Na obra de Alcântara Machado, Vida
e morte do bandeirante, publicada em 1929, o autor analisa pela primeira
vez os inventários post mortem e testamentos paulistas. Debatendo com Olivera Viana, o historiador de
São Paulo colonial expõe as difíceis condições de existência dos bandeirantes
paulistas que viviam na pobreza, distantes do centro Metropolitano. Com uma
abordagem descritiva dessas fontes, compõe um quadro do cotidiano dos
bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A interiorização e o
isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma sociedade pobre, com
baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era relativizada com a
presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do mobiliário, o qual
tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da mineração.
Em um contexto de
transformações lentas na vida material, as mulheres bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos
bens e escravos. Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos
próprios filhos e da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos, porém,
a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua
Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras
preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça,
penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila
adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da
colônia”.
Para Alcântara Machado, a
família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela
significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto.
Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental
exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a
autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos
e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor
da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do
patriciado”.
Nessa perspectiva, o poder
inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e
opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela.
“Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do
marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e
lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua educação”.
Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e o
matrimônio.
Ao lado da família legítima,
estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias
concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos
vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo
Machado possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e
faceira”, estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o
historiador, o português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que
deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a
sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra
da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o
íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele
para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num
meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num
ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de
Deus..."
Por outro lado, as escravas faziam parte do
botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas
brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os
despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do
vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a
parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.
Em relação às mulheres das
famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam
leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem
ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". O espaço feminino era reservado ao lar e
à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas
representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas
cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza;
elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as
iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas
policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros
indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.
Na
obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros,
mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na
São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas
brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de
linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos
homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos
estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda
da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de
golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho.
Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata,
adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de
porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as
vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
Para
as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas
de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na
os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão
de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano.
É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do
Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de
baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha,
contra a penetração das setas inimigas”.
Na vila, fazia-se importante o
indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e
de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada.
A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650,
quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de
baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote;
outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo
da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.
Diferentemente, as roupas
femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em
relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.
Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende
vasquinha, saia de roda exuberante, franzida na cintura; e, ajustado ao busto,
o corpinho; e, por cima deste, o gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio,
casacão rabilongo de mangas perdidas, com abertura ao nível dos cotovelos,
dando passagem e liberdade aos braços; e, cobrir tudo isso, como se tudo isso
não bastasse, o manto. Com muito menos se supõem vestidas as damas da
atualidade. E têm razão. Entre outros motivos, porque, parecendo obedecer à
intimação das modas peregrinas, se inspiram de fato no figurino guaianás das
filhas de Caiubi e Tibiriçá”
Apesar de não haver variação
dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As
senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro
eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o
“cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em
quarenta mil réis.
Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre
aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das
senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de
prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais
complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o
enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre
todos os estamentos. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas de
utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as
vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das
“senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada.
Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras
pulseiras e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas
de d. Ana de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado
de verde, branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior. Para essas mulheres eram reservados os
rosários com cruzes de ouro ou de prata.
Distantes da cultura erudita,
sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das
senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No
entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as
autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos
incidentes dessa natureza o mais curioso é o que se desenvolve no inventário de
Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento Pires Ribeiro. Curioso, não
pela substância jurídica do caso, mas pela qualidade das pessoas em lide.
Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça de Deus, tem e possui
com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem necessite alguma cousa,
pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da inventariada, se lhe defira a
curadoria dos netos. Não está por isso o capitão Fernão Pais Leme, tio dos
órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela franqueza que respira, o
protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa por acentuar que a
suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e muitos anos, e tão
doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não pode fazer sem
ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os sobrinhos com sua
gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como no mais, e também
na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e de raiz, não tem
outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de outra forma, os
órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.
Essa senhora fora a principal
protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de
Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se
homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em
tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse
entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e
a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par,
ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos
debulhados em lágrimas. A turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do
matador, se deixa vencer e desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a
devassa. Concluído o processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para
levá-lo à Bahia, onde deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do
sertão bravio, Inez Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do
filho. Mas antes de lá chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam,
resolvem executá-lo covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no
mar nas alturas da Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar
a sua criatura, desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série
e infindável de conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um
século ensangüenta e sobressalta a nossa terra”.
Enfim, as senhoras “matronas”
eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de
atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo. Nessa perspectiva, entendeu-se que as
mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela
filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia, em momentos de exceção, existiam algumas
mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando,
ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero
masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de
sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações
das senhoras paulistas.
A condição feminina no
interior das relações familiares também foi desenvolvida por Gilberto
Freyre em Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o
regime patriarcal. Em sua obra, publicada pela primeira vez em 1933, trata
a família como eixo temático e interpretativo para compreender a realidade
colonial e construir um sistema, no qual o chefe familiar liderava as relações
de poder econômico e político. Ou seja, era no entorno do senhor de engenho e
da sua família que se constituía o núcleo fundador colonial. Dessa forma, a
Família passava a ser a instituição mais importante da História Colonial
Brasileira.
Sob a perspectiva do patriarcalismo, foram desenvolvidos os temas da
lavoura canavieira, da escravidão, das relações de solidariedade, dos núcleos
populacionais e administrativos, das tensões sociais, do cotidiano. Todo o
contexto social, político e econômico deveriam girar ao redor do governo
familiar, senhorial e patriarcal.
Nessa “civilização patriarcal”
,
as mulheres, de uma maneira geral, eram compreendidas como sujeitas e
subjugadas ao poder do chefe e patriarca, e, conseqüentemente, não possuíam
nenhum campo de atuação. Ao descrever a influência da família indígena, o autor
acabou difundindo imagens das índias concubinas. Assim, sedimenta, na
historiografia colonial, a visão da índia "passiva", que está sempre
à disposição do senhor colonizador branco. Segundo o mesmo,
"o europeu saltava em terra escorregando em
índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão
atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixavam-se contaminar pela
devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais
ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao
europeu por um pente ou um caco de espelho".
Para Freyre, as mulheres
indígenas representavam a transmissão da cultura indígena na sociedade
colonial. Entretanto, essa perspectiva acabou por cristalizar imagens
estereotipadas e idealizadas das sociedades indígenas e coloniais. As índias,
na visão freiriana, se "ofereciam ao amplexo sexual dos brancos", pois haveria "uma espécie de
sadismo do branco e masoquismo da índia ou negra que teria predominado nas
relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças
submetidas ao seu domínio".
Outro mito produzido pelo
historiador do patriarcalismo foi o da “democracia social”, originária das
relações sexuais entre os senhores e as cunhãs e africanas. As indígenas,
portanto, além de serem consideradas como submissas, eram responsáveis pela
degradação moral dos conquistadores. Na realidade, essa perspectiva de Freyre
da condição feminina na colônia baseava-se, centralmente, na sua leitura dos
jesuítas do período quinhentista.
Tanto Machado quanto Freyre
reconstruíram o mito do cunhadismo, entendendo que as sociedades indígenas
entregavam suas mulheres como concubinas aos senhores colonizadores brancos. Os
senhores coloniais é que constituíam seu domínio sobre as sociedades indígenas
e acabavam por oprimi-las pela força e controle. Dessa maneira, os homens das
camadas senhoriais adquiriam prestígio social e militar.
Apesar da sua significativa
contribuição à temática da família e da autoridade do poder patriarcal, Freyre
interpretou a atuação das mulheres como submissa, enclausurada e totalmente
dominadas pelo poder do patriarca. Além do mais, esses autores focalizaram o
papel da família, sendo esta o eixo temático para a interpretação da História
das Mulheres, que se desenvolveu posteriormente. Para ambos os autores o núcleo familiar
era a o eixo explicativo e interpretativo da sociedade colonial. Isto é, a
família, entendida como ponto de “apoio” e de “organização”, representava o
centro, no qual todas as outras instituições e relações eram subjugadas. Além
disso, as senhoras eram ausentes das atividades de trabalho e de comércio, daí
“o mito da dona ausente”, descrito por Maria Odila Leite da Silva Dias.
Diferentemente das
interpretações anteriores, Adalzira Bittencourt, em A mulher paulista na
História, construiu de forma épica o mito da mulher bandeirante, heroína de
raça branca. Sua obra, produzida na década de 1950, nas comemorações do “Quarto
Centenário” da História de São Paulo, apontava para uma outra temática e
inseria a História das Mulheres no mundo colonial. Iniciava o seu estudo com a
narrativa do encontro entre as índias idealizadas e os colonos civilizados. “Os
rapazes ficavam encantados com a notícia das moças morenas, de corpos cor de
cobre, talhados em curvas sedutoras, as quais andavam inteiramente nuas e
belas...”, dizia logo nas primeiras linhas.
O amor e a formação de família
entre a índia Batira e João Ramalho era entendido sob uma ótica idealizada. A
partir desse novo núcleo a sociedade paulista encontrava as suas origens, que
eram desmembradas com a formação da “mulher civilizada branca”. E, dentre as mulheres senhoriais,
destaca-se a figura de Izabel Dias que, conforme a autora,
“deve descerrar as cortinas do
pórtico da História da Mulher Paulista, pois que o sangue vem passando de
geração em geração nas veias de gente de nossa terra, formando os bandeirantes
que alargaram as fronteiras da Pátria,
sangue que ainda hoje circula nas veias dos estadistas, dos agricultores, dos
industriais, dos poetas, dos operários, e da juventude gloriosa de São Paulo”
No discurso de Aldazira, a mulher
bandeirante ganhava ares de senhora matrona e atinge o pedestal, juntamente com
os homens bandeirantes, ou a “Raça de Gigantes”, na “Era das Bandeiras”. Nessa sociedade, a condição feminina era
auxiliar o homem no avanço civilizatório. E, assim, estava formulado o mito da
boa mãe e a imagem da passividade e do caráter cordato da mulher.
“As mulheres são matronas respeitáveis que comungam
com os maridos no anseio de dilatar as fronteiras do Brasil.
Dir-se-ia que o entusiasmo era gerado na alma das
mulheres, como no laboratório do sagrado de seus ventres é que se formava a
raça de heróis e sertanistas ousados. Como poderá a História da bandeirologia
esquecer o nome das mães dos titãs?
Quantos nomes interessantes poderíamos ter guardado,
não fosse o hábito de menosprezar as cousas e atos femininos, encobrindo com o
descaso os nomes de que eram portadores?
A violeta se esconde sob a folhagem, mas o perfume
denuncia o encanto.
As bandeirantes ficaram esquecidas na voz da história,
mas os feitos de outra denunciam e põem à mostra o valor daquelas que foram
sufocadas no esquecimento absoluto”.
Originária
de São Paulo, a mulher bandeirante, formadora da raça paulista, era o modelo
ideal feminino para a Pátria, pois fazia parte da sua natureza a inteligência,
a bravura e o patriotismo.
Tal
imagem feminina se complementa com os estudos das matronas como Ana Pimentel,
senhora fidalga e rica, que realizava o sacrifício de trabalhar nas terras de
São Vicente para a glorificação da Nova Pátria. Aldazira ainda afirma que
“em chegando ao Brasil, no
desconforto da habitação, Ana Pimentel, que vivia no solar dos Duques de
Bragança, tem agora por morada uma ligeira habitação de palha. Que importa? A
moça palaciana vai se transformando. Trabalha, levanta cedo para ver as suas
plantas, atende o gentio; quer cuidar dos homens do mar, dos flâmulos. Manda
construir a casa onde viveu, em São Vicente, o pequeno burgo fundado a primeira
vez por Cosme Fernandes, e aí vê crescer a cidadezinha com a ajuda dos jesuítas
e dos colonos que ali viviam ou os que com ela vieram da Metrópole. Tudo fez
para somar as dificuldades encontradas”
Catarina
de Lemos, outra mulher estereotipada, era a “mãe branca e civilizada de gente
nobre da terra de Bento Gonçalves, e lá foi para o sul a alma bandeirante, nas
saias e num coração de mulher”.
Entretanto, outras imagens menos cristalizadas
são formadas, como no caso da cigana Francisca Rodrigues, dona de um comércio
na vila de São Paulo. Também se destacava Dona Catarina de Siqueira, que era
uma das poucas letradas e cultas, proprietária de uma biblioteca considerável.
O
texto de Bittencourt destaca-se pelas representações de seu próprio
gênero
e pela repercussão de que as mulheres no período colonial “cuidavam da família
e dos negócios e também das lavouras nascentes”.
Enquanto
as abordagens de Alcântara Machado e Freyre colocaram a atuação feminina no
interior da família, sob o domínio e a ótica do senhor patriarcal, Aldazira
Bitencourt inseriu o papel do feminino subordinado ao poder do Estado. A
autora, portanto, submeteu a relação do gênero feminino ao poder da
“Pátria”, quando afirmava que as mulheres bandeirantes “alargavam as fronteiras
do Brasil”.
Desse moda, essa historiografia realizou a formação do estereótipo das
mulheres totalmente submissas ao sistema patriarcal e das índias sempre
disponíveis e sexualmente ativas. Também produziu mitos como o da matrona
bandeirante, da mulher enclausurada e da dona ausente das atividades de
trabalho. Entretanto, marcou significativamente o debate historiográfico e
ainda pode ser retomada para o aprofundamento de questões como a opressão das
mulheres em relação ao domínio do senhor colonial, e as condições de vida
material das famílias e dos gêneros na América Portuguesa.
No caso da História das
Mulheres no Brasil colonial, devem ser levadas em consideração as maneiras de
atuação no interior da família patriarcal e senhorial. Essa questão foi
abordada por Antonio Cândido em um artigo da década de 1950, no qual destacou
que
as mulheres adquiriram um
espaço no interior da família e sob a subordinação do poder "quase
absoluto" do domínio patriarcal. Isto é, mesmo havendo amplos poderes do “pater
familias”, as mulheres senhoriais paulistas desenvolveram um modo de vida,
no qual tiveram a possibilidade de atuar nas redes familiares, assim como na
economia.
A partir dessa constatação o papel das mulheres no interior da família
passa a ser mais valorizado e as pesquisas documentais começaram a ter maior
amplitude. Abordando uma temática
da História das Mulheres, até então não estudada, Charles R. Boxer, em A
Mulher na expansão ultramarina ibérica, realizou uma pesquisa inicial na
década de 1970. O autor também aponta para a atuação femininas nas diferentes
regiões coloniais ibéricas do Oriente ao Ocidente e destaca as diferentes
estratificações sociais, das quais as mulheres faziam parte. Referindo-se à
América Portuguesa, ressaltou que
“as
mulheres tiveram um papel social importante fora do próprio lar, numa sociedade
machista como, sem dúvida, era a sociedade colonial brasileira, quaisquer que
sejam as nuances ou modificações reveladas pela futura investigação histórica,
a posição das viúvas ricas não sairá diminuída”.
Mas é
com Rusell-Woold, no mesmo período, no artigo,
Women and society in
colonial Brazil, que o estudo da História das Mulheres no Brasil foi
inaugurado. O autor começou, pela primeira vez, a desconstruir uma série de
mitos e estereótipos em relação à condição da mulher, e realizou um primeiro
panorama da história da participação feminina na colônia. A partir desse
trabalho, outros estudos foram desenvolvidos.
Em suma, é interessante acrescentar que a escrita da História das Mulheres no Brasil teve seu início, em grande parte, a partir dos estudos de autores ainda da primeira metade do século XX, bem como de americanistas como no caso de C. R. Boxer e de Rusell-Wood. Nesse sentido, a historiografia atual deve muito a estes trabalhos, devendo analisar a recepção dessas obras e aprofundar os temas apontados pelos autores.
Alcântara Machado. Vida
e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp.
65-74.
Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Formação da
família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de janeiro;
Brasília, José Olympio; Instituto nacional do Livro, 1980, p. 46.
C.R. Boxer. A Mulher
na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros horizontes, LTDA, 1975, pp.
68-69.
A. J. R. Russel-
Woold. “Women and society in Colonial Brazil”. In: Journal of Latin American
Studies, vol 9, no 1, 1977, pp. 1-34.