domingo, 1 de julho de 2012

A FORMAÇÃO DE UM CAMPO: O INÍCIO DA HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL (1930-1970). IGOR RENATO MACHADO DE LIMA


Na obra de Alcântara Machado, Vida e morte do bandeirante, publicada em 1929, o autor analisa pela primeira vez os inventários post mortem e testamentos paulistas.  Debatendo com Olivera Viana, o historiador de São Paulo colonial expõe as difíceis condições de existência dos bandeirantes paulistas que viviam na pobreza, distantes do centro Metropolitano. Com uma abordagem descritiva dessas fontes, compõe um quadro do cotidiano dos bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A interiorização e o isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma sociedade pobre, com baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era relativizada com a presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do mobiliário, o qual tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da mineração.[1]
Em um contexto de transformações lentas na vida material, as mulheres bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos bens e escravos. Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos próprios filhos e da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos, porém, a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça, penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da colônia”. [2]
Para Alcântara Machado, a família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto. Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do patriciado”.[3]

Nessa perspectiva, o poder inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela. “Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua educação”. Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e o matrimônio.[4]
Ao lado da família legítima, estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo Machado possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e faceira”, estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o historiador, o português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de Deus..." [5]
 Por outro lado, as escravas faziam parte do botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.[6]

Em relação às mulheres das famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". [7] O espaço feminino era reservado ao lar e à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza; elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.[8]
            Na obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros, mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho. Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata, adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
            Para as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano. É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha, contra a penetração das setas inimigas”.[9]

Na vila, fazia-se importante o indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada. A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650, quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote; outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.[10]
Diferentemente, as roupas femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.[11] Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende vasquinha, saia de roda exuberante, franzida na cintura; e, ajustado ao busto, o corpinho; e, por cima deste, o gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio, casacão rabilongo de mangas perdidas, com abertura ao nível dos cotovelos, dando passagem e liberdade aos braços; e, cobrir tudo isso, como se tudo isso não bastasse, o manto. Com muito menos se supõem vestidas as damas da atualidade. E têm razão. Entre outros motivos, porque, parecendo obedecer à intimação das modas peregrinas, se inspiram de fato no figurino guaianás das filhas de Caiubi e Tibiriçá”[12]

Apesar de não haver variação dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o “cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em quarenta mil réis.[13] Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre todos os estamentos. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas de utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das “senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada. Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras pulseiras e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas de d. Ana de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado de verde, branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior.  Para essas mulheres eram reservados os rosários com cruzes de ouro ou de prata.[14]
Distantes da cultura erudita, sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos incidentes dessa natureza o mais curioso é o que se desenvolve no inventário de Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento Pires Ribeiro. Curioso, não pela substância jurídica do caso, mas pela qualidade das pessoas em lide. Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça de Deus, tem e possui com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem necessite alguma cousa, pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da inventariada, se lhe defira a curadoria dos netos. Não está por isso o capitão Fernão Pais Leme, tio dos órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela franqueza que respira, o protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa por acentuar que a suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e muitos anos, e tão doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não pode fazer sem ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os sobrinhos com sua gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como no mais, e também na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e de raiz, não tem outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de outra forma, os órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.[15]

Essa senhora fora a principal protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par, ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos debulhados em lágrimas. A turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do matador, se deixa vencer e desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a devassa. Concluído o processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para levá-lo à Bahia, onde deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do sertão bravio, Inez Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do filho. Mas antes de lá chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam, resolvem executá-lo covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no mar nas alturas da Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar a sua criatura, desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série e infindável de conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um século ensangüenta e sobressalta a nossa terra”.[16]

Enfim, as senhoras “matronas”[17] eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo.  Nessa perspectiva, entendeu-se que as mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia,  em momentos de exceção, existiam algumas mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando, ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações das senhoras paulistas.
A condição feminina no interior das relações familiares também foi desenvolvida por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime patriarcal. Em sua obra, publicada pela primeira vez em 1933, trata a família como eixo temático e interpretativo para compreender a realidade colonial e construir um sistema, no qual o chefe familiar liderava as relações de poder econômico e político. Ou seja, era no entorno do senhor de engenho e da sua família que se constituía o núcleo fundador colonial. Dessa forma, a Família passava a ser a instituição mais importante da História Colonial Brasileira.
Sob a perspectiva do patriarcalismo, foram desenvolvidos os temas da lavoura canavieira, da escravidão, das relações de solidariedade, dos núcleos populacionais e administrativos, das tensões sociais, do cotidiano. Todo o contexto social, político e econômico deveriam girar ao redor do governo familiar, senhorial e patriarcal.
Nessa “civilização patriarcal”[18], as mulheres, de uma maneira geral, eram compreendidas como sujeitas e subjugadas ao poder do chefe e patriarca, e, conseqüentemente, não possuíam nenhum campo de atuação. Ao descrever a influência da família indígena, o autor acabou difundindo imagens das índias concubinas. Assim, sedimenta, na historiografia colonial, a visão da índia "passiva", que está sempre à disposição do senhor colonizador branco. Segundo o mesmo,
"o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixavam-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho".[19]

Para Freyre, as mulheres indígenas representavam a transmissão da cultura indígena na sociedade colonial. Entretanto, essa perspectiva acabou por cristalizar imagens estereotipadas e idealizadas das sociedades indígenas e coloniais. As índias, na visão freiriana, se "ofereciam ao amplexo sexual dos brancos"[20], pois haveria "uma espécie de sadismo do branco e masoquismo da índia ou negra que teria predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio".[21]
Outro mito produzido pelo historiador do patriarcalismo foi o da “democracia social”, originária das relações sexuais entre os senhores e as cunhãs e africanas. As indígenas, portanto, além de serem consideradas como submissas, eram responsáveis pela degradação moral dos conquistadores. Na realidade, essa perspectiva de Freyre da condição feminina na colônia baseava-se, centralmente, na sua leitura dos jesuítas do período quinhentista.
Tanto Machado quanto Freyre reconstruíram o mito do cunhadismo, entendendo que as sociedades indígenas entregavam suas mulheres como concubinas aos senhores colonizadores brancos. Os senhores coloniais é que constituíam seu domínio sobre as sociedades indígenas e acabavam por oprimi-las pela força e controle. Dessa maneira, os homens das camadas senhoriais adquiriam prestígio social e militar.
Apesar da sua significativa contribuição à temática da família e da autoridade do poder patriarcal, Freyre interpretou a atuação das mulheres como submissa, enclausurada e totalmente dominadas pelo poder do patriarca. Além do mais, esses autores focalizaram o papel da família, sendo esta o eixo temático para a interpretação da História das Mulheres, que se desenvolveu posteriormente.[22] Para ambos os autores o núcleo familiar era a o eixo explicativo e interpretativo da sociedade colonial. Isto é, a família, entendida como ponto de “apoio” e de “organização”, representava o centro, no qual todas as outras instituições e relações eram subjugadas. Além disso, as senhoras eram ausentes das atividades de trabalho e de comércio, daí “o mito da dona ausente”, descrito por Maria Odila Leite da Silva Dias.[23]
Diferentemente das interpretações anteriores, Adalzira Bittencourt, em A mulher paulista na História, construiu de forma épica o mito da mulher bandeirante, heroína de raça branca. Sua obra, produzida na década de 1950, nas comemorações do “Quarto Centenário” da História de São Paulo, apontava para uma outra temática e inseria a História das Mulheres no mundo colonial. Iniciava o seu estudo com a narrativa do encontro entre as índias idealizadas e os colonos civilizados. “Os rapazes ficavam encantados com a notícia das moças morenas, de corpos cor de cobre, talhados em curvas sedutoras, as quais andavam inteiramente nuas e belas...”, dizia logo nas primeiras linhas.[24]
O amor e a formação de família entre a índia Batira e João Ramalho era entendido sob uma ótica idealizada. A partir desse novo núcleo a sociedade paulista encontrava as suas origens, que eram desmembradas com a formação da “mulher civilizada branca”.[25] E, dentre as mulheres senhoriais, destaca-se a figura de Izabel Dias que, conforme a autora,
“deve descerrar as cortinas do pórtico da História da Mulher Paulista, pois que o sangue vem passando de geração em geração nas veias de gente de nossa terra, formando os bandeirantes que alargaram as fronteiras  da Pátria, sangue que ainda hoje circula nas veias dos estadistas, dos agricultores, dos industriais, dos poetas, dos operários, e da juventude gloriosa de São Paulo”[26]
No discurso de Aldazira, a mulher bandeirante ganhava ares de senhora matrona e atinge o pedestal, juntamente com os homens bandeirantes, ou a “Raça de Gigantes”, na “Era das Bandeiras”.  Nessa sociedade, a condição feminina era auxiliar o homem no avanço civilizatório. E, assim, estava formulado o mito da boa mãe e a imagem da passividade e do caráter cordato da mulher.
“As mulheres são matronas respeitáveis que comungam com os maridos no anseio de dilatar as fronteiras do Brasil.
Dir-se-ia que o entusiasmo era gerado na alma das mulheres, como no laboratório do sagrado de seus ventres é que se formava a raça de heróis e sertanistas ousados. Como poderá a História da bandeirologia esquecer o nome das mães dos titãs?
Quantos nomes interessantes poderíamos ter guardado, não fosse o hábito de menosprezar as cousas e atos femininos, encobrindo com o descaso os nomes de que eram portadores?
A violeta se esconde sob a folhagem, mas o perfume denuncia o encanto.
As bandeirantes ficaram esquecidas na voz da história, mas os feitos de outra denunciam e põem à mostra o valor daquelas que foram sufocadas no esquecimento absoluto”.[27]

Originária de São Paulo, a mulher bandeirante, formadora da raça paulista, era o modelo ideal feminino para a Pátria, pois fazia parte da sua natureza a inteligência, a bravura e o patriotismo.[28]
Tal imagem feminina se complementa com os estudos das matronas como Ana Pimentel, senhora fidalga e rica, que realizava o sacrifício de trabalhar nas terras de São Vicente para a glorificação da Nova Pátria. Aldazira ainda afirma que
“em chegando ao Brasil, no desconforto da habitação, Ana Pimentel, que vivia no solar dos Duques de Bragança, tem agora por morada uma ligeira habitação de palha. Que importa? A moça palaciana vai se transformando. Trabalha, levanta cedo para ver as suas plantas, atende o gentio; quer cuidar dos homens do mar, dos flâmulos. Manda construir a casa onde viveu, em São Vicente, o pequeno burgo fundado a primeira vez por Cosme Fernandes, e aí vê crescer a cidadezinha com a ajuda dos jesuítas e dos colonos que ali viviam ou os que com ela vieram da Metrópole. Tudo fez para somar as dificuldades encontradas”[29]

Catarina de Lemos, outra mulher estereotipada, era a “mãe branca e civilizada de gente nobre da terra de Bento Gonçalves, e lá foi para o sul a alma bandeirante, nas saias e num coração de mulher”.[30] Entretanto, outras imagens menos cristalizadas são formadas, como no caso da cigana Francisca Rodrigues, dona de um comércio na vila de São Paulo. Também se destacava Dona Catarina de Siqueira, que era uma das poucas letradas e cultas, proprietária de uma biblioteca considerável.
O texto de Bittencourt destaca-se pelas representações de seu próprio gênero e pela repercussão de que as mulheres no período colonial “cuidavam da família e dos negócios e também das lavouras nascentes”.[31]
Enquanto as abordagens de Alcântara Machado e Freyre colocaram a atuação feminina no interior da família, sob o domínio e a ótica do senhor patriarcal, Aldazira Bitencourt inseriu o papel do feminino subordinado ao poder do Estado. A autora, portanto, submeteu a relação do gênero feminino ao poder da “Pátria”, quando afirmava que as mulheres bandeirantes “alargavam as fronteiras do Brasil”. 
Desse moda, essa historiografia realizou a formação do estereótipo das mulheres totalmente submissas ao sistema patriarcal e das índias sempre disponíveis e sexualmente ativas. Também produziu mitos como o da matrona bandeirante, da mulher enclausurada e da dona ausente das atividades de trabalho. Entretanto, marcou significativamente o debate historiográfico e ainda pode ser retomada para o aprofundamento de questões como a opressão das mulheres em relação ao domínio do senhor colonial, e as condições de vida material das famílias e dos gêneros na América Portuguesa.
No caso da História das Mulheres no Brasil colonial, devem ser levadas em consideração as maneiras de atuação no interior da família patriarcal e senhorial. Essa questão foi abordada por Antonio Cândido em um artigo da década de 1950, no qual destacou que as mulheres adquiriram um espaço no interior da família e sob a subordinação do poder "quase absoluto" do domínio patriarcal.[32] Isto é, mesmo havendo amplos poderes do “pater familias”, as mulheres senhoriais paulistas desenvolveram um modo de vida, no qual tiveram a possibilidade de atuar nas redes familiares, assim como na economia.[33]
A partir dessa constatação o papel das mulheres no interior da família passa a ser mais valorizado e as pesquisas documentais começaram a ter maior amplitude. Abordando uma temática da História das Mulheres, até então não estudada, Charles R. Boxer,  em  A Mulher na expansão ultramarina ibérica, realizou uma pesquisa inicial na década de 1970. O autor também aponta para a atuação femininas nas diferentes regiões coloniais ibéricas do Oriente ao Ocidente e destaca as diferentes estratificações sociais, das quais as mulheres faziam parte. Referindo-se à América Portuguesa, ressaltou que
“as mulheres tiveram um papel social importante fora do próprio lar, numa sociedade machista como, sem dúvida, era a sociedade colonial brasileira, quaisquer que sejam as nuances ou modificações reveladas pela futura investigação histórica, a posição das viúvas ricas não sairá diminuída”.[34]

Mas é com Rusell-Woold, no mesmo período, no artigo, Women and society in colonial Brazil, que o estudo da História das Mulheres no Brasil foi inaugurado. O autor começou, pela primeira vez, a desconstruir uma série de mitos e estereótipos em relação à condição da mulher, e realizou um primeiro panorama da história da participação feminina na colônia. A partir desse trabalho, outros estudos foram desenvolvidos. [35]


Em suma, é interessante acrescentar que a escrita da História das Mulheres no Brasil teve seu início, em grande parte, a partir dos estudos de autores ainda da primeira metade do século XX, bem como de americanistas como no caso de C. R. Boxer e de Rusell-Wood. Nesse sentido, a historiografia atual deve muito a estes trabalhos, devendo analisar a recepção dessas obras e aprofundar os temas apontados pelos autores.

[1] Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp. 65-74.
[2] Idem, p. 67.
[3] Idem, p. 151.
[4] Idem, p. 153.
[5] Idem, p. 157.                                                                                                                              
[6] Idem, p. 156.
[7] Idem, p. 94.
[8] Idem, p. 77.
[9] Idem, pp. 240-241.
[10] Idem, p. 88.
[11] Idem, p. 89.
[12] Idem, pp. 89-90.
[13] Idem, pp. 90-91.
[14] Idem, p. 94.
[15] Idem, p. 121.
[16] Idem, pp. 223-224.
[17] Idem, p. 161.
[18] Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de janeiro; Brasília, José Olympio; Instituto nacional do Livro, 1980, p. 46.
[19] Idem, p. 93.
[20] Idem, p. 47.
[21] Ibidem, p. 91.
[22] Sobre a contribuição historiográfica de Gilberto Freyre ver Eni de Mesquita Samara. Família, mulheres e povoamento. (São Paulo século XVII). Bauru, SP: EDUSC, 2003, pp. 75-81.
[23] Ver Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, (1ª edição, 1984) 1995, pp. 99-116.
[24] Aldaíza Bittencourt. A mulher paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, S.A., 1954, p. 15.
[25] Idem, p.38.
[26] Idem, p.17.
[27] Idem, p. 75.
[28] Idem, pp. 80-91.
[29] Idem, pp. 26-31.
[30] Idem, p. 43.
[31] Idem, p. 45.
[32]Antonio Cândido. The Brazilian Family. In: SMITH, T. Lynn. Brazil Portait of half continent. New York, USA: The Dryden Press, 1951.
[33] Sobre a divisão eqüitativa do patrimônio em relação aos conjugues ver Eni de Mesquita Samara. Família, mulheres e povoamento. São Paulo: EDUSC, 2003.
[34] C.R. Boxer. A Mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros horizontes, LTDA, 1975, pp. 68-69.
[35] A. J. R. Russel- Woold. “Women and society in Colonial Brazil”. In: Journal of Latin American Studies, vol 9, no 1, 1977, pp. 1-34.

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