O
estudo da transformação da moda mantém uma longa tradição analítica relacionada
com as obras artísticas, principalmente pinturas. Além disso, as obras de
história da arte, da cultura visual e visualidade são fundamentais para estudar
as aparências das mais diferentes hierarquias sociais e de gênero.
Pertencente
ao Warburg Institute, Erwin Panofsky estrutura o método de análise iconográfico
e iconológico muito difundido pelos historiadores da arte. Nesta metodologia,
divide a análise em três momentos. A descrição primária, ou chamada de
pré-iconográfica, analisando a forma, os assuntos e os eventos das obras
artísticas, é o primeiro. Relacionar a imagem com outras fontes, investigando
os motivos da sua produção, abordando os temas, conceitos, invenções e as
representações fazem parte do segundo momento, chamado de iconográfico. E, por
fim, a abordagem iconológica propriamente dita, buscando os valores simbólicos,
a “revelação de uma nova atitude emocional”.[1]
Neste último momento, há também a conexão da
obra de arte estudada em comparação com as outras, sendo este a compreensão da
lógica imagética, sendo a análise mais profunda da iconologia propriamente
dita. Na abordagem de Panofsky, são importantes os significados da obra de arte,
compreendidos principalmente por meio do estudo dos assuntos. Caso específico é
a presença da tradição clássica e seu reconhecimento no período do
Renascimento.
A
obra de arte renascentista, de acordo com a metodologia iconológica de Panofsky
estava relacionada ao universo humanista, aos movimentos da Escola Neo-Platônica e da busca distanciada
da tradição grego-romana.
Com
relação à tradição e inovação, Ernst Gombrich, estudioso do mesmo instituto
citado acima, em diálogo com Panofsky, realiza suas interpretações por meio da
interdisciplinariedade, pensando na teoria da percepção, estabelecendo conexões
entre a História e a Psicologia em suas abordagens.
Também
preocupado com os estilos, Gombrich faz a análise lógica das imagens,
destacando seus estudos sobre a ilusão do olhar a obra de arte, o primitivismo,
a forma plástica, as sensibilidades, os sentimentos, a tradição e criatividade.
A respeito deste último assunto, o autor afirma que
“a criatividade não surge do nada. É o
impulso de testar as possibilidades e variedades das soluções oferecidas pela
tradição artesanal que produz a novidade e originalidade, uma vez que o artesão
não aprende apenas a copiar, mas também a variar e a explorar seus recursos ao
máximo e a levar suas habilidades ao limite daquilo que a tarefa permite e
sugere”.[2]
De
acordo com Gombrich, em Arte e Ilusão,
as aparências estariam no mundo da ilusão, sendo que os espelhos “enganariam os
olhos”.[3]
Nesta obra também observa que os livros artísticos [e consequentemente suas
imagens] eram ricos em “detalhes” e surpreendentemente ousados, fruto da
criação da “modernidade” e do aprendizado. Para ele,
“na interpretação de imagens como na
audição de palavras, é sempre difícil distinguir o que nos é dado daquilo que
nós mesmos oferecemos como suplemento no processo de projeção que o
reconhecimento desencadeia”. [4]
Ainda
sobre imagens, o autor destaca aspectos importantes para os historiadores da
arte. Esta deve ser interpretada na medida em que a própria imagem não “conta a
sua história”.[5]
Nesta interpretação, o analisador deve compreender a obra de arte aos poucos,
sendo impossível entende-la por completo. Ademais, o olhar do pesquisador
“envolve um processo
sequencial que tem algo em comum com a leitura. Naturalmente, conseguimos
deslocar nosso foco pelo ambiente com maior facilidade do que absorvemos as
letras, palavras e significado da página, mas ambas as atividades são processos
essencialmente construtivos que acontecem com o tempo.”[6]
Ao
debater sobre a natureza da história da arte, Gombrich observa que é muito
importante para a pesquisa a necessidade de realizar questionamentos para a
análise das fontes, a procura por relações interdisciplinares [ no caso dele,
principalmente, entre história e psicologia], as investigações das tradições
dos ofícios artesanais; bem como o conjunto de valores artísticos. Além disso, nota os limites das
interpretações das imagens, principalmente quando se estuda as representações,
pois o pesquisador deve deixar claro quando se trata de especulações.[7]
Estudando
as pinturas e a experiência artística no Quatrocentos italiano, Baxandall
afirma logo no prefacio que a “história social e a história da arte são
contínuas, uma oferece insights para outra”.[8]
A partir desta relação, o autor analisa no primeiro momento a relação entre a
clientela e artistas, bem como os contratos entre ambas as partes e os
materiais artísticos. Nestes contratos e nas referencias dos materiais,
encontram-se dados importantes sobre as cores, como o caro azul ultramarino.
Nesta
parte, observa que a mudança na moda podia indicar uma transformação nas
aparências das representações pictóricas. Exemplo disto, nota que o dourado e
novamente o azul ultramarino passavam a ser “menos importante” nos contratos
ainda no século XV.[9]
No
segundo momento da obra, “o olhar do período”, Baxandall enfoca as mudanças na
experiência visual e, portanto, nas convenções representacionais. Ou seja, as
aparências expressivas e luxuriantes, bem como os gestos corporais possuíam
características importantes para o olhar do Quatrocentos Italiano. Segundo o
cronista da época Alberti, estes gestos representavam os “movimentos da alma” O
mesmo Alberti destacava a necessidade das belas cores, como o verde ou o azul,
para a maior graça das imagens pictóricas.[10]
Baxandall
aponta que os pintores precisavam ter conhecimento anatômico do corpo humano,
bem como de pensamento abstrato matemático como valorizar a aparência das suas
clientelas. Por fim, o autor analisa as práticas sociais visuais presentes nas
pinturas do século XV. Ornato, composições, cores e variedades nas formas foram
preocupações importantes dos oficiais da arte naquele momento histórico.
Fornecendo
linhas de pesquisas interessantes para os historiadores da arte, Baxandall
destaca os aspectos do ofício artístico como o trabalho técnico. Nesta linha
temática, Enrico Castelnuovo discute as transformações do retrato italiano.
Sobre o caráter público do representado na obra de arte, o “retrato de Estado”.
Afirma que este tratava de “evidenciar os sinais característicos do exercício
do poder, quer nos trajes, nos atributos e na pose, quer na expressão do
olhar”.[11]
Castelnuovo
observa a difusão do retratado no final do Quinhentos. Ou seja, havia uma maior
variedade camadas sociais representadas nas obras de arte além da “clientela
principesca”. Esses soberanos eram “representados com os signos e símbolos do
seu poder”.[12]
Com
relação `as representações das aparências, Peter Burke, em uma síntese
historiográfica sobre a história da Arte, afirma que “o valor das imagens” é
imprescindível para a História da Indumentária.[13]
Como exemplo, cita as análises de Fernand Braudel sobre a moda no cotidiano e a
cultura indumentária de Daniel Roche, em A
cultura das aparências.[14]
A
partir do estudo do consumo indumentário e da História da Arte, Ulinka Rublack,
em Dressing up: cultural identity in
Renaissance Europe, desenvolve uma rica análise das aparências na sociedade
renascentista. Em sua obra, aborda as mudanças da cultura indumentária e da
“práticas visuais” com relação às identidades sociais, aos grupos religiosos,
às “nações”, no gosto e sensibilidades. Neste último ponto, destaca a cultura
visual, material e a perspectiva da história dos sentimentos no Renascimento.
Ulinka Rublack analisa a cultura visual
do vestir-se nas cidades alemãs quinhentistas, destacando a identidade
da aparência e as indumentárias
multicolores da população comum, influenciando muitas vezes a moda e os gostos
das camadas privilegiadas.[15]
A sua leitura também incentiva o olhar
para a “aparência dos outros”.[16]
Segundo
a autora, as nações estavam diretamente conectadas às posições
políticas regionais e às relações de gênero. Homem, mulheres, por vezes crianças e os considerados jovens,
representavam as suas nações com vestimentas específicas. Estas figuras expressavam
visualmente ao mesmo tempo identidades e distinções. Para Ulinka Rublack, as
vestimentas femininas dos livros de costumes possuíam um “significado
político”, simbolizando não apenas uma “moral cívica”, mas também a virtude da
“nação”. No mundo germânico, estas vestimentas das “nações” eram construídas a
partir dos documentos; da produção de um conhecimento histórico fundado no
passado bárbaro; nos símbolos de gênero; em morais geográficas; e nos modos de
aparência dos cavaleiros.
Nesta primeira metade do Quinhentos,
a moda era a materialização da inconstância. A imagem do homem nu, presente nos
impressos, tornava-se rapidamente um ícone por toda a Europa. Contudo, no
período da Reforma, os religiosos, como Martinho Lutero, possuíam maneiras
performáticas e visuais de vestir.[17]
As imagens e os textos, presentes juntos nos panfletos da Reforma, conectavam com a identidade dos leitores
reformistas, bem como reiteravam os
“princípios do estilo estético baseado em um largo e homogêneo campo
monocromático”, como a vestimenta negra.[18]
A experiência visual fazia com que a
mudança acelerada dos modos de vestir fosse uma experiência concreta.[19]
Essas visualizações das vestimentas reais nos livros de costume traduziam em
grande parte os ideias políticos e sociais dos seus produtores. Contudo, mesmo
para o estudo das vestimentas reais, para a compreensão da história dos modos de vestir são
necessárias análises de outras fontes como os retratos renascentistas.[20]
No
período do Renascimento, diversidades de tecidos importados e variações no
vestir de roupas de luxo foram escolhas de poucos. Contudo, estudos apontam
diferenças nas aparências mesmo entre aqueles de condições sociais menos
favorecidas.
Apesar
das dificuldades em levantar dados sobre têxteis e indumentárias no período, é
a partir da busca pelas mais variadas tipologias documentais que se pode
conhecer as aparências dos outros. Encontrar referencias sobre cultura material
nas fontes mais diversificadas é importante para analisar a aparência das mais
variadas camadas sociais. Ulinka Rublack defende a ideia de que “inovação da
moda não se restringia à elite aristocrática, mas movia-se em múltiplas
direções”.[21]
Outro
aspecto a ser destacado em sua obra é a habilidade analítica das fontes visuais
e da cultura material. Rublack conecta com maestria o contexto da cultura alemã
a partir da sua leitura das obras artísticas, como as obras de Dürer, e imagens
dos impressos quinhentistas alemães, indumentárias e outros artefatos.
No
contexto castelhano, Máximo García Fernández observa que os espanhóis viviam
“obcecados pela aparências, pela representação diária de sua imagem individual
e por um permanente desejo mais que simbólico de aparecer bem”.[22]
Também sugere que a sociedade castelhana vestia-se “mais aberta, complexa,
oscilante e indisciplinada do que a ortodoxia cotidiana impunha por costume”.[23]
Embora
houvesse limites econômicos para o consumo de artefatos luxuosos, a cultura
popular produzia suas próprias vestimentas. Principalmente, as mulheres das
camadas populares. Essas reformavam seus vestidos e as roupas de suas famílias,
deixando-os mais refinados.[24]
Entretanto,
nem somente na corte e no consumo de artefatos luxuosos estava a moda
renascentista. Ulinka Rublack defende a tese de que também nas camadas mais
simples da população, na Renascença, construía-se moda. A autora salienta a
mudança da moda por meio da “competição sexual”, dos “estilos emotivos” e da
“expressão criativa” de um amplo espectro de grupos sociais germânicos.[25]
Nesta perspectiva, a moda não estava somente relacionada a posições
hierárquicas e acessos econômicos, mas também a questões relacionadas à
cultura. Por meio da análise das indumentárias e da cultura visual, Rublack
realiza uma história das sensibilidades e comunicações visuais.
[1] Erwin Panofsky. Studies in
Iconology. Humanistic Themes in the Art of the Renaissance. New York: Hagerstown,
San Francisco, London: Icon Editions (1th ed. 1939), 1972, p. 7.
[2] Richard Woodfield (Org.) Gombrich
Essencial. Textos selecionados sobre arte e cultura. Porto Alegre: Bookman,
2012, p. 363.
[3] E. H. Gombrich. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da
representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 103.
[8] Michael Baxandall. Painting & Experience in Fifteenth
Century. Italy. Oxford: Oxford University Press, (1th. 1972), 1988, p. 1.
[11] Enrico Castelnuovo. Retrato e sociedade na arte italiana. Ensaios de
história social da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 54.
[13] Peter Burke. Testemunha Ocular. História e Imagem.
Bauru, SP: Usc, 2004, p. 90.
[14] Daniel Roche. A cultura das aparências. Uma história da
indumentária (Séculos XVII-XVIII). São Paulo: Senac,
2007.
[15] Ulinka Rublack. Dressing up. Cultural identity in
Renaissance Europe. Oxford: Oxford University Press, 2010.
[22] Máximo García
Fernández. Cultura material y consumo. Rutinas cotidianas dinámicas. In: PEÑA,
Manuel (ED.). La vida cotidiana en el
mundo hispânico (siglos XVI-XVIII). Madrid: Abada, 2012, p. 60.