No florescer da Renascença, a linguagem das roupas modificava-se em
relação aos gêneros, ao estilo, às cores e às texturas. Na literatura
cavalheiresca, o universo da arte do vestir era evidenciado no discurso moral
de poetas, menestréis e escritores que sobreviviam em torno da realeza.
Nesse sentido, é preciso destacar o trabalho de Johan Huizinga, O outono da Idade Média, no que se
refere à ideia de moda na Renascença. Para o autor, na França e em Flandres, as
camadas dominantes deslocavam-se com ornamentos e teram acompanhados por
vassalos, aparatos e armas. Cada camada social possuía seus trajes, que tinham
diferenças com relação ao gênero.[1]
Observando o luto dos reis, o autor afirma que “Em uma esplêndida reunião em
Troyes, Felipe acompanha as rainhas da França e da Inglaterra em uma roupagem
de veludo de luto, que pende até o chão ao lombo de seu cavalo. Ele e seu
séqüito continuam a se vestir de luto ainda um bom tempo.”[2]
Ainda de acordo com o mesmo, “O meio de expressão que os une não é a
arte, mas a moda. Neste momento, a moda, de um modo geral, está muito mais
próxima da arte do que a estética acadêmica gostaria de admitir. Como uma
acentuação artificial da beleza e da movimentação do corpo, ela apresenta uma
ligação estreita com uma das artes: a dança. Mas, além disso, no século XV o
domínio da moda, ou melhor dizendo, o código dos trajes, está muito mais perto
da arte do que tendemos a imaginar. Não somente pelo fato do uso freqüente de
jóias e metais trabalhados nos trajes de guerra, que lhes conferem um elemento
artesanal imediato. A moda partilha as mesmas características essenciais da
arte: estilo e ritmo também são indispensáveis para ela. O período da Idade
Média tardia sempre expressou no código dos trajes uma medida do estilo de
vida...Na vida cotidiana as diferenças de peles e cores, capas e toucas
indicavam a rígida ordem das classes, as dignidades esplendorosas, o estado de
alegria ou sofrimento, a relação terna entre amigos e amantes”.[3]
Continuando a arte na vida durante o Quatrocentos nota que o “vestuário,
não se pode negar, também pertencia à arte. Mas é parte da própria finalidade
social das roupas que a pompa e o esplendor prevaleçam sobre a própria beleza.
Além disso, a vaidade pessoal puxa a arte da moda para a esfera da paixão e da
sensualidade, em que as características que constituem a essência da arte
revelada – equilíbrio e harmonia – são secundárias”.[4]
As modificações da moda franco-borguinhã mantinham-se inigualáveis,
segundo Huizinga, durante os anos de 1350 até 1480, sendo que o “traje de
corte” era “sobrecarregado com centenas de pedras preciosas. Todas as medidas
são exageradas, chegando ao grau do ridículo.” Os modos de vestir variavam
conforme os gêneros, sendo o penteado das mulheres com “o formato de pão de
açúcar do hemmin, ou seja, o cabelo natural é escondido ou removido das
têmporas e da área da testa, para exibir as frontes excepcionalmente arqueadas,
consideradas bonitas; subitamente começou o uso dos decotes”.[5]
Adicionado a isso, as vestes masculinas transformavam-se com maior
intensidade, como: os sapatos de bico fino, os
poulaines; as mangas bufantes,
chamadas de houppelandes; as jaquetas
curtas; os chapéus pontiagudos, drapeados ao redor da cabeça. Desse modo,
“quanto mais solene, mais extravagante; pois todo o belo significava poma de estat”. O traje de luto que
Filipe, o Bom, usa depois do assassinato de seu pai, para receber o rei da
Inglaterra, é tão longo que pende grande corcel que cavalgava até o chão.[6]
A produção têxtil predominante era originária da economia doméstica, de
modo que servos, plebeus e mesmo as damas medievais eram obrigadas ao árduo
trabalho cotidiano para fabricar tecidos e túnicas. Na Inglaterra do Trezentos,
as donas de casa, chamadas de mesuer
em francês antigo, ou mesmo housewif ,
em inglês medieval, possuíam rocas, fusos e teares e dominavam a produção
lanífera caseira. A expressão latina textrix
significava tecedeira. A palavra latina trama permaneceu a mesma em português,
mas em inglês, o termo spoole era
originário do francês espole e de spola da língua germânica. As linguagens
dos têxteis caseiros parecem ter circulado no norte da Europa, entre a Ilha
Britânica, Flandres e o Norte da França.[7]
Nas cidades italianas, moças e mulheres adultas trabalhavam na seda –
criação do bicho da seda, preparação dos casulos, dobagem e fiação – nas
oficinas de empresários a partir do século XII e sobretudo no seguinte.[8]
A produtividade lanífera tornava-se significativa nos países do Norte,
especialmente na Inglaterra, onde as criações de ovelhas foram muito
valorizadas, assim como em Castela. Com relação ao papel feminino na produção
dos têxteis e na economia doméstica, Piponnier observou que os ofícios de
alfaiate ou costureiro substituíam nas cidades o trabalho das mulheres.[9] A
autora parece ainda exagerar quando afirmou que, “No final da Idade Média, a
tecelagem doméstica praticamente desapareceu. A gama dos tecidos de lã ou de
misturas oferecidas pelos mercadores é suficientemente diversa para responder a
todas as clientelas. Mas na cidade como no campo a tecelagem por encomenda das
fibras vegetais trazidas pela cliente está bem desgastada, e alguns inventários
mobiliários permitem verificar que na Borgonha este trabalho é realizado tão
frequentemente por tecedeiras como por tecelãos”.[10]
Contudo, é provável que até o século XII, predominassem as atividades
têxteis femininas na economia medieval européia. Avós, mães e filhas das mais
variadas camadas sociais participavam das atividades de fiação, tecelagem e
costura para o dia-a-dia, bem como os ricos bordados para os dias de festas e
casamentos, principalmente para as mulheres da nobreza. Carlos Magno afirmava
que a educação feminina, no caso das suas filhas, não deveria ser somente fiar,
tecer e coser, mas também bordar, ler e escrever. Um exemplo da atividade
intelectual das mulheres reais era a rainha Matilde, que depois da morte do
esposo Henrique I, aprendia a ler e escrever, além de incentivar as duas damas
a fazer o mesmo.[11]
Originava-se, dessa forma, uma distinção social relacionada ao consumo
indumentário, que será cada vez mais destacado. A capacidade criativa das
mulheres, em suas casas, era paulatinamente substituída pelos trabalhos mais
especializados dos alfaiates, tecelões, tecelãs e costureiras. Yvain, em uma
obra do século XII, lamentava a falta de fortuna, ou seja, da sorte das
mulheres tecelãs, “Havemos sempre de tecer panos de seda e jamais estaremos
mais bem vestidas. Seremos sempre pobres e nuas; teremos sempre fome e sede.
Jamais ganharemos o suficiente para melhorar nossa alimentação (....) Pois quem
ganha vinte soldos por semana não consegue sair da miséria (....) e, enquanto
vivemos na penúria, aquele para quem trabalhamos enriquesse às nossas custas”.[12]
Contudo, é necessário retomar o debate sobre as ideias a respeito dos
modos de vestir a partir das análises da literatura medieval do século XII.
Conhecedora do latim, do francês (lingua natal) e do inglês (local onde foi
criada), Marie de France escreveu suas Leis
em francês a partir do precioso repertório dos poetas meridionais do amor
cortês, mas iniciou, segundo Jean Larnac, um tipo de poesia da perspectiva
feminina.[13]
Vivenciando o reinado de Henrique II Plantagenet (1154-1189), segundo
esposo de Leonor de Aquitania, o universo da corte de Londres, bem como a
produção literária de Chrétien de Troyes, Marie de France escrevia em versos
“uma maravilhosa aventura” do mundo cavalheiresco.[14]
No ideal de cavalaria, damas e cavalheiros conviviam nos castelos e nas
florestas repletas de perigos e magia. Gloria Tomas Gilmore, no artigo, “Marie
de France’s Bisclavret: what the werewolf will and will not wear”, estuda os
significados das roupas em Bisclavret,
uma parte da obra de Marie de France, na qual trata de um lobisomem e a relação
deste com as vestimentas e a nudez, correspondendo a primeira à civilidade e a
segunda ao selvagem e ao bárbaro.
No contexto de escassez material e consumo precário para os padrões
contemporâenos, na obra as Leis, o
vestir estava relacionado com a linhagem e com o privilégio dos senhores, bem
como às suas obrigações com seus vassalos (uma das responsabilidades dos
primeiros era armar os segundos).[15]
As damas vestiam indumentárias maravilhosas para receberem seus valorosos
cavalheiros.[16]
O universo da cavalaria, segundo M. Pastoureau, era constituído por uma
ética da courtoisie, na qual eram
valorizados os ideais de exaltação do desperdício, “beleza física, elegância e
o desejo de agradar; a doçura, o frescor da alma, a delicadeza de coração e de
maneiras; o humor, a inteligência, uma polidez requintada e, para dizer
claramente, m certo esnobismo. Pressupõe também a juventude, liberdade de todo
apego para com a vida, a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a
aventura e a ociosidade. (...) Para ser cortês, a nobreza de berço não basta; os
dons naturais devem ser refinados por uma educação especial e alimentada por
práticas cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é a corte de
Artur. É lá que encontramos as damas mais belas, os cavalheiros mais valentes,
as maneiras mais delicadas”.[17]
Ainda sob a perspectiva de Pastoureau, era a partir da metade do Duzentos
que “A difusão do ideal cortês introduz nos meios aristocráticos uma maior
preocupação com a aparência. À polidez das maneiras é preciso acrescentar a
elegância do vestuário. Este assume uma crescente importância nas relações
econômicas e sociais; tal como um produto de luxo, pode ser importado de muito
longe, ofertado de presente ou mesmo utilizado como forma de pagamento. (...)”.[18]
De maneira geral, a moda cavalheiresca revelava-se por meio das
metamorfoses nas formas de vestir, constituindo em alterações como por exemplo,
no aumento do comprimento das túnicas masculinas, no crescimento da barba e do
cabelo, nas mangas e mantos arrastados pelo chão, nos sapatos com a ponta crescente
que perduram por um longo tempo. Por volta de 1220, a túnica (bliaud) era substituída pelo surcort. O calção comprido não é mais
colorido de vermelho, mas predominantemente cru, e era enfiado sobre esses, as chausses, espécie de camisas que iam até
o meio da coxa, podendo ser de lã tricotada ou de seda. Essas chausses podiam ser de cor escura como
carmesim ou listradas. No século anterior, a camisa de linho passava a
predominar e seu consumo, geralmente, variava de acordo com as estações do ano.
No tempo de Felipe Augusto, o gibão substituía a túnica. Os calçados
podiam ser sapatilhas ou borzequins. Estes eram de couro, habitualmente
produzidos na Espanha, e envolviam os tornozelos. Os cavalheiros utilizavam a heusse, “botas altas impermeáveis, de
couro flexível e cor vermelha ou preta”. Mas a novidade reside na profusão de
acessórios como chapéus, cale
(pequeno gorro de lã ou outro tecido), chapel
(grande faixa de tecido enfeitado ricamente com pedras e metais preciosos) e as
luvas de tricô, couro ou pele.[19]
A moda cavalheiresca centrava-se na grande variedade de armas e
vestimentas, como as cotas de malha que podiam pesar de dez a doze quilos, a haubergenon (jaqueta, ou cota de malha
pequena de mangas curtas), o gambinson,
espécie de jaqueta de pele ou tecido acolchoado. No final do século XII, a
túnica de linho é agregada à indumentária cavalheiresca, em cima da malha, para
proteger o usuário do sol e da chuva. Acrescenta-se a isso, os machados dos
escudeiros e infantes, a corgiée,
chicote sem cabo de couro e a besta, armamento que predominava no Ocidente
cristão a partir da segunda metade do século XII. Os cavaleiros passavam a
manter uma diversidade de cavalos para cada carga, viagens, e o mais
importante, o combate.[20]
O consumo femino era marcado pelo uso de um véu para cobrir os seios, a
camisa, e a túnica constituída basicamente por duas formas. A primeira era
simples, mas a segunda era composta por duas peças, sendo o corpinho, bastante
ajustado ao corpo, uma faixa apertando a cintura e uma longa saia pregueada,
destacando a silhueta das mulheres. As metamorfoses também acontecem nos seus
trajes com a versatilidade das mangas na moda cavalheiresca, bem como os
adornos nos cintos. O botão, difundido a partir da segunda metade do século
XII, podia ser de couro, tecido, osso, chifre, marfim ou metal. A partir do
período seguinte, as tranças desapareciam dando lugar aos cabelos mais curtos e
presos com aros. Para sair à rua, as mulheres cobriam-se com véus, sendo os das
viúvas e freiras chamados de guimpe.[21]
A produção de brasões representou um dos aspectos mais significativos da
moda cavalheiresca, podendo ser emblemas de famílias ou pessoas. Um dos mais
antigos era de Godofredo Plantageneta, um “escudo azul com seis leões de ouro”.[22]
Desse modo, segundo Pastoureau, “Na Idade Média o porte de brasões jamais
esteve reservado a uma categoria social particular”.[23]
Posteriormente ao
século XII, tratado por Pastoureau, o debate sobre a moda e a sua interrelação
com gênero tornam-se mais presentes na historiografia. É importante notar a
abordagem da História das Mulheres. Diane Owen Hugues, em, “As modas femininas
e o seu controle”, observa logo no início do texto, que a moda e o gênero
estavam presentes:. “porque se a moda é uma simples paixão dos homens, ela é
uma doença das mulheres. Nós apreciamos os estilos que estão em voga, mas elas
idolatram-nos”.[24]
Para a autora, a ideia
de moda existia no século XII, com o luxo econômico e a crítica e ódio dos
cronistas monásticos sobre a “invenção de certas modas” propagadoras da
“vaidade masculina”. No século seguinte, o controle real fazia-se presença com
a própria rainha Margarida de Provença, “ávida pela moda” e impedida de sua
propagação pelo marido rei Luís IX. Segundo Huges, “dado que no passado os
homens tinham sido castigados por usarem vestuário masculino: por se pavonearem
na rua de Milão, no século XIV, como Amazonas, com cintos dourados e sapatos
ponteagudos, símbolos de seus corações marciais e masculinos; ou na Inglaterra,
por adentrarem a cavalo em torneios, vestidas com túnicas bicolores com adagas
no cinto, parecendo mais participantes que espectadoras. Gradualmente, a
responsabilidade pela interpretação e transmissão da moda deslocou-se para as
mulheres”.[25]
Assim, conforme a
perspetiva de Huges, as metamorfoses das modas renascentistas evocavam um jogo
de poder, sedução e de transgressão feminina a partir do consumo dos chapins,
das anquinhas e dos corpetes. Os primeiros eram sapatos de solas altas de couro
que atrapalhavam o andar. No século XV, as autoridades venezianas atacavam seu
uso em mulheres grávidas pelo perigo físico de caírem e espiritual por poderem
perder seus filhos. No caso das anquinhas, tratavam-se de arcos que levantavam
a saia e definiam os movimentos das ancas, eram criticados até mesmo pelas
cortes das rainhas Catarina de Aragão, na Inglaterra, e a sua mãe, Isabel de
Castela: “os arcos tornaram-se uma marca distintiva e um suporte da moda
renascentista tardia, mantendo os vestidos afastados do corpo e exigindo, como
chapins, jardas adicionais de tecido para o cobrir. No entanto, os críticos da
moda preferiam os argumentos morais aos argumentos enconômicos, referindo os
segredos que as anquinhas encobriam mais do que os tecidos que exibiam”, afirma
a autora.
As modas
renascentistas, para a autora, adquiriam status
de “jogo interminável de negociação social”, havendo “mudança no vestuário de
acordo com a estação”. Nesse significado moderno, ela tornava-se “não só
conhecimento, mas também interpretação”, a partir da astúcia feminina para
transgredir a legislação suntuária recorrente nas cidades italianas de Veneza e
Florença. [26] Por
exemplo, as proibições de certos brincos em orelhas judias no século XV, no
seguinte foram consumidas pelas cristãs. Também, as mulheres procuravam tecidos
e formas diferenciadas, como Isabel de Este, que mandava emissários para Mântua
à procura de têxteis e enviava para Francisco I, na sua corte em Paris, a
pedido deste, uma boneca vestida com a sua última moda.[27]
Relacionando a moda com
o sentimento de pudor e os jogos de sedução, Bologne retrata a presença do
decote e aparecimento do colo nas vestes das rainhas francesas no século XIII.
Essa moda do vestido decotado, e dos seios nus, era para ser vista, desejada e
sonhada pelos cavaleiros. Os discursos morais, no século seguinte, criticavam
as aberturas lateriais (a cava) dos surcots (túnicas de colocar por cima),
chamando-as de “janelas do inferno”. Esses decotes das grandes damas eram
velados pelo tassel, um pedaço de tecido fino que cobria o colo. E a silhueta
feminina era moldada pelos coletes justos ao corpo.[28]
Nos trajes masculinos,
os vestidos compridos fizeram escândalo na corte francesa. Mas no século
seguinte, o vestuário feminino aumenta e o dos homens diminui, aparecendo as
pernas. Para Bologne, “De uma assentada, o camisão [masculino] fica pelo alto
das coxas e pouco a pouco transforma-se em gibão. Moda tanto mais chocante
quanto as roupas se tornam mais moldadas. Voga dos vestidos amplos de pregas
diretas: o gibão, o peito, e o calção, nas pernas, colam o corpo como a couraça
que parecem traduzir em tecido. Tanto pior para as formas que revelam...”[29]
Diferentemente, Odile
Blanc, em “From Battlefield to court: the invention of fashion in fourteenth
century”, postula a ideia corrente de
que a origem da moda encontrava-se no século XIV, com a idade do gibão,
vestimenta descrita nas crônicas cavalheirescas. As mudanças na vestimenta,
isto é, enormis novitas, aconteciam
no contexto dos constantes conflitos entre a realeza da França e da Inglaterra,
em meio à Peste Negra, à fome e às dificuldades de sobrevivência da maior parte
da população européia. Os cronistas destacavam as distinções dos modos de
vestir dos aristocratas e dos servos, dos homens com armas e dos civis e entre
os clérigos e os comuns, sendo os primeiros, predominantemente, críticos aos
modos de vestir.[30]
Analisando as representações iconográficas das iluminuras medievais,
Blanc destacou a temática da vida cortesã e do cotidiano. Com base nelas,
observa as novas modas masculinas das indumentárias militares, considerando
isto frutos das “fantasias aristocráticas”. Nesse sentido, as modas
cavalheirescas tornavam-se “marcas de poder e esplendor”. Em diálogo com Joham
Huizinga, a autora compreendeu os “corpos guerreiros” como modelos de
vestimentas dos homens jovens. Dentre os trajes dessa moda, estavam os cottes ou gonelles, típicas túnicas francesas ou inglesas que
transformavam-se, ao longo do tempo, em peças mais elaboradas a partir do
século XIV, aparecendo novas indumentárias como o surco” e o coudières, que metamorfoseavam as silhuetas masculinas.
Surgia o gibão e, consequentemente, os alfaiates especializados na sua
produção, os quais se organizaram uma guilda parisiense, em 1358.[31]
Na perspectiva de Blanc, as distinções vestimentárias masculinas e cavalheirescas
modificavam as relações corporais. Essa dinâmica corporal masculina, por
intermédio da indumentária, era uma parte da estratégia de manutenção do
domínio e do poder dos homens. Isto é, O valor de masculinidade dos cavalheiros
era também caracterizado pelo modo de vestir.[32]
O autor questionava-se como as relações de gênero estavam sendo
constituídas na sociedade cortesã e como haviam mudado na passagem da
constituição Feudal para a Moderna.
Nesse sentido, destaca-se a Querelle des femmes, uma disputa entre os
gêneros na Europa, arrastando-se pelos séculos XIV ao XVIIII. Dentre as
questões levantadas na passagem do Trezentos para o Quatrocentos, estavam: as
mulheres realmente tinham alma, eram elas humanas?[33]
Nessa querela, é preciso destacar a preciosa relevância de Christine de
Pisan, ou Pizan (1365-1430). Mascida em Veneza, trazida para a corte francesa
pelo pai médico e astrólogo. Ficara logo viúva, com dois filhos, e seu pai
morria em seguida do esposo. Escrevia e sobrevivia devido ao mecenato real de
Carlos VI e de seu descendente Carlos VII. Estabeleceu um debate sobre a
existência da alma das mulheres. Para Huizinga, essa dama “corajosa defensora
da honra feminina e dos direitos da mulher dirigiu-se ao deus do amor na carta
poética que continha a reclamação das mulheres contra toda desonra dos homens”.
A autora também combatia as reflexões do autor de Romam de la Rose, Jeam de Meun. Dessa forma, “seguiu-se uma guerra
literária em que vários defensores e oponentes tomaram a palavra”.[34]
Como escritora profissional avant
la lettre, Pisan descrevia com arte a vida cortesã e defendia a ideia de
que as mulheres eram seres humanos. Segundo Gisela Bock, a humanista combatia o
pensamento misógino, recriando um novo mundo, em Cité de las dames. O pensamento da escritora era de que as mulheres
tinham alma, bem como os homens. As mulheres também possuíam a capacidade de
governar e de serem intelectuais.[35]
Em vários momentos, Pisan descrevia os modos de vestir, em Le Chemian de longue étude.[36]
Nota-se como referência ao modo antigo de vestir uma túnica e os novos adornos
e silhuetas. A metamorfose da moda estava clara para a escritora cortesã. A
moda cortesã descortinava-se nas percepções culturais do feminino, e era
descrita na literatura cortesã feminina de Pisan.[37]
Observa-se, portanto, a
preocupação com a riqueza e o luxo indumentário das damas da corte e a
necessidade que tinham de se destacar e ostentar suas posses. A moda passava
por uma transformação lenta, evoluindo da cavalheiresca, – centrada no amor
cortês e nas novelas de cavalaria, para aquela cortesã e aristocrática, havendo
assim procuras de novas maneiras de vestir, aproximando-se da capacidade
criativa dessa arte.[38]
As obras de Christine de Pizan adquiriam uma elevada importância para a
constituição dessas aproximações possíveis, principalmente, quando se analisa o
contexto histórico das obras pisonianas e da Querelle des femmes.
Na mesma corte de Carlos VII, a sua amante favorita Agnés de Sorel
(1422-1450) descobria os ombros e os seios, empalidecendo de ciúmes as grandes
damas. Na sua criação erótica de movimento e do seio revelado, parece ter
lançado a moda cortesã de um tapado e outro a mostra. Na Guerra dos Cem Anos,
os ingleses imbarcavam na França em busca dos seios nus e mantinham-se em
território franco, “graças ás coxas dos homens”.[39]
No entanto, segundo Bologne, era a
partir do Quatrocentos, que “a indignação surge realmente em nome do pudor”.[40]
Ainda nesse momento que os reis adotavam a moda curta, os clérigos, no concílio
de sens, em 1460, eram proibidos de vestirem roupas curtas. E a nudez masculina
era controlada por meio das túnicas a três quartos, capas e mantéus. [41]
No século XVI, esse debate prolongou-se e as experiências místicas
femininas eram ralatadas por mulheres como a rainha escocesa Mary Stuart.
Defensora da Santa Madre Igreja e do Papa, a governante alinhava-se com as
perspectiva religiosa dos Católicos espanhóis e franceses em um mundo marcado
pela polaridade religiosa e dificuldade de pacificação. Em sua literatura, a
rainha estava sempre entre a esfera do amor profano e religioso, retratando uma
experiência mística. Nessas manifestações e relatos de êxtases místicos, a
mente, o corpo e as vestes faziam parte de uma identidade e da cultura da
diferença. As indumentárias católica com seus ornamentos, como rosários,
diferiam das vestes protestantes, que não possuíam tais artefatos
ornamentados. A rainha, escritora de
poesia em francês, declarava “Que suis ie de quoy sert ma vie”.[42]
Na Inglaterra do século seguinte, a aparência das mulheres devotas
evocava interpretações ambíguas. Segundo Laurance, “Por um lado, fugiam da
extravagância, das manifestações de vaidade e da mutabilidade da moda. Por
outro, preocupavam-se profundamente com o status
e a aparência apropriada à posição tanto moral quanto social. Era necessário
que a esposa de um homem devoto tivesse uma aparência agradável: que parecesse
limpa e saudável; que se vestisse de acordo com sua posição social, o que
poderia significar com algum luxo, que seu marido fosse um homem de posses”.[43]
Na perspectiva das transformações da arte de vestir relacionadas aos
gêneros, a historiografia demonstrou que a construção do discurso sobre o corpo
durante a Época Moderna era importante. Helen Smith explorou as descrições
textuais dos livros sobre os modos de vestir, havendo uma linguagem das roupas.
Dentre os discursos analisados, destacam-se as peças teatrais e suas
performances.[44]
Na mesma linha de análise, Andréa Demy-Brow defendeu a ideia de que o
discurso sobre o estilo indumentário intensificava-se a partir da “revolução
virtual” do vestir europeu por volta de 1340. Segundo a autora, a distinção de
gênero e a metamorfose das silhuetas seriam principalmente masculinas, com o
“dramático” encurtamento dos gibões dos cavalheiros.[45]
Nesse contexto, as leis suntuárias e os cronistas criticavam também o
comprimento das roupas de acordo com o status
e gênero. A autora sugeriu que a corporalidade era modificada a partir do
consumo de roupas fabricadas pelos alfaiates por meio de cortes distintos nas
indumentárias. Era presente nos discursos literários a referência às modas
cavalheirescas, com “modos e marcas violentas de criação”. [46]
Na perspectiva literária, destacam-se, como já apontado acima, as
vestimentas cavalheirescas, com descrições de batalhas épicas e violentas.
Encontravam-se os armamentos rígidos da cavalaria, presentes em personagens
como Perzival. As vestimentas
cortadas também possuíam significados culturais, simbolizando os conflitos
materiais e espirituais da época, como por exemplo, as discussões morais sobre
o pecado original, sempre presente, atacando moralmente a condição feminina. A
crítica ao modo de vestir geralmente acompanhava comportamentos morais das
mulheres, compreendidas como imorais, lascívias e depravadas. [47]
Ainda nessa linha de pesquisa da análise dos discursos, Elizabeth Hallan
trata das “dimensões do gênero”, como um complexo processo de percepções
corporais femininas e masculinas. Destacavam-se
as construções grotescas dos corpos femininos, pois esses tinham “maior
visibilidade”. [48]
Relacionando fontes textuais e visuais, a autora abordou as articulações de
certos modos de corporificação, ou melhor, personificação dos significados de
corpos vestidos e não-vestidos. Salientou a relação das imagens corporais –
espirituais e sociais – com os gêneros; e sugeriu a ideia de uma adaptação da
“aparência corpórea” por parte da linguagem textual e imagética.[49]
Observa-se, portanto, que a função dos artefatos,
principalmente dos habitos, transformava-se fundamentalmente de acordo com as
mudanças das articulações entre gênero a partir da propagação da vida cortesã,
do mercado da economia mundo e da expansão das modas renascentistas.
[1]
Agradeço a Iris Kantor a indicação para consultar: Johan Huizinga. O outono da Idade Média. São Paulo:
CosaicNaiff, 2010, p. 11. (tradução)
[2] Idem, p.
72.
[3] Idem,
p.80.
[4] Idem, p.
425.
[5] Idem, p. 426.
[6] Idem, p. 430.
[7] William Sayers. Flax and linen in
Walter of Bibbesworth’s thirteenth-century french treatise for english
housewives. In: Medieval
Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.:
The Boydell Press, v.6, 2010, pp. 111-126.
[8]
Françoise Piponnier. O universo feminino: espaços e objetos. In: DUBY, Georg. & PERROT, Michele. História das Mulheres no Ocidente.
Porto, Afrontamento, 1990, pp. 445-446.
[9]
Idem, p.446.
[10]
Idem, p.447.
[11]
Max von Bohen. La Moda. Historia do traje
em Europa. Desde los orígenes del Cristianismo hasta nuestro días.
Barcelona: Salvat Editores, 1928, p. 32.
[12]
Apud. Michel Pastoureau. Op. Cit. (1989), p. 40.
[13]
Jean Larnac. Histoire de la littérature féminine em France. Paris, 1929, pp.
9-20.
[14] Lais de Marie de France. (Traduits, présentes et annotés par
Laurence Harf-Lancner). Paris, 1990, p. 13.
[15] Gloria Tomas Gilmore, no artigo, Marie de France’s Bisclavret: what the
werewolf will and will not wear. In: In: Désirèe G.
Koslin and Jane E. Snyder. Encountering
medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan
Pblischers Limited, 2002, pp. 75-76.
[16]
Em uma de suas passagens de relato da sociedade cavalheiresca, Marie de France
afirmava que “La jeune fille obéit/ et les deux femmes, magnifiquement
vêtues,/enfrent dans la grande salle en se tenant par la main.” Laurence
Harf-Lancner. Lais de Marie de France. Paris: Letre Gothiques, 1990, p. 65.
[17] Michel
Pastoureau. Op. Cit. (1989), pp. 48-49.
[18] Idem,
p. 88.
[19] Idem,
pp. 92-94.
[20] Idem,
pp. 110-117.
[21] Idem,
pp. 94-96.
[22] Idem,
p. 97.
[23] Idem,
p. 98.
[24]“pour
ce que la mode est une maladie des femmes, si c’est une simple passion des
hommes. Nous estimons les façons qui ont de la vogue, mais elle em sont
idolatres” Apud Diane Owen Hugues. As modas femininas e o seu controle. In: Georges
Duby & Michele Perrot. História das Mulheres no Ocidente. Porto:
Afrontamento, 1990, p. 185.
[25] Idem,
p. 186.
[26] Idem,
p. 211-212.
[27] Idem,
pp. 206-210.
[28] Jean Claude Bologne. Op. Cit., pp.
59-60.
[29] Idem, p. 65.
[30] Odiele Blanc. From Battlefield to court: the invention of fashion in fourteenth
century. In: Désirèe G. Koslin and Jane
E. Snyder. Encountering medieval textiles
and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers
Limited, 2002, pp.
157-159.
[31] Idem,
pp. 160-164.
[32] Idem,
pp. 165-170.
[33] Esse debate é importante
também para a compreensão das questões relacionadas aos povos indígenas no Novo
Mundo, mais tarde no século XVI, pois as mulheres índias e os homens gentios
guerreiros serão especiais temas das preocupações jesuíticas. A respeito das mudanças
da moda com relação ao mundo colonial ver: Mariselle Melléndez. Visualizing difference: the rhetoric of clothing in Colonial Spanish
America. In: ROOT, Regina A. The Latin
America Fashion Reader. New York, 2005, pp. 17-30.
[34] Idem, p. 189.
[35] Gisela Bock. Women in European History. Oxford: Blackwell, 2002, pp. 9-10.
[36] “Elle n’était ni jeune ni lègère,/Mais âgée et de ande expérience./
Aucune couronne n’ornait sont front,/ car ce n’était pas une reine;/elle était
mise avec simplicité,/coiffée d’um voile/ ceint autour de la tête, /et portait
une tunique/à l’ancienne mode”. Cristhine de Pizan.
Le Chemian de longue étude.
Paris: Librairie Générale Françaose, 2000, p. 115.
[37] “Son vestement de pourpre
estoit/ A or ouvré qui moult coustoit/ Et tout environ soy trainoit/ La grant
queue que elle menoit/ Celle tint un septre en sa main,/ Et dessoubz ses piez
soir et main/ Un hault roy couronné tenoit/ Deux livres: l’um ouvert,/ Et
l’autre fermé et revouvert./ Cette dama belle et gracieuse/ Avait à ses pieds
um taubouret/ Composé de figures de géometrie;/ Je la vis s’em servir de
repose-pieds”. Idem, p. 224.
[38] “Le vêtement de la dame êtait tout doure,/
luisant et distingue,/ et parsamé d’agrafes/ de grand prix et de grande luxe./
Elle les avair attachées/ pêle-mêle à son vêtement,/ et s’occupait à les fixer
et à les enlever de nouveau,/ selon sa fantasie./ La plus petite de ces
parures/ Valait bien, rien que pour l’or, um royane./ À
son cou elle aborait un bijou/ où était sertie une grosse escarboucle/ qui
luisait magnifiquement.” Idem, p. 229.
[39] Jean Claude Bologne. Op. Cit.,
p. 66.
[40] Idem, p. 64.
[41] Idem, p. 66-67.
[42] Sarah M. Dunnigan. “Sacred
afterlife: Mary, Queen of Scots, Elizabeth Melville and politics of santity”. In: Women’s Studies. Vol. 10, n. 3, 2003,
pp. 401-424.
[43] Anne
Laurance. Uma bela alma exigia um belo corpo? Mulheres, religiosidade e
aparência pessoal na Inglaterra do século XVII. In: Estudos de Gênero. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 3.
[44] Helen Smith. ‘This one poore blacke
gowne lined with white’: the clothing of the Sixteenth-Century English Book.
In: Catherine Richardson. Clothing
Culture, 1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 195-209.
[45] Andrea Denny-Brown. Rips and Slits:
the torn garment and Medieval self. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire,
2004, p. 224.
[46] Idem, p. 230.
[47] Idem, pp. 235-236.
[48] Elizabeth Hallam. Speaking to
Reveal: the body and acts of ‘exposure’ in Early Modern Popular Discourse. In:
Catherine Richardson. Clothing Culture,
1350-1650. Hampshire, 2004, pp. 239-262.
[49] Idem, p. 243.