segunda-feira, 23 de julho de 2012

A ESCRITA DA HISTÓRIA DAS MULHERES: A FORMAÇÃO DE UM CAMPO. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA



Na década de 1960, poucos trabalhos estudavam o assunto da ocupação feminina. Saffioti, sob orientação de Florestan Fernandes, que fora aluna no primeiro semestre de 1958, estudava em tese de livre-docência as mulheres na sociedade de classes.[1] Preocupada com o “processo de marginalização da mulher do sistema produtivo...”[2], enfocava a “massa femininas no trabalho industrial” e na “exploração do trabalho feminino”[3]. Símbolo de uma modernidade intelectual interna da sociedade paulista da época, o seu trabalho obteve uma recepção importante na historiografia posterior, levando em consideração temas pesquisados posteriormente, como a “moderna vida feminina”, o uso de anti concepcionais, os cuidados com os filhos, o trabalho doméstico, a relação do trabalho feminino com os modos de produção.
No sentido histórico, a autora construía a imagem da mulher branca como supervisora das atividades domésticas. Segundo a mesma,
“ A senhora não dirigia apenas o trabalho da escravaria na cozinha, mas também na fiação, na tecelagem, na costura, supervisionava a confecção de rendas e o bordado, a feitura da comida dos escravos, o serviço do pomar e do jardim, o cuidado das crianças e dos animais domésticos, providenciava tudo para o brilho das atividades comemorativas que reuniam a parentela (...)”.[4]

Com as referências ao mundo colonial, fazia referência às mulheres do convento e ao alargamento dos papéis femininos nos sectores urbanos. As monjas do Convento do Desterro na Bahia a partir de 1678, foram referenciados no texto. Os conventos também eram locais de estudo, em que as mulheres aprendiam as rezas e a “educação da agulha”.
No século XIX, segundo a autora, a instrução feminina abrangia o universo católico. Era a partir da década de 1930, que o ensino começava a expandir em algumas regiões. Uma profissão do universo feminino, ainda em número reduzido, era das professoras na Escola Normal.
Mas é da marginalização da força de trabalho feminina que está o cerne do debate, constituindo as donas de casa no exército de mão de obra que garantiam a acumulação de capital obtendo salários inferiores aos homens. Nessa perspectiva, afirmava que

“... impedida pelas condições econômicas, a mulher rompe barreiras e penetra no mundo da profissão; fá-lo, entretanto, sob o signo da inferioridade que o sexo feminino representa em relação masculino. É ocupando as posições inferiores, recebendo os salários menos compensadores, não aspirando aos postos de comando que a mulher resolve ou alivia as tensões que a inconsistência de seu país origina”[5]

Era com a ampliação do ensino e com a mudança das representações dos ideais masculinos e femininos que as mulheres da classe média inseriam-se na vida moderna e integrando-se na sociedade de classes.
Assim, a dialética entre as mulheres economicamente ativas e as donas de casa que se constituía o ponto alto da obra de Safiotti. E acrescenta a autora, no tempos de crise, as mulheres pobres eram as mais atingidas. Ao trabalho doméstico a autora o chama de “ alienado”.[6]
Destaca-se, além disso, a “mística feminina”, o universo cultural da modernidade, a “constituição da ideologia do êxito pessoal”[7], os traços psicológicos e o mito da passividade feminina. É sobretudo sobre a atividade feminina e a crítica à sua posição submissa, a luta pelo poder e o combate à discriminação  e ao que caracterizam a perspectiva das intelectuais modernas.
A ampliação dos financiamentos de pesquisas marcaram a vida acadêmica na segunda metade da década de 1970, com o estabelecimento dos programas de pós-graduação pelo país.
No contexto de crise internacional e dos movimentos sociais e culturais em defesa da liberdade de expressão, da sexualidade e da democracia, em uma coletânea de ensaios organizados por  Ann Pescatello no início do decênio, encontram-se preocupações em constituir uma linha de pesquisa na História das Mulheres na América Latina. Pesquisadores, em sua maioria norte-americanos, olhavam para as realidades femininas no contexto das Ditaduras no Brasil, Chile e Argentina, comparando com os movimentos pela igualdade de direitos nos Estados Unidos. Era nas universidades do centro econômico e político que o interesse pela História das Mulheres na América Latina parece ter ganhado inicialmente visibilidade.
Dentre os temas discutidos estavam: os conflitos entre as imagens e as realidades feminas na América Latina; os conflitos entre os interesses das mulheres das classes baixas e médias no processo de modernização; e a presença das continuidades e rupturas nos padrões de comportamento femininos em relação aos masculinos.[8]
Essa obra abarcava disciplinas além da História, como Literatura, Sociologia, Política e Demografia. E, o tema dos padrões sociais, econômicos e demográficos das mulheres latino-americanas tinham que considerados com as diferenças de classe, étnicas e de origem (geográficas e históricas).
Naquele momento, obervavam como dificuldades encontradas as raras pesquisas localizadas, as várias distinções de espaço, hierarquicas e de interesses entre as populações latino-americanas e a impossibilidade de estabelcer generalizações dada a sua diversidade.[9]
Os esteriótipos e o ideal de comportamento feminino começavam a ser criticados por Susan A. Soeiro. A autora tratava da vida monástica feminina, as freiras da Santa Clara do Desterro, localizado na cidade de Salvador. Essas mulheres de véus pretos eram membros das famílias de notáveis, geralmente, conviviam com outras parentes como irmãs, primas, tias e mesmo mães. Desse modo, longe de viverem isoladas do mundo, mantinham-se contato com familiares, emprestavam dinheiro e estabeleciam negócios.[10]
No Brasil, 1975 era o Ano Internacional da Mulher, no mesmo momento, Charles R. Boxer publicava Mary and Misogyny. O autor apontava para a atuação feminina nas diferentes regiões coloniais ibéricas do Oriente ao Ocidente e destacava as diferentes estratificações sociais, das quais as mulheres faziam parte, realizando uma obra seminal na área e  pontuando a necessidade de pesquisa na área. Um dos pontos ressaltados pelo autor era a “posição das viúvas ricas”.[11]
Rusell-Woold, no mesmo período, no artigo, Women and society in colonial Brazil realizava uma síntese da participação feminina na História do Brasil Colonial. Publicado em 1977, esse artigo merece uma tradução com notas em português, pois é mais que um trabalho historiográfico, é um documento importante da História da História das mulheres, assim como seu predecessor. É importante frisar do contato que ambos tiveram. [12]
Não apenas mulheres fizeram história de mulheres, mas na historiografia brasileira os homens também participaram desse debate. No caso, Boxer e Roosell-Wood, ambos americanistas e brasilianistas que acabaram por iniciar a temática das mulheres. Por isso, suas obras mais do que pesquisas extensas em arquivos e citações documentais, tratavam de sínteses bibliográficas, apesar de conterem sempre algumas fontes primárias para auxiliar na reconstituição histórica.
No âmbito nacional, as pesquisas acadêmica sobre as mulheres começavam no período mais rígido da ditadura brasileira, o governo Médici. E muito do debate feminista e historiográficos aconteceram no exílio.[13] Mas é na década seguinte que esses estudos se ampliam e desembocam em trabalhos de pesquisas mais pontuais.
Em suma, dentre 1969 e 1975, a História das Mulheres constituía-se como um assunto relevante. E a partir destes primeiros estudos, as pesquisas documentais, os debates historiográficos e as perspectivas foram ampliados e a área foi fundada. A partir disso, fica-se a hipótese que esses olhares modificaram o modo do fazer histórico,  pelo menos em parte, das historiadoras e dos historiadores das últimas década do século XX.


[1] Heteieth Iara Bongiovani Saffioti. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Livraria Quatro Artes, 1969.
[2] Idem, p. 39.
[3] Idem, p. 41.
[4] Idem, pp. 170-171.
[5] Idem, 324.
[6] Idem, p. 383.
[7] Idem, p. 332.
[8] Ann Pescastello (editor). Female and male in Latin América. University of Pettsburg Press, 1973, p. xi.
[9] Idem, pp. xii-xx.
[10] Susan A. Soeiro. The social and economic role of the convent: women and nuns in Colonial Bahia, 1677-1800. In: The Hispanic American Historical Review. The Duke University Press, May, vol. 54, no. 2, 1974, pp. 209-232.
[11] C.R. Boxer. A Mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros horizontes, LTDA, 1975, pp. 68-69.
[12] A. J. R. Russel- Woold. “Women and society in Colonial Brazil”. In: Journal of Latin American Studies, vol 9, no 1, 1977, pp. 1-34.
[13] Céli Regina Jardim Pinto. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 11.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

IMAGENS DAS MULHERES INDÍGENAS NOS DISCURSOS JESUÍTICOS. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA


“...as mulheres faziam grande grita geralmente chorando seus maridos, parentes, outras chorando os mortos. Ó quantas lágrimas, quantos gemidos e gritos não por culpas, não por pecados, senão por antigo e cego costume”[1]

Padre Francisco Pires

As índias brasílicas foram representadas nos textos jesuíticos como mulheres selvagens, pecadoras, por realizarem práticas de trabalho para o sustento das tribos e pelos rituais lacrimosos. No entanto, pode-se verificar que essas mulheres possuíam um importante papel na sociedade colonial no seu primeiro século, pois elas eram o sustentáculo da exploração da força de trabalho escrava.
 No decorrer da segunda metade do Quinhentos, os inacianos preocuparam-se com a catequização e a conversão da população indígena. Por isso, eles trouxeram muitas referências sobre os mitos, estereótipos e as condições de vida das mulheres gentis. Sendo assim, as informações sobre as cunhãs são de fundamental importância para se entender o processo de trabalho escravo comandado pelas mulheres senhoriais.
A partir disso, há a necessidade de desconstruir os mitos e estereótipos dos discursos jesuíticos sobre as índias, tendo-se o intuito de pensar também sobre a violência dos tratamentos senhoriais, principalmente o masculino, sobre as escravas cunhãs.
Recém chegado na América portuguesa, o jesuíta Manuel da Nóbrega parece inaugurar o estereótipo da índia pecadora, sendo o pecado entendido como natural, ou original. Segundo o jesuíta,
“Nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem muitas mulheres. E estas deixam-nas quando lhe apraz o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar. Todos se me escusam que não tem mulheres com que se casem, e começo eu que casariam se achassem com quem, e tanto, que uma mulher, ama de um homem casado que veio nesta armada, pelejavam sobre ela a quem a haveria por mulher, e diziam que lha queriam forrar. Parece-me cousa muy conveniente mandar S. A. algumas mulheres, que lá tem pouco remédio de casamento, a estas partes, ainda que fossem erradas, porque casaram todas muy bem, com tanto que não sejam tais que de todo tenham perdido a vergonha a Deus e ao mundo. E digo que todas casam muito bem, porque é terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz uma vez dura X anos aquela novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo os ramos e logo arrebentam. De maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida, e estes homens remediarão suas almas, e facilmente se povoaria a terra”. [2]

Na sua perspectiva, aos novos colonizadores não haveria a salvação das almas se continuassem a conviver com as “Evas tupinambás”.[3] Era preferível povoar a colônia com mulheres desregradas a conviver com as gentis que estavam sempre disponíveis ao homem branco colonizador. O Provincial, como era chamado, continuava a tratar as cunhãs como o Mal imposto aos povoadores no Quinhentos. Em 1552, escrevia ao rei D. João III (1502-1557), reclamando a vinda de mulheres brancas, pois achava que somente assim os colonizadores poderiam ser salvos dos costumes maléficos dos gentílicos (poligamia, ritual antropofágico).[4]
O estereótipo da índia pecadora, por um lado, se disseminou por meio do discurso jesuítico, no qual as cativas possuíam naturalmente o dom do pecado e do diabo, e estavam sempre dispostas ao desejo sexual dos senhores. De outro, os inacianos narraram os modos de vida das mulheres e das populações indígenas, demonstrando a possibilidade de salvação pela fé. Esse discurso jesuítico possuiu, portanto, um caráter extremamente ambíguo ao se referir à condição e à atuação feminina na América Portuguesa.
A representação esteriotipada da índia concubina, nua e maléfica, cristalizou-se intensamente na Capitania de São Vicente e nos campos de Piratininga.[5] As indígenas, então, levavam o senhorio ao pecado do concubinato. Para o inaciano Ambrosio Pires, essas “concubinas”, ou “amancebadas” como eram chamadas, enganavam facilmente os senhores desejando serem mancebas dos poderosos colonos brancos. [6]
Os jesuítas acabavam por propagar, portanto, a conversão dos gentios por meio das “casas” religiosas para o ensinamento das crianças indígenas, assim como as práticas dos sacramentos do batismo e do casamento. Nessa perspectiva, visavam normatizar os costumes gentílicos e cristianizá-los.[7]
Nesse processo de catequização, as índias foram o alvo principal, pois representavam o empecilho à conversão. Daí, então, a constituição das imagens negativas sobre as índias nos discursos jesuíticos. Assim como os estereótipos, o mito da mulher indígena como o objeto de alianças luso-tupi foi construído pelo discurso inaciano. Para eles, os índios entregavam suas filhas e esposas para o domínio do poder masculino, colonizador e branco, como forma de realizar alianças familiares. Nascia, assim, a idéia mítica do cunhadismo. Esse pensamento, na verdade, se constituía na falsa suposição de que para os indígenas era uma honra ser cunhado do colonizador.[8]
Na realidade, ter as índias concubinas sob o julgo e domínio era importante para os homens senhoriais. Ou seja, ter um “harém” de índias concubinas demonstrava o prestígio senhorial. Além de serem tratadas de forma objeta pelos senhores, as índias, escravas ou concubinas, representavam status e poder social dos conquistadores de terras, patrimônio e escravaria.
No discurso jesuítico, então, sedimentou-se a imagem da índia concubina e pecadora, e o mito do cunhadismo. Entretanto, como já apontado anteriormente, esse mesmo discurso acabou por relatar práticas e costumes dos colonos frente às populações indígenas. É necessário ressaltar também a resistência dessa mesma população frente ao processo de conquista realizado pelos colonizadores.
Os “Guerreiros de Cristo”, como se denominavam os jesuítas, descreviam a dissocialização das sociedades indígenas, com os conflitos internos entre os casais gentílicos. Ainda em relação às famílias indígenas, os jesuítas acabavam por propagar, portanto, a conversão dos gentios por meio das “casas” religiosas para o ensinamento das crianças indígenas, assim como as práticas dos sacramentos do batismo e do casamento. Nessa perspectiva, visavam explicar a degeneração dos costumes gentílicos e cristianizá-los.[9] De acordo com Anchieta, os curumins
“nascendo como rosas de espinhos, regenerados pela água do batismo são admitidos em as moradas eternas: porque não somente os grandes, homens e mulheres, não dão fruto, não se querendo aplicar à fee e doutrina cristã, mas ainda os mesmos mochachos, que quase criamos a nossos peitos com o leite da doutrina cristã, depois de serem já bem instruídos, seguem a seus pais primeiro em habitação e depois em costumes”[10]

Pero Correa, na capitania de São Vicente lamentava o processo de escravização dos indígenas e a sua movimentação populacional causada pelos maus tratos dos colonos. Para ele,
“Agora está todo mucho emendado, porque a 3 anos que neste collegio les hablo siempre de Dios y les tengo estrañado mucho este pecado y los demás, y no ai ia ninguma que quiera consentir lo que de antes consentia y muchas vezes se me embían muchas a quexar que los maridos las tratam mal por no les consentir sus malas costumbres. Yo las animo siempre diziéndoles que más vale que sus maridos les quiebres los hocios que tal consientan, que sufran todo lo que les hizieren por amor de Dios, delante el qual tendrán mucho merecimento y ubo tales a las quales sus maridos les dieron de puñaladas y les hizieron muchos males, y dezian claramente que bien podian matar, mas que ia no avían de consentir en aquel pecado. Los sclavos e sclavas cristianas que no savían que cosa era Dios, ya agora acuden mejor a la confisión que los hombres brancos, loores a Christo”[11]

A transformação na organaização, ou na estrutura social, da população indígena pode ter sido também causado pelas relações de violência propagadas pelos estamentos senhoriais, que eram duramente criticadas pelos inacianos. O padre Antonio Belásquez era um dos jesuítas que narrava as lamúrias das índias escravas, as quais não escapavam do poder senhorial masculino. Segundo o inaciano, “acham-se já índias escravas dos cristãos que amolestadas nas confissões que não pequem com seus senhores nem outrem ninguém, antes se deixam espancar e se oferecem a matarem-nas antes que tornarem ao pecado passado”.[12]
O padre Anchieta, conhecedor profundo dos campos de Piratininga, descrevia explicitamente as “relações ilícitas” entre os senhores e as escravas. Para ele,
“Vense em muchos, maxime em las mugeres assí libres como escravas, muy manifestos señales de virtud, principalmente em huir y detestar la luxuria, la qual como sea ommún pernice del género humano, en esta gente parece que tuve siempre no solamente imperioso señorio mas aún tyrannía mui cruel, lo qual, como sea verdad es mucho para espantar y digno de grande los quantas victorias y triunphos las maltraten con bofetadas, puñaladas y açoites por no consentir al pecado; otras despretian los dones que les oferecem los mancebos deshonestos; otras a quien por fuerça les quieren robar su castidad defiendense no solamente repugnado com la voluntad, mas aún con clamore, manos y dientes hazen huir los que las quieren forçar. Una acometida por uno y pergunta da cuya esclava fuesse, respondió. ‘De Dios soy, Dios es mi Señor, a él te conviene hablar si quieres alguna cosa de mi’. Con las quales palabras se fué el vencido y confuso, y contávalo después a otras grande admiración”[13]

Nas narrativas jesuíticas, são encontradas referências sobre a escravidão dos gentios, que parece se tornar cada vez mais intensiva no decorrer da segunda metade do Quinhentos. Nóbrega, dentro da ambigüidade do discurso jesuítico, afirmava que “...estes pecados tem sua raiz e princípio no ódio geral que os cristãos tem aos gentios, e não somente lhes alvorecem os corpos, mas também lhes alvorecem as almas, e tudo estorvam e tapam os caminhos que Cristo Nosso Senhor abriu para se elas salvarem, os quais direi a Vossa Majestade, pois já comecei a lhe dar conta da minha dor”.[14]
As velhas tupinambás, de seios caídos, que realizavam a antropofagia e o desregramento sexual, foram outra construção de imagens do período. Estudando a formação deste estereótipo na colonização, o historiador Ronald Raminelli concluía que
“as velhas índias, portanto, encarnam esse estado avançado da decrepitude, ressaltado em seu pendor para os prazeres da carne. Os desvios da sexualidade e o gosto pelo respaldo canibal constituem indícios inegáveis de sua degeneração. Os homens, por sua vez, foram poupados pelos missionários e viajantes e não eram vistos pela mesma forma. Em relação às representações do sexo masculino, as das velhas receberam uma dupla carga estereotipada: primeiro, por serem mulheres; segundo, por suas idades avançadas. Em suma, elas simbolizavam o afastamento das comunidades ameríndias da cristandade e, sobretudo, a inviabilidade de se prosseguir com os trabalhos de catequese e de colonização. Esses seres degenerados eram incapazes de participar da nova comunidade inaugurada no Novo Mundo. A irreversibilidade dos costumes e de sua moral tornava-as um entrave ao avanços da colonização. As velhas de seios caídos personificavam, nessa perspectiva, a resistência indígena contra os empreendimentos coloniais europeus”.[15]

            Para os jesuítas, tanto as mulheres senhoriais quantos as mulheres escravas indígenas deveriam ter seus costumes normatizados pelos sacramentos do batismo e do casamento. Além da religiosidade e do recato, era valorizado o trabalho na fiação e costura. Segundo o padre Rui Pereira, “as moças, com as mais mulheres, se vão depois da doutrina a fazer seus serviços e a fiar para terem pano que se cubram, das quais muitas andam já cobertas”.[16]
            O jesuíta Francisco Pires notava um interessante aspecto da atuação das cunhãs. Conforme o autor, “as mulheres faziam grande grita geralmente chorando seus maridos, parentes, outras chorando os mortos. Ó quantas lágrimas, quantos gemidos e gritos não por culpas, não por pecados, senão por antigo e cego costume”.[17] Entendendo o choro como um costume antigo, o inaciano não levava em conta o processo do colonizador e a influência desse na sociedade indígena. Possivelmente, esse fato significava a percepção por parte do gênero feminino indígena da desarticulação da sociedade indígena com o avanço colonizador, sendo possivelmente uma forma de participação dessas mulheres. Diferentemente, os homens indígenas, principalmente os tupinambás, atuavam na sociedade colonial por meio da guerra.[18]
Raramente os jesuítas se referiram às mulheres senhoriais. Em uma das raras passagens em que eram citadas as mulheres senhoriais da colônia, Anchieta enfatizava o fausto da riqueza nas vestimentas e nas jóias, como também do ideal de vida ocioso dos estamentos senhoriais e das mulheres do açúcar. Para ele,
“Os homens e mulheres portugueses, nesta terra se vestem limpamente de todas as sedas, veludos, damascos, raízes e mais panos finos como em Portugal, e nisto se tratam com fausto, máxime as mulheres que vestem muitas sedas e jóias e creio que levam nisto vantagem, por não serem tão nobres, às de Portugal e todos, assim, homens como mulheres como aqui vêm se fazem senhores e reis por terem muitos escravos e fazendas de açúcar por onde reina o ócio e lasciva e o vício da murmuração geralmente”.[19]

Enquanto as mulheres senhoriais estavam no comando da escravaria, o grupo social oposto, isto é, o das mulheres indígenas, trabalhava nas roças, no fuso e nas rocas das famílias senhoriais. A mão-de-obra escrava feminina, portanto, passava a ter uma certa especialização com a presença e atuação econômico-social das mulheres tecedeiras indígenas. Conforme o padre Luiz Pereira,“aos domingos, depois da missa, vinham as mulheres com suas esmolas de farinha e peixe, e ofereciam as diante do altar, e às vezes em tanta quantidade que não tinham os nossos, que ai residiam, em que as recolher, até os Padres lho veio a defender. E isto, afora as esmolas que cada dia traziam a casa ora uns ora outros”.[20]
Em suma, as mulheres escravas indígenas eram, por um lado, reprimidas, estupradas, escravizadas e deslocadas da sociabilidade indígena pelos senhores. Por outro, resistiam ao processo de conquista senhorial por intermédio das lágrimas, dos gritos e das reza, sendo relativo aos espaços de atuação. Além do mais, a importância histórica dessas mulheres está tanto nas relações ambíguas de domínio e de resistência, quanto na formação de um grande contingente de mão-de-obra.
Contudo, havia no discurso jesuítico uma diferença entre os gêneros nas representações construídas, sendo a feminilidade indígena entendida pela sexualidade, pelos rituais lacrimais e pela exploração do trabalho e de maneira diferente a masculinidade  dos gentis era identificada com as atividades bélicas.



[1] “Carta do P. Francisco Pires aos padres e irmãos de São Roque, Lisboa. Da Bahía, 30 de julho de 1559”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.3, 1958, p.109.
[2] “Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Simão Rodrigues, Lisboa. Da Baía, 9 de agosto de 1549”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Monumenta Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.1, 1956, pp. 119-120.
[3] Ver o artigo de Ronald Raminelli. “Eva Tupinambá". In: PRIORY DEL, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, pp. 11-43.
[4] “Carta do P. Manuel da Nóbrega a D. João Rei de Portugal. Da Baía, princípios de julho de 1552”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Monumenta Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.1, 1956, p. 344.
[5] “Carta do Ir. José de Anchieta por comissão do padre Manuel da Nóbrega ao padre Inácio de Loyola, Roma. De Piratininga, julho de 1554”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.2, 1956, pp.77-78.
[6] “...as molheres quá andão nuas e são tão roins, que andão atrás estes moços pera peccarem com elles e enganão-nos, e elles que facilmente se deixão enganar” “Carta do P. Ambrosio Pires ao P Diego de Mirón, Lisboa. Da Baia, 6 de junho de 1555. Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.2, 1956, p. 230.
[7] “Carta do Ir. José de Anchieta ao Provinvial de Portugal. De Piratininga, fim de dezembro de 1556”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 2, 1956, p. 313.
[8] “Carta do Ir. José de Anchieta ao padre Diogo Laimes, Roma. De São Vicente, 8 de janeiro de 1565” In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 4, 1960, p. 129.
[9] Para a visão dos índios como “seres degenerados” ver Raminelli , Op. Cit., pp. 40-43.
[10] “Carta do Ir. José de Anchieta ao Provinvial de Portugal. De Piratininga, fim de dezembro de 1556”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 2, 1956, p. 313.
[11] “Carta do Ir. Pero Correa ao Simão Rodrigues, Lisboa. Da capitania de São Vicente, 10 de março de 1553”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 4, 1960, p. 438-439.
[12] “Carta do quadrimestre de janeiro até abril de 1556, pelo Ir. Antonio Belázquez. Da Bahia, maio de 1556”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 2, 1956, p. 273.
[13] “Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes, Roma. De São Vicente, 1 de junho de 1560. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 4, 1960, pp. 438-439.
[14] “Carta do P. Manuel da Nóbrega a Tomé de Souza, antigo governador do Brasil, Lisboa. Da Bahia, 5 de julho de 1559”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 4, 1960, pp. 256-257.
[15] Ronald Raminelli, Op. Cit., p. 43.
[16] “Carta do P. Luiz Pereira aos padres e irmãs de Portugal. Da Bahia, 15 de setembro de 1560”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 3, 1958, p.294.
[17] “Carta do P. Francisco Pires aos padres e irmãos de São Roque, Lisboa. Da Bahía, 30 de julho de 1559”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, v.3, 1958, p.109.
[18] Sobre o papel da guerra do gênero masculino tupinambá ver Florestan Fernandes. A função da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Livraria Pioneira, 1970, pp. 147-191.
[19] Joseph de Anchieta. Cartas, informações e fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 426.
[20]  “Carta do P. Luiz Pereira aos padres e irmãs de Portugal. Da Bahia, 15 de setembro de 1560”. In: Serafim Leite. Monumenta Brasiliae. Historica Societatis Iesu. Roma/ Coimbra, vol. 3, 1958, p. 302.

domingo, 1 de julho de 2012

A FORMAÇÃO DE UM CAMPO: O INÍCIO DA HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL (1930-1970). IGOR RENATO MACHADO DE LIMA


Na obra de Alcântara Machado, Vida e morte do bandeirante, publicada em 1929, o autor analisa pela primeira vez os inventários post mortem e testamentos paulistas.  Debatendo com Olivera Viana, o historiador de São Paulo colonial expõe as difíceis condições de existência dos bandeirantes paulistas que viviam na pobreza, distantes do centro Metropolitano. Com uma abordagem descritiva dessas fontes, compõe um quadro do cotidiano dos bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A interiorização e o isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma sociedade pobre, com baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era relativizada com a presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do mobiliário, o qual tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da mineração.[1]
Em um contexto de transformações lentas na vida material, as mulheres bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos bens e escravos. Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos próprios filhos e da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos, porém, a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça, penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da colônia”. [2]
Para Alcântara Machado, a família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto. Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do patriciado”.[3]

Nessa perspectiva, o poder inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela. “Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua educação”. Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e o matrimônio.[4]
Ao lado da família legítima, estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo Machado possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e faceira”, estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o historiador, o português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de Deus..." [5]
 Por outro lado, as escravas faziam parte do botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.[6]

Em relação às mulheres das famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". [7] O espaço feminino era reservado ao lar e à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza; elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.[8]
            Na obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros, mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho. Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata, adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
            Para as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano. É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha, contra a penetração das setas inimigas”.[9]

Na vila, fazia-se importante o indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada. A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650, quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote; outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.[10]
Diferentemente, as roupas femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.[11] Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende vasquinha, saia de roda exuberante, franzida na cintura; e, ajustado ao busto, o corpinho; e, por cima deste, o gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio, casacão rabilongo de mangas perdidas, com abertura ao nível dos cotovelos, dando passagem e liberdade aos braços; e, cobrir tudo isso, como se tudo isso não bastasse, o manto. Com muito menos se supõem vestidas as damas da atualidade. E têm razão. Entre outros motivos, porque, parecendo obedecer à intimação das modas peregrinas, se inspiram de fato no figurino guaianás das filhas de Caiubi e Tibiriçá”[12]

Apesar de não haver variação dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o “cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em quarenta mil réis.[13] Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre todos os estamentos. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas de utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das “senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada. Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras pulseiras e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas de d. Ana de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado de verde, branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior.  Para essas mulheres eram reservados os rosários com cruzes de ouro ou de prata.[14]
Distantes da cultura erudita, sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos incidentes dessa natureza o mais curioso é o que se desenvolve no inventário de Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento Pires Ribeiro. Curioso, não pela substância jurídica do caso, mas pela qualidade das pessoas em lide. Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça de Deus, tem e possui com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem necessite alguma cousa, pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da inventariada, se lhe defira a curadoria dos netos. Não está por isso o capitão Fernão Pais Leme, tio dos órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela franqueza que respira, o protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa por acentuar que a suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e muitos anos, e tão doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não pode fazer sem ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os sobrinhos com sua gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como no mais, e também na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e de raiz, não tem outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de outra forma, os órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.[15]

Essa senhora fora a principal protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par, ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos debulhados em lágrimas. A turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do matador, se deixa vencer e desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a devassa. Concluído o processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para levá-lo à Bahia, onde deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do sertão bravio, Inez Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do filho. Mas antes de lá chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam, resolvem executá-lo covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no mar nas alturas da Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar a sua criatura, desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série e infindável de conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um século ensangüenta e sobressalta a nossa terra”.[16]

Enfim, as senhoras “matronas”[17] eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo.  Nessa perspectiva, entendeu-se que as mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia,  em momentos de exceção, existiam algumas mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando, ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações das senhoras paulistas.
A condição feminina no interior das relações familiares também foi desenvolvida por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime patriarcal. Em sua obra, publicada pela primeira vez em 1933, trata a família como eixo temático e interpretativo para compreender a realidade colonial e construir um sistema, no qual o chefe familiar liderava as relações de poder econômico e político. Ou seja, era no entorno do senhor de engenho e da sua família que se constituía o núcleo fundador colonial. Dessa forma, a Família passava a ser a instituição mais importante da História Colonial Brasileira.
Sob a perspectiva do patriarcalismo, foram desenvolvidos os temas da lavoura canavieira, da escravidão, das relações de solidariedade, dos núcleos populacionais e administrativos, das tensões sociais, do cotidiano. Todo o contexto social, político e econômico deveriam girar ao redor do governo familiar, senhorial e patriarcal.
Nessa “civilização patriarcal”[18], as mulheres, de uma maneira geral, eram compreendidas como sujeitas e subjugadas ao poder do chefe e patriarca, e, conseqüentemente, não possuíam nenhum campo de atuação. Ao descrever a influência da família indígena, o autor acabou difundindo imagens das índias concubinas. Assim, sedimenta, na historiografia colonial, a visão da índia "passiva", que está sempre à disposição do senhor colonizador branco. Segundo o mesmo,
"o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixavam-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho".[19]

Para Freyre, as mulheres indígenas representavam a transmissão da cultura indígena na sociedade colonial. Entretanto, essa perspectiva acabou por cristalizar imagens estereotipadas e idealizadas das sociedades indígenas e coloniais. As índias, na visão freiriana, se "ofereciam ao amplexo sexual dos brancos"[20], pois haveria "uma espécie de sadismo do branco e masoquismo da índia ou negra que teria predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio".[21]
Outro mito produzido pelo historiador do patriarcalismo foi o da “democracia social”, originária das relações sexuais entre os senhores e as cunhãs e africanas. As indígenas, portanto, além de serem consideradas como submissas, eram responsáveis pela degradação moral dos conquistadores. Na realidade, essa perspectiva de Freyre da condição feminina na colônia baseava-se, centralmente, na sua leitura dos jesuítas do período quinhentista.
Tanto Machado quanto Freyre reconstruíram o mito do cunhadismo, entendendo que as sociedades indígenas entregavam suas mulheres como concubinas aos senhores colonizadores brancos. Os senhores coloniais é que constituíam seu domínio sobre as sociedades indígenas e acabavam por oprimi-las pela força e controle. Dessa maneira, os homens das camadas senhoriais adquiriam prestígio social e militar.
Apesar da sua significativa contribuição à temática da família e da autoridade do poder patriarcal, Freyre interpretou a atuação das mulheres como submissa, enclausurada e totalmente dominadas pelo poder do patriarca. Além do mais, esses autores focalizaram o papel da família, sendo esta o eixo temático para a interpretação da História das Mulheres, que se desenvolveu posteriormente.[22] Para ambos os autores o núcleo familiar era a o eixo explicativo e interpretativo da sociedade colonial. Isto é, a família, entendida como ponto de “apoio” e de “organização”, representava o centro, no qual todas as outras instituições e relações eram subjugadas. Além disso, as senhoras eram ausentes das atividades de trabalho e de comércio, daí “o mito da dona ausente”, descrito por Maria Odila Leite da Silva Dias.[23]
Diferentemente das interpretações anteriores, Adalzira Bittencourt, em A mulher paulista na História, construiu de forma épica o mito da mulher bandeirante, heroína de raça branca. Sua obra, produzida na década de 1950, nas comemorações do “Quarto Centenário” da História de São Paulo, apontava para uma outra temática e inseria a História das Mulheres no mundo colonial. Iniciava o seu estudo com a narrativa do encontro entre as índias idealizadas e os colonos civilizados. “Os rapazes ficavam encantados com a notícia das moças morenas, de corpos cor de cobre, talhados em curvas sedutoras, as quais andavam inteiramente nuas e belas...”, dizia logo nas primeiras linhas.[24]
O amor e a formação de família entre a índia Batira e João Ramalho era entendido sob uma ótica idealizada. A partir desse novo núcleo a sociedade paulista encontrava as suas origens, que eram desmembradas com a formação da “mulher civilizada branca”.[25] E, dentre as mulheres senhoriais, destaca-se a figura de Izabel Dias que, conforme a autora,
“deve descerrar as cortinas do pórtico da História da Mulher Paulista, pois que o sangue vem passando de geração em geração nas veias de gente de nossa terra, formando os bandeirantes que alargaram as fronteiras  da Pátria, sangue que ainda hoje circula nas veias dos estadistas, dos agricultores, dos industriais, dos poetas, dos operários, e da juventude gloriosa de São Paulo”[26]
No discurso de Aldazira, a mulher bandeirante ganhava ares de senhora matrona e atinge o pedestal, juntamente com os homens bandeirantes, ou a “Raça de Gigantes”, na “Era das Bandeiras”.  Nessa sociedade, a condição feminina era auxiliar o homem no avanço civilizatório. E, assim, estava formulado o mito da boa mãe e a imagem da passividade e do caráter cordato da mulher.
“As mulheres são matronas respeitáveis que comungam com os maridos no anseio de dilatar as fronteiras do Brasil.
Dir-se-ia que o entusiasmo era gerado na alma das mulheres, como no laboratório do sagrado de seus ventres é que se formava a raça de heróis e sertanistas ousados. Como poderá a História da bandeirologia esquecer o nome das mães dos titãs?
Quantos nomes interessantes poderíamos ter guardado, não fosse o hábito de menosprezar as cousas e atos femininos, encobrindo com o descaso os nomes de que eram portadores?
A violeta se esconde sob a folhagem, mas o perfume denuncia o encanto.
As bandeirantes ficaram esquecidas na voz da história, mas os feitos de outra denunciam e põem à mostra o valor daquelas que foram sufocadas no esquecimento absoluto”.[27]

Originária de São Paulo, a mulher bandeirante, formadora da raça paulista, era o modelo ideal feminino para a Pátria, pois fazia parte da sua natureza a inteligência, a bravura e o patriotismo.[28]
Tal imagem feminina se complementa com os estudos das matronas como Ana Pimentel, senhora fidalga e rica, que realizava o sacrifício de trabalhar nas terras de São Vicente para a glorificação da Nova Pátria. Aldazira ainda afirma que
“em chegando ao Brasil, no desconforto da habitação, Ana Pimentel, que vivia no solar dos Duques de Bragança, tem agora por morada uma ligeira habitação de palha. Que importa? A moça palaciana vai se transformando. Trabalha, levanta cedo para ver as suas plantas, atende o gentio; quer cuidar dos homens do mar, dos flâmulos. Manda construir a casa onde viveu, em São Vicente, o pequeno burgo fundado a primeira vez por Cosme Fernandes, e aí vê crescer a cidadezinha com a ajuda dos jesuítas e dos colonos que ali viviam ou os que com ela vieram da Metrópole. Tudo fez para somar as dificuldades encontradas”[29]

Catarina de Lemos, outra mulher estereotipada, era a “mãe branca e civilizada de gente nobre da terra de Bento Gonçalves, e lá foi para o sul a alma bandeirante, nas saias e num coração de mulher”.[30] Entretanto, outras imagens menos cristalizadas são formadas, como no caso da cigana Francisca Rodrigues, dona de um comércio na vila de São Paulo. Também se destacava Dona Catarina de Siqueira, que era uma das poucas letradas e cultas, proprietária de uma biblioteca considerável.
O texto de Bittencourt destaca-se pelas representações de seu próprio gênero e pela repercussão de que as mulheres no período colonial “cuidavam da família e dos negócios e também das lavouras nascentes”.[31]
Enquanto as abordagens de Alcântara Machado e Freyre colocaram a atuação feminina no interior da família, sob o domínio e a ótica do senhor patriarcal, Aldazira Bitencourt inseriu o papel do feminino subordinado ao poder do Estado. A autora, portanto, submeteu a relação do gênero feminino ao poder da “Pátria”, quando afirmava que as mulheres bandeirantes “alargavam as fronteiras do Brasil”. 
Desse moda, essa historiografia realizou a formação do estereótipo das mulheres totalmente submissas ao sistema patriarcal e das índias sempre disponíveis e sexualmente ativas. Também produziu mitos como o da matrona bandeirante, da mulher enclausurada e da dona ausente das atividades de trabalho. Entretanto, marcou significativamente o debate historiográfico e ainda pode ser retomada para o aprofundamento de questões como a opressão das mulheres em relação ao domínio do senhor colonial, e as condições de vida material das famílias e dos gêneros na América Portuguesa.
No caso da História das Mulheres no Brasil colonial, devem ser levadas em consideração as maneiras de atuação no interior da família patriarcal e senhorial. Essa questão foi abordada por Antonio Cândido em um artigo da década de 1950, no qual destacou que as mulheres adquiriram um espaço no interior da família e sob a subordinação do poder "quase absoluto" do domínio patriarcal.[32] Isto é, mesmo havendo amplos poderes do “pater familias”, as mulheres senhoriais paulistas desenvolveram um modo de vida, no qual tiveram a possibilidade de atuar nas redes familiares, assim como na economia.[33]
A partir dessa constatação o papel das mulheres no interior da família passa a ser mais valorizado e as pesquisas documentais começaram a ter maior amplitude. Abordando uma temática da História das Mulheres, até então não estudada, Charles R. Boxer,  em  A Mulher na expansão ultramarina ibérica, realizou uma pesquisa inicial na década de 1970. O autor também aponta para a atuação femininas nas diferentes regiões coloniais ibéricas do Oriente ao Ocidente e destaca as diferentes estratificações sociais, das quais as mulheres faziam parte. Referindo-se à América Portuguesa, ressaltou que
“as mulheres tiveram um papel social importante fora do próprio lar, numa sociedade machista como, sem dúvida, era a sociedade colonial brasileira, quaisquer que sejam as nuances ou modificações reveladas pela futura investigação histórica, a posição das viúvas ricas não sairá diminuída”.[34]

Mas é com Rusell-Woold, no mesmo período, no artigo, Women and society in colonial Brazil, que o estudo da História das Mulheres no Brasil foi inaugurado. O autor começou, pela primeira vez, a desconstruir uma série de mitos e estereótipos em relação à condição da mulher, e realizou um primeiro panorama da história da participação feminina na colônia. A partir desse trabalho, outros estudos foram desenvolvidos. [35]


Em suma, é interessante acrescentar que a escrita da História das Mulheres no Brasil teve seu início, em grande parte, a partir dos estudos de autores ainda da primeira metade do século XX, bem como de americanistas como no caso de C. R. Boxer e de Rusell-Wood. Nesse sentido, a historiografia atual deve muito a estes trabalhos, devendo analisar a recepção dessas obras e aprofundar os temas apontados pelos autores.

[1] Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp. 65-74.
[2] Idem, p. 67.
[3] Idem, p. 151.
[4] Idem, p. 153.
[5] Idem, p. 157.                                                                                                                              
[6] Idem, p. 156.
[7] Idem, p. 94.
[8] Idem, p. 77.
[9] Idem, pp. 240-241.
[10] Idem, p. 88.
[11] Idem, p. 89.
[12] Idem, pp. 89-90.
[13] Idem, pp. 90-91.
[14] Idem, p. 94.
[15] Idem, p. 121.
[16] Idem, pp. 223-224.
[17] Idem, p. 161.
[18] Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de janeiro; Brasília, José Olympio; Instituto nacional do Livro, 1980, p. 46.
[19] Idem, p. 93.
[20] Idem, p. 47.
[21] Ibidem, p. 91.
[22] Sobre a contribuição historiográfica de Gilberto Freyre ver Eni de Mesquita Samara. Família, mulheres e povoamento. (São Paulo século XVII). Bauru, SP: EDUSC, 2003, pp. 75-81.
[23] Ver Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, (1ª edição, 1984) 1995, pp. 99-116.
[24] Aldaíza Bittencourt. A mulher paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, S.A., 1954, p. 15.
[25] Idem, p.38.
[26] Idem, p.17.
[27] Idem, p. 75.
[28] Idem, pp. 80-91.
[29] Idem, pp. 26-31.
[30] Idem, p. 43.
[31] Idem, p. 45.
[32]Antonio Cândido. The Brazilian Family. In: SMITH, T. Lynn. Brazil Portait of half continent. New York, USA: The Dryden Press, 1951.
[33] Sobre a divisão eqüitativa do patrimônio em relação aos conjugues ver Eni de Mesquita Samara. Família, mulheres e povoamento. São Paulo: EDUSC, 2003.
[34] C.R. Boxer. A Mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros horizontes, LTDA, 1975, pp. 68-69.
[35] A. J. R. Russel- Woold. “Women and society in Colonial Brazil”. In: Journal of Latin American Studies, vol 9, no 1, 1977, pp. 1-34.