaterra, onde as criações de ovelhas foram muito valorizadas, assim como em Castela. Com relação ao papel feminino na produção dos têxteis e na economia doméstica, Piponnier observou que os ofícios de alfaiate ou costureiro substituíam nas cidades o trabalho das mulheres.[9] A autora parece ainda exagerar quando afirmou que, “No final da Idade Média, a tecelagem doméstica praticamente desapareceu. A gama dos tecidos de lã ou de misturas oferecidas pelos mercadores é suficientemente diversa para responder a todas as clientelas. Mas na cidade como no campo a tecelagem por encomenda das fibras vegetais trazidas pela cliente está bem desgastada, e alguns inventários mobiliários permitem verificar que na Borgonha este trabalho é realizado tão frequentemente por tecedeiras como por tecelãos”.[10]
Contudo, é provável que até o século XII, predominassem as atividades têxteis femininas na economia medieval européia. Avós, mães e filhas das mais variadas camadas sociais participavam das atividades de fiação, tecelagem e costura para o dia-a-dia, bem como os ricos bordados para os dias de festas e casamentos, principalmente para as mulheres da nobreza. Carlos Magno afirmava que a educação feminina, no caso das suas filhas, não deveria ser somente fiar, tecer e coser, mas também bordar, ler e escrever. Um exemplo da atividade intelectual das mulheres reais era a rainha Matilde, que depois da morte do esposo Henrique I, aprendia a ler e escrever, além de incentivar as duas damas a fazer o mesmo.[11]
Originava-se, dessa forma, uma distinção social relacionada ao consumo indumentário, que será cada vez mais destacado. A capacidade criativa das mulheres, em suas casas, era paulatinamente substituída pelos trabalhos mais especializados dos alfaiates, tecelões, tecelãs e costureiras. Yvain, em uma obra do século XII, lamentava a falta de fortuna, ou seja, da sorte das mulheres tecelãs, “Havemos sempre de tecer panos de seda e jamais estaremos mais bem vestidas. Seremos sempre pobres e nuas; teremos sempre fome e sede. Jamais ganharemos o suficiente para melhorar nossa alimentação (....) Pois quem ganha vinte soldos por semana não consegue sair da miséria (....) e, enquanto vivemos na penúria, aquele para quem trabalhamos enriquesse às nossas custas”.[12]
Contudo, é necessário retomar o debate sobre as ideias a respeito dos modos de vestir a partir das análises da literatura medieval do século XII. Conhecedora do latim, do francês (lingua natal) e do inglês (local onde foi criada), Marie de France escreveu suas Leis em francês a partir do precioso repertório dos poetas meridionais do amor cortês, mas iniciou, segundo Jean Larnac, um tipo de poesia da perspectiva feminina.[13]
Vivenciando o reinado de Henrique II Plantagenet (1154-1189), segundo esposo de Leonor de Aquitania, o universo da corte de Londres, bem como a produção literária de Chrétien de Troyes, Marie de France escrevia em versos “uma maravilhosa aventura” do mundo cavalheiresco.[14]
No ideal de cavalaria, damas e cavalheiros conviviam nos castelos e nas florestas repletas de perigos e magia. Gloria Tomas Gilmore, no artigo, “Marie de France’s Bisclavret: what the werewolf will and will not wear”, estuda os significados das roupas em Bisclavret, uma parte da obra de Marie de France, na qual trata de um lobisomem e a relação deste com as vestimentas e a nudez, correspondendo a primeira à civilidade e a segunda ao selvagem e ao bárbaro.
No contexto de escassez material e consumo precário para os padrões contemporâenos, na obra as Leis, o vestir estava relacionado com a linhagem e com o privilégio dos senhores, bem como às suas obrigações com seus vassalos (uma das responsabilidades dos primeiros era armar os segundos).[15] As damas vestiam indumentárias maravilhosas para receberem seus valorosos cavalheiros.[16]
O universo da cavalaria, segundo M. Pastoureau, era constituído por uma ética da courtoisie, na qual eram valorizados os ideais de exaltação do desperdício, “beleza física, elegância e o desejo de agradar; a doçura, o frescor da alma, a delicadeza de coração e de maneiras; o humor, a inteligência, uma polidez requintada e, para dizer claramente, m certo esnobismo. Pressupõe também a juventude, liberdade de todo apego para com a vida, a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade. (...) Para ser cortês, a nobreza de berço não basta; os dons naturais devem ser refinados por uma educação especial e alimentada por práticas cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é a corte de Artur. É lá que encontramos as damas mais belas, os cavalheiros mais valentes, as maneiras mais delicadas”.[17]
Ainda sob a perspectiva de Pastoureau, era a partir da metade do Duzentos que “A difusão do ideal cortês introduz nos meios aristocráticos uma maior preocupação com a aparência. À polidez das maneiras é preciso acrescentar a elegância do vestuário. Este assume uma crescente importância nas relações econômicas e sociais; tal como um produto de luxo, pode ser importado de muito longe, ofertado de presente ou mesmo utilizado como forma de pagamento. (...)”.[18]
De maneira geral, a moda cavalheiresca revelava-se por meio das metamorfoses nas formas de vestir, constituindo em alterações como por exemplo, no aumento do comprimento das túnicas masculinas, no crescimento da barba e do cabelo, nas mangas e mantos arrastados pelo chão, nos sapatos com a ponta crescente que perduram por um longo tempo. Por volta de 1220, a túnica (bliaud) era substituída pelo surcort. O calção comprido não é mais colorido de vermelho, mas predominantemente cru, e era enfiado sobre esses, as chausses, espécie de camisas que iam até o meio da coxa, podendo ser de lã tricotada ou de seda. Essas chausses podiam ser de cor escura como carmesim ou listradas. No século anterior, a camisa de linho passava a predominar e seu consumo, geralmente, variava de acordo com as estações do ano.
No tempo de Felipe Augusto, o gibão substituía a túnica. Os calçados podiam ser sapatilhas ou borzequins. Estes eram de couro, habitualmente produzidos na Espanha, e envolviam os tornozelos. Os cavalheiros utilizavam a heusse, “botas altas impermeáveis, de couro flexível e cor vermelha ou preta”. Mas a novidade reside na profusão de acessórios como chapéus, cale (pequeno gorro de lã ou outro tecido), chapel (grande faixa de tecido enfeitado ricamente com pedras e metais preciosos) e as luvas de tricô, couro ou pele.[19]
A moda cavalheiresca centrava-se na grande variedade de armas e vestimentas, como as cotas de malha que podiam pesar de dez a doze quilos, a haubergenon (jaqueta, ou cota de malha pequena de mangas curtas), o gambinson, espécie de jaqueta de pele ou tecido acolchoado. No final do século XII, a túnica de linho é agregada à indumentária cavalheiresca, em cima da malha, para proteger o usuário do sol e da chuva. Acrescenta-se a isso, os machados dos escudeiros e infantes, a corgiée, chicote sem cabo de couro e a besta, armamento que predominava no Ocidente cristão a partir da segunda metade do século XII. Os cavaleiros passavam a manter uma diversidade de cavalos para cada carga, viagens, e o mais importante, o combate.[20]
O consumo femino era marcado pelo uso de um véu para cobrir os seios, a camisa, e a túnica constituída basicamente por duas formas. A primeira era simples, mas a segunda era composta por duas peças, sendo o corpinho, bastante ajustado ao corpo, uma faixa apertando a cintura e uma longa saia pregueada, destacando a silhueta das mulheres. As metamorfoses também acontecem nos seus trajes com a versatilidade das mangas na moda cavalheiresca, bem como os adornos nos cintos. O botão, difundido a partir da segunda metade do século XII, podia ser de couro, tecido, osso, chifre, marfim ou metal. A partir do período seguinte, as tranças desapareciam dando lugar aos cabelos mais curtos e presos com aros. Para sair à rua, as mulheres cobriam-se com véus, sendo os das viúvas e freiras chamados de guimpe.[21]
A produção de brasões representou um dos aspectos mais significativos da moda cavalheiresca, podendo ser emblemas de famílias ou pessoas. Um dos mais antigos era de Godofredo Plantageneta, um “escudo azul com seis leões de ouro”.[22] Desse modo, segundo Pastoureau, “Na Idade Média o porte de brasões jamais esteve reservado a uma categoria social particular”.[23]
Posteriormente ao século XII, tratado por Pastoureau, o debate sobre a moda e a sua interrelação com gênero tornam-se mais presentes na historiografia. É importante notar a abordagem da História das Mulheres. Diane Owen Hugues, em, “As modas femininas e o seu controle”, observa logo no início do texto, que a moda e o gênero estavam presentes:. “porque se a moda é uma simples paixão dos homens, ela é uma doença das mulheres. Nós apreciamos os estilos que estão em voga, mas elas idolatram-nos”.[24]
Para a autora, a ideia de moda existia no século XII, com o luxo econômico e a crítica e ódio dos cronistas monásticos sobre a “invenção de certas modas” propagadoras da “vaidade masculina”. No século seguinte, o controle real fazia-se presença com a própria rainha Margarida de Provença, “ávida pela moda” e impedida de sua propagação pelo marido rei Luís IX. Segundo Huges, “dado que no passado os homens tinham sido castigados por usarem vestuário masculino: por se pavonearem na rua de Milão, no século XIV, como Amazonas, com cintos dourados e sapatos ponteagudos, símbolos de seus corações marciais e masculinos; ou na Inglaterra, por adentrarem a cavalo em torneios, vestidas com túnicas bicolores com adagas no cinto, parecendo mais participantes que espectadoras. Gradualmente, a responsabilidade pela interpretação e transmissão da moda deslocou-se para as mulheres”.[25]
Assim, conforme a perspetiva de Huges, as metamorfoses das modas renascentistas evocavam um jogo de poder, sedução e de transgressão feminina a partir do consumo dos chapins, das anquinhas e dos corpetes. Os primeiros eram sapatos de solas altas de couro que atrapalhavam o andar. No século XV, as autoridades venezianas atacavam seu uso em mulheres grávidas pelo perigo físico de caírem e espiritual por poderem perder seus filhos. No caso das anquinhas, tratavam-se de arcos que levantavam a saia e definiam os movimentos das ancas, eram criticados até mesmo pelas cortes das rainhas Catarina de Aragão, na Inglaterra, e a sua mãe, Isabel de Castela: “os arcos tornaram-se uma marca distintiva e um suporte da moda renascentista tardia, mantendo os vestidos afastados do corpo e exigindo, como chapins, jardas adicionais de tecido para o cobrir. No entanto, os críticos da moda preferiam os argumentos morais aos argumentos enconômicos, referindo os segredos que as anquinhas encobriam mais do que os tecidos que exibiam”, afirma a autora.
As modas renascentistas, para a autora, adquiriam status de “jogo interminável de negociação social”, havendo “mudança no vestuário de acordo com a estação”. Nesse significado moderno, ela tornava-se “não só conhecimento, mas também interpretação”, a partir da astúcia feminina para transgredir a legislação suntuária recorrente nas cidades italianas de Veneza e Florença. [26] Por exemplo, as proibições de certos brincos em orelhas judias no século XV, no seguinte foram consumidas pelas cristãs. Também, as mulheres procuravam tecidos e formas diferenciadas, como Isabel de Este, que mandava emissários para Mântua à procura de têxteis e enviava para Francisco I, na sua corte em Paris, a pedido deste, uma boneca vestida com a sua última moda.[27]
Relacionando a moda com o sentimento de pudor e os jogos de sedução, Bologne retrata a presença do decote e aparecimento do colo nas vestes das rainhas francesas no século XIII. Essa moda do vestido decotado, e dos seios nus, era para ser vista, desejada e sonhada pelos cavaleiros. Os discursos morais, no século seguinte, criticavam as aberturas lateriais (a cava) dos surcots (túnicas de colocar por cima), chamando-as de “janelas do inferno”. Esses decotes das grandes damas eram velados pelo tassel, um pedaço de tecido fino que cobria o colo. E a silhueta feminina era moldada pelos coletes justos ao corpo.[28]
Nos trajes masculinos, os vestidos compridos fizeram escândalo na corte francesa. Mas no século seguinte, o vestuário feminino aumenta e o dos homens diminui, aparecendo as pernas. Para Bologne, “De uma assentada, o camisão [masculino] fica pelo alto das coxas e pouco a pouco transforma-se em gibão. Moda tanto mais chocante quanto as roupas se tornam mais moldadas. Voga dos vestidos amplos de pregas diretas: o gibão, o peito, e o calção, nas pernas, colam o corpo como a couraça que parecem traduzir em tecido. Tanto pior para as formas que revelam...”[29]
Diferentemente, Odile Blanc, em “From Battlefield to court: the invention of fashion in fourteenth century, postula a ideia corrente de que a origem da moda encontrava-se no século XIV, com a idade do gibão, vestimenta descrita nas crônicas cavalheirescas. As mudanças na vestimenta, isto é, enormis novitas, aconteciam no contexto dos constantes conflitos entre a realeza da França e da Inglaterra, em meio à Peste Negra, à fome e às dificuldades de sobrevivência da maior parte da população européia. Os cronistas destacavam as distinções dos modos de vestir dos aristocratas e dos servos, dos homens com armas e dos civis e entre os clérigos e os comuns, sendo os primeiros, predominantemente, críticos aos modos de vestir.[30]
Analisando as representações iconográficas das iluminuras medievais, Blanc destacou a temática da vida cortesã e do cotidiano. Com base nelas, observa as novas modas masculinas das indumentárias militares, considerando isto frutos das “fantasias aristocráticas”. Nesse sentido, as modas cavalheirescas tornavam-se “marcas de poder e esplendor”. Em diálogo com Joham Huizinga, a autora compreendeu os “corpos guerreiros” como modelos de vestimentas dos homens jovens. Dentre os trajes dessa moda, estavam os cottes ou gonelles, típicas túnicas francesas ou inglesas que transformavam-se, ao longo do tempo, em peças mais elaboradas a partir do século XIV, aparecendo novas indumentárias como o surco” e o coudières, que metamorfoseavam as silhuetas masculinas. Surgia o gibão e, consequentemente, os alfaiates especializados na sua produção, os quais se organizaram uma guilda parisiense, em 1358.[31]
Na perspectiva de Blanc, as distinções vestimentárias masculinas e cavalheirescas modificavam as relações corporais. Essa dinâmica corporal masculina, por intermédio da indumentária, era uma parte da estratégia de manutenção do domínio e do poder dos homens. Isto é, O valor de masculinidade dos cavalheiros era também caracterizado pelo modo de vestir.[32]
O autor questionava-se como as relações de gênero estavam sendo constituídas na sociedade cortesã e como haviam mudado na passagem da constituição Feudal para a Moderna.  Nesse sentido, destaca-se a Querelle des femmes, uma disputa entre os gêneros na Europa, arrastando-se pelos séculos XIV ao XVIIII. Dentre as questões levantadas na passagem do Trezentos para o Quatrocentos, estavam: as mulheres realmente tinham alma, eram elas humanas?[33]
Nessa querela, é preciso destacar a preciosa relevância de Christine de Pisan, ou Pizan (1365-1430). Mascida em Veneza, trazida para a corte francesa pelo pai médico e astrólogo. Ficara logo viúva, com dois filhos, e seu pai morria em seguida do esposo. Escrevia e sobrevivia devido ao mecenato real de Carlos VI e de seu descendente Carlos VII. Estabeleceu um debate sobre a existência da alma das mulheres. Para Huizinga, essa dama “corajosa defensora da honra feminina e dos direitos da mulher dirigiu-se ao deus do amor na carta poética que continha a reclamação das mulheres contra toda desonra dos homens”. A autora também combatia as reflexões do autor de Romam de la Rose, Jeam de Meun. Dessa forma, “seguiu-se uma guerra literária em que vários defensores e oponentes tomaram a palavra”.[34]
Como escritora profissional avant la lettre, Pisan descrevia com arte a vida cortesã e defendia a ideia de que as mulheres eram seres humanos. Segundo Gisela Bock, a humanista combatia o pensamento misógino, recriando um novo mundo, em Cité de las dames. O pensamento da escritora era de que as mulheres tinham alma, bem como os homens. As mulheres também possuíam a capacidade de governar e de serem intelectuais.[35] Em vários momentos, Pisan descrevia os modos de vestir, em Le Chemian de longue étude.[36] Nota-se como referência ao modo antigo de vestir uma túnica e os novos adornos e silhuetas. A metamorfose da moda estava clara para a escritora cortesã. A moda cortesã descortinava-se nas percepções culturais do feminino, e era descrita na literatura cortesã feminina de Pisan.[37]
 Observa-se, portanto, a preocupação com a riqueza e o luxo indumentário das damas da corte e a necessidade que tinham de se destacar e ostentar suas posses. A moda passava por uma transformação lenta, evoluindo da cavalheiresca, – centrada no amor cortês e nas novelas de cavalaria, para aquela cortesã e aristocrática, havendo assim procuras de novas maneiras de vestir, aproximando-se da capacidade criativa dessa arte.[38] As obras de Christine de Pizan adquiriam uma elevada importância para a constituição dessas aproximações possíveis, principalmente, quando se analisa o contexto histórico das obras pisonianas e da Querelle des femmes.
Na mesma corte de Carlos VII, a sua amante favorita Agnés de Sorel (1422-1450) descobria os ombros e os seios, empalidecendo de ciúmes as grandes damas. Na sua criação erótica de movimento e do seio revelado, parece ter lançado a moda cortesã de um tapado e outro a mostra. Na Guerra dos Cem Anos, os ingleses imbarcavam na França em busca dos seios nus e mantinham-se em território franco, “graças ás coxas dos homens”.[39]
 No entanto, segundo Bologne, era a partir do Quatrocentos, que “a indignação surge realmente em nome do pudor”.[40] Ainda nesse momento que os reis adotavam a moda curta, os clérigos, no concílio de sens, em 1460, eram proibidos de vestirem roupas curtas. E a nudez masculina era controlada por meio das túnicas a três quartos, capas e mantéus. [41]
No século XVI, esse debate prolongou-se e as experiências místicas femininas eram ralatadas por mulheres como a rainha escocesa Mary Stuart. Defensora da Santa Madre Igreja e do Papa, a governante alinhava-se com as perspectiva religiosa dos Católicos espanhóis e franceses em um mundo marcado pela polaridade religiosa e dificuldade de pacificação. Em sua literatura, a rainha estava sempre entre a esfera do amor profano e religioso, retratando uma experiência mística. Nessas manifestações e relatos de êxtases místicos, a mente, o corpo e as vestes faziam parte de uma identidade e da cultura da diferença. As indumentárias católica com seus ornamentos, como rosários, diferiam das vestes protestantes, que não possuíam tais artefatos ornamentados.  A rainha, escritora de poesia em francês, declarava “Que suis ie de quoy sert ma vie”.[42]
Na Inglaterra do século seguinte, a aparência das mulheres devotas evocava interpretações ambíguas. Segundo Laurance, “Por um lado, fugiam da extravagância, das manifestações de vaidade e da mutabilidade da moda. Por outro, preocupavam-se profundamente com o status e a aparência apropriada à posição tanto moral quanto social. Era necessário que a esposa de um homem devoto tivesse uma aparência agradável: que parecesse limpa e saudável; que se vestisse de acordo com sua posição social, o que poderia significar com algum luxo, que seu marido fosse um homem de posses”.[43]
Na perspectiva das transformações da arte de vestir relacionadas aos gêneros, a historiografia demonstrou que a construção do discurso sobre o corpo durante a Época Moderna era importante. Helen Smith explorou as descrições textuais dos livros sobre os modos de vestir, havendo uma linguagem das roupas. Dentre os discursos analisados, destacam-se as peças teatrais e suas performances.[44]
Na mesma linha de análise, Andréa Demy-Brow defendeu a ideia de que o discurso sobre o estilo indumentário intensificava-se a partir da “revolução virtual” do vestir europeu por volta de 1340. Segundo a autora, a distinção de gênero e a metamorfose das silhuetas seriam principalmente masculinas, com o “dramático” encurtamento dos gibões dos cavalheiros.[45] Nesse contexto, as leis suntuárias e os cronistas criticavam também o comprimento das roupas de acordo com o status e gênero. A autora sugeriu que a corporalidade era modificada a partir do consumo de roupas fabricadas pelos alfaiates por meio de cortes distintos nas indumentárias. Era presente nos discursos literários a referência às modas cavalheirescas, com “modos e marcas violentas de criação”. [46]
Na perspectiva literária, destacam-se, como já apontado acima, as vestimentas cavalheirescas, com descrições de batalhas épicas e violentas. Encontravam-se os armamentos rígidos da cavalaria, presentes em personagens como Perzival. As vestimentas cortadas também possuíam significados culturais, simbolizando os conflitos materiais e espirituais da época, como por exemplo, as discussões morais sobre o pecado original, sempre presente, atacando moralmente a condição feminina. A crítica ao modo de vestir geralmente acompanhava comportamentos morais das mulheres, compreendidas como imorais, lascívias e depravadas. [47]
Ainda nessa linha de pesquisa da análise dos discursos, Elizabeth Hallan trata das “dimensões do gênero”, como um complexo processo de percepções corporais femininas e masculinas. Destacavam-se as construções grotescas dos corpos femininos, pois esses tinham “maior visibilidade”. [48] Relacionando fontes textuais e visuais, a autora abordou as articulações de certos modos de corporificação, ou melhor, personificação dos significados de corpos vestidos e não-vestidos. Salientou a relação das imagens corporais – espirituais e sociais – com os gêneros; e sugeriu a ideia de uma adaptação da “aparência corpórea” por parte da linguagem textual e imagética.[49]
Observa-se, portanto, que a função dos artefatos, principalmente dos habitos, transformava-se fundamentalmente de acordo com as mudanças das articulações entre gênero a partir da propagação da vida cortesã, do mercado da economia mundo e da expansão das modas renascentistas.



[1] Agradeço a Iris Kantor a indicação para consultar: Johan Huizinga. O outono da Idade Média. São Paulo: CosaicNaiff, 2010, p. 11. (tradução)
[2] Idem, p. 72.
[3] Idem, p.80.
[4] Idem, p. 425.
[5] Idem, p. 426.
[6] Idem, p. 430.
[7] William Sayers. Flax and linen in Walter of Bibbesworth’s thirteenth-century french treatise for english housewives. In: Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.6, 2010, pp. 111-126.
[8] Françoise Piponnier. O universo feminino: espaços e objetos. In: DUBY, Georg. & PERROT, Michele. História das Mulheres no Ocidente. Porto, Afrontamento, 1990, pp. 445-446.
[9] Idem, p.446.
[10] Idem, p.447.
[11] Max von Bohen. La Moda. Historia do traje em Europa. Desde los orígenes del Cristianismo hasta nuestro días. Barcelona: Salvat Editores, 1928, p. 32.
[12] Apud. Michel Pastoureau. Op. Cit. (1989), p. 40.
[13] Jean Larnac. Histoire de la littérature féminine em France. Paris, 1929, pp. 9-20.
[14] Lais de Marie de France. (Traduits, présentes et annotés par Laurence Harf-Lancner). Paris, 1990, p. 13.
[15] Gloria Tomas Gilmore, no artigo, Marie de France’s Bisclavret: what the werewolf will and will not wear. In: In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Pblischers Limited, 2002, pp. 75-76.
[16] Em uma de suas passagens de relato da sociedade cavalheiresca, Marie de France afirmava que “La jeune fille obéit/ et les deux femmes, magnifiquement vêtues,/enfrent dans la grande salle en se tenant par la main.” Laurence Harf-Lancner. Lais de Marie de France. Paris: Letre Gothiques, 1990, p. 65.
[17] Michel Pastoureau. Op. Cit. (1989), pp. 48-49.
[18] Idem, p. 88.
[19] Idem, pp. 92-94.
[20] Idem, pp. 110-117.
[21] Idem, pp. 94-96.
[22] Idem, p. 97.
[23] Idem, p. 98.
[24]“pour ce que la mode est une maladie des femmes, si c’est une simple passion des hommes. Nous estimons les façons qui ont de la vogue, mais elle em sont idolatres” Apud Diane Owen Hugues. As modas femininas e o seu controle. In: Georges Duby & Michele Perrot. História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1990, p. 185.
[25] Idem, p. 186.
[26] Idem, p. 211-212.
[27] Idem, pp. 206-210.
[28] Jean Claude Bologne. Op. Cit., pp. 59-60.
[29] Idem, p. 65.
[30] Odiele Blanc. From Battlefield to court: the invention of fashion in fourteenth century. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp. 157-159.
[31] Idem, pp. 160-164.
[32] Idem, pp. 165-170.
[33] Esse debate é importante também para a compreensão das questões relacionadas aos povos indígenas no Novo Mundo, mais tarde no século XVI, pois as mulheres índias e os homens gentios guerreiros serão especiais temas das preocupações jesuíticas. A respeito das mudanças da moda com relação ao mundo colonial ver: Mariselle Melléndez. Visualizing difference: the rhetoric of clothing in Colonial Spanish America. In: ROOT, Regina A. The Latin America Fashion Reader. New York, 2005, pp. 17-30.
[34] Idem, p. 189.
[35] Gisela Bock. Women in European History. Oxford: Blackwell, 2002, pp. 9-10.
[36] “Elle n’était ni jeune ni lègère,/Mais âgée et de ande expérience./ Aucune couronne n’ornait sont front,/ car ce n’était pas une reine;/elle était mise avec simplicité,/coiffée d’um voile/ ceint autour de la tête, /et portait une tunique/à l’ancienne mode”. Cristhine de Pizan.   Le Chemian de longue étude. Paris: Librairie Générale Françaose, 2000, p. 115.
[37] “Son vestement de pourpre estoit/ A or ouvré qui moult coustoit/ Et tout environ soy trainoit/ La grant queue que elle menoit/ Celle tint un septre en sa main,/ Et dessoubz ses piez soir et main/ Un hault roy couronné tenoit/ Deux livres: l’um ouvert,/ Et l’autre fermé et revouvert./ Cette dama belle et gracieuse/ Avait à ses pieds um taubouret/ Composé de figures de géometrie;/ Je la vis s’em servir de repose-pieds”. Idem, p. 224.
[38]  “Le vêtement de la dame êtait tout doure,/ luisant et distingue,/ et parsamé d’agrafes/ de grand prix et de grande luxe./ Elle les avair attachées/ pêle-mêle à son vêtement,/ et s’occupait à les fixer et à les enlever de nouveau,/ selon sa fantasie./ La plus petite de ces parures/ Valait bien, rien que pour l’or, um royane./ À son cou elle aborait un bijou/ où était sertie une grosse escarboucle/ qui luisait magnifiquement.” Idem, p. 229.
[39] Jean Claude Bologne. Op. Cit., p. 66.
[40] Idem, p. 64.
[41] Idem, p. 66-67.
[42] Sarah M. Dunnigan. “Sacred afterlife: Mary, Queen of Scots, Elizabeth Melville and politics of santity”. In: Women’s Studies. Vol. 10, n. 3, 2003, pp. 401-424.
[43] Anne Laurance. Uma bela alma exigia um belo corpo? Mulheres, religiosidade e aparência pessoal na Inglaterra do século XVII. In: Estudos de Gênero. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 3.
[44] Helen Smith. ‘This one poore blacke gowne lined with white’: the clothing of the Sixteenth-Century English Book. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 195-209.
[45] Andrea Denny-Brown. Rips and Slits: the torn garment and Medieval self. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, p. 224.
[46] Idem, p. 230.
[47] Idem, pp. 235-236.
[48] Elizabeth Hallam. Speaking to Reveal: the body and acts of ‘exposure’ in Early Modern Popular Discourse. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 239-262.
[49] Idem, p. 243.