segunda-feira, 23 de julho de 2012

A ESCRITA DA HISTÓRIA DAS MULHERES: A FORMAÇÃO DE UM CAMPO. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA



Na década de 1960, poucos trabalhos estudavam o assunto da ocupação feminina. Saffioti, sob orientação de Florestan Fernandes, que fora aluna no primeiro semestre de 1958, estudava em tese de livre-docência as mulheres na sociedade de classes.[1] Preocupada com o “processo de marginalização da mulher do sistema produtivo...”[2], enfocava a “massa femininas no trabalho industrial” e na “exploração do trabalho feminino”[3]. Símbolo de uma modernidade intelectual interna da sociedade paulista da época, o seu trabalho obteve uma recepção importante na historiografia posterior, levando em consideração temas pesquisados posteriormente, como a “moderna vida feminina”, o uso de anti concepcionais, os cuidados com os filhos, o trabalho doméstico, a relação do trabalho feminino com os modos de produção.
No sentido histórico, a autora construía a imagem da mulher branca como supervisora das atividades domésticas. Segundo a mesma,
“ A senhora não dirigia apenas o trabalho da escravaria na cozinha, mas também na fiação, na tecelagem, na costura, supervisionava a confecção de rendas e o bordado, a feitura da comida dos escravos, o serviço do pomar e do jardim, o cuidado das crianças e dos animais domésticos, providenciava tudo para o brilho das atividades comemorativas que reuniam a parentela (...)”.[4]

Com as referências ao mundo colonial, fazia referência às mulheres do convento e ao alargamento dos papéis femininos nos sectores urbanos. As monjas do Convento do Desterro na Bahia a partir de 1678, foram referenciados no texto. Os conventos também eram locais de estudo, em que as mulheres aprendiam as rezas e a “educação da agulha”.
No século XIX, segundo a autora, a instrução feminina abrangia o universo católico. Era a partir da década de 1930, que o ensino começava a expandir em algumas regiões. Uma profissão do universo feminino, ainda em número reduzido, era das professoras na Escola Normal.
Mas é da marginalização da força de trabalho feminina que está o cerne do debate, constituindo as donas de casa no exército de mão de obra que garantiam a acumulação de capital obtendo salários inferiores aos homens. Nessa perspectiva, afirmava que

“... impedida pelas condições econômicas, a mulher rompe barreiras e penetra no mundo da profissão; fá-lo, entretanto, sob o signo da inferioridade que o sexo feminino representa em relação masculino. É ocupando as posições inferiores, recebendo os salários menos compensadores, não aspirando aos postos de comando que a mulher resolve ou alivia as tensões que a inconsistência de seu país origina”[5]

Era com a ampliação do ensino e com a mudança das representações dos ideais masculinos e femininos que as mulheres da classe média inseriam-se na vida moderna e integrando-se na sociedade de classes.
Assim, a dialética entre as mulheres economicamente ativas e as donas de casa que se constituía o ponto alto da obra de Safiotti. E acrescenta a autora, no tempos de crise, as mulheres pobres eram as mais atingidas. Ao trabalho doméstico a autora o chama de “ alienado”.[6]
Destaca-se, além disso, a “mística feminina”, o universo cultural da modernidade, a “constituição da ideologia do êxito pessoal”[7], os traços psicológicos e o mito da passividade feminina. É sobretudo sobre a atividade feminina e a crítica à sua posição submissa, a luta pelo poder e o combate à discriminação  e ao que caracterizam a perspectiva das intelectuais modernas.
A ampliação dos financiamentos de pesquisas marcaram a vida acadêmica na segunda metade da década de 1970, com o estabelecimento dos programas de pós-graduação pelo país.
No contexto de crise internacional e dos movimentos sociais e culturais em defesa da liberdade de expressão, da sexualidade e da democracia, em uma coletânea de ensaios organizados por  Ann Pescatello no início do decênio, encontram-se preocupações em constituir uma linha de pesquisa na História das Mulheres na América Latina. Pesquisadores, em sua maioria norte-americanos, olhavam para as realidades femininas no contexto das Ditaduras no Brasil, Chile e Argentina, comparando com os movimentos pela igualdade de direitos nos Estados Unidos. Era nas universidades do centro econômico e político que o interesse pela História das Mulheres na América Latina parece ter ganhado inicialmente visibilidade.
Dentre os temas discutidos estavam: os conflitos entre as imagens e as realidades feminas na América Latina; os conflitos entre os interesses das mulheres das classes baixas e médias no processo de modernização; e a presença das continuidades e rupturas nos padrões de comportamento femininos em relação aos masculinos.[8]
Essa obra abarcava disciplinas além da História, como Literatura, Sociologia, Política e Demografia. E, o tema dos padrões sociais, econômicos e demográficos das mulheres latino-americanas tinham que considerados com as diferenças de classe, étnicas e de origem (geográficas e históricas).
Naquele momento, obervavam como dificuldades encontradas as raras pesquisas localizadas, as várias distinções de espaço, hierarquicas e de interesses entre as populações latino-americanas e a impossibilidade de estabelcer generalizações dada a sua diversidade.[9]
Os esteriótipos e o ideal de comportamento feminino começavam a ser criticados por Susan A. Soeiro. A autora tratava da vida monástica feminina, as freiras da Santa Clara do Desterro, localizado na cidade de Salvador. Essas mulheres de véus pretos eram membros das famílias de notáveis, geralmente, conviviam com outras parentes como irmãs, primas, tias e mesmo mães. Desse modo, longe de viverem isoladas do mundo, mantinham-se contato com familiares, emprestavam dinheiro e estabeleciam negócios.[10]
No Brasil, 1975 era o Ano Internacional da Mulher, no mesmo momento, Charles R. Boxer publicava Mary and Misogyny. O autor apontava para a atuação feminina nas diferentes regiões coloniais ibéricas do Oriente ao Ocidente e destacava as diferentes estratificações sociais, das quais as mulheres faziam parte, realizando uma obra seminal na área e  pontuando a necessidade de pesquisa na área. Um dos pontos ressaltados pelo autor era a “posição das viúvas ricas”.[11]
Rusell-Woold, no mesmo período, no artigo, Women and society in colonial Brazil realizava uma síntese da participação feminina na História do Brasil Colonial. Publicado em 1977, esse artigo merece uma tradução com notas em português, pois é mais que um trabalho historiográfico, é um documento importante da História da História das mulheres, assim como seu predecessor. É importante frisar do contato que ambos tiveram. [12]
Não apenas mulheres fizeram história de mulheres, mas na historiografia brasileira os homens também participaram desse debate. No caso, Boxer e Roosell-Wood, ambos americanistas e brasilianistas que acabaram por iniciar a temática das mulheres. Por isso, suas obras mais do que pesquisas extensas em arquivos e citações documentais, tratavam de sínteses bibliográficas, apesar de conterem sempre algumas fontes primárias para auxiliar na reconstituição histórica.
No âmbito nacional, as pesquisas acadêmica sobre as mulheres começavam no período mais rígido da ditadura brasileira, o governo Médici. E muito do debate feminista e historiográficos aconteceram no exílio.[13] Mas é na década seguinte que esses estudos se ampliam e desembocam em trabalhos de pesquisas mais pontuais.
Em suma, dentre 1969 e 1975, a História das Mulheres constituía-se como um assunto relevante. E a partir destes primeiros estudos, as pesquisas documentais, os debates historiográficos e as perspectivas foram ampliados e a área foi fundada. A partir disso, fica-se a hipótese que esses olhares modificaram o modo do fazer histórico,  pelo menos em parte, das historiadoras e dos historiadores das últimas década do século XX.


[1] Heteieth Iara Bongiovani Saffioti. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Livraria Quatro Artes, 1969.
[2] Idem, p. 39.
[3] Idem, p. 41.
[4] Idem, pp. 170-171.
[5] Idem, 324.
[6] Idem, p. 383.
[7] Idem, p. 332.
[8] Ann Pescastello (editor). Female and male in Latin América. University of Pettsburg Press, 1973, p. xi.
[9] Idem, pp. xii-xx.
[10] Susan A. Soeiro. The social and economic role of the convent: women and nuns in Colonial Bahia, 1677-1800. In: The Hispanic American Historical Review. The Duke University Press, May, vol. 54, no. 2, 1974, pp. 209-232.
[11] C.R. Boxer. A Mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros horizontes, LTDA, 1975, pp. 68-69.
[12] A. J. R. Russel- Woold. “Women and society in Colonial Brazil”. In: Journal of Latin American Studies, vol 9, no 1, 1977, pp. 1-34.
[13] Céli Regina Jardim Pinto. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 11.

Nenhum comentário:

Postar um comentário