A partir do final do século
XVI, surgiam os testamentos da vila de São Paulo, que por meio dos seus dados,
fornecem inúmeras possibilidades de interpretações. Dentre os amplos espectros
de assuntos, destacam-se as informações sobre a vida religiosa e material dos
moradores da vila.
Esse conjunto documental revela as
disposições de última vontade dos indivíduos em relação ao destino do
patrimônio, além das posições do testamenteiro sobre a religiosidade e a
família. Ou seja, ele faz parte da “ordem volitiva”, na qual os testadores
expressavam os seus desejos finais.[1]
Em decorrência da quantidade e variedade dessa
série de fonte foi realizado um banco de dados do programa Access/2000, em que
se extraíram os dados empíricos da pesquisa. Convencionou-se dividir a
descrição em 6 partes, nas quais são apresentadas em linhas gerais como o
testamento era organizado pelos escrivões: Invocação da Santíssima Trindade;
localização e data do documento; identificação do testador (nome); disposição
dos legados espirituais, local de sepultamento, forma de sepultamento, número,
locais e para que santo são rezadas as missas; disposições e legados materiais
(doações/esmolas, dotes, terça, partilhas de escravos indígenas, débitos e
créditos); disposições gerais (escrivão, testamenteiro, herdeiros).
Os testamentos paulistas faziam parte dos rituais
de morte e da religiosidade da sociedade. As mulheres testadoras, muitas vezes,
declaravam as suas relações de compadrio, com os familiares (pais, cônjuges,
filhos, primos, tios, cunhados e cunhadas, genros e noras, sogros e sogras), a
vizinhança, escravaria, e, no caso da vila de São Paulo, com outros moradores e
autoridades (freis, jesuítas, padres, juízes, oficiais da câmara, tabeliões).
Também foram analisados os testamentos dos homens senhoriais, os quais muitas
vezes deixavam dotes às filhas esmolas às Igrejas, relatavam para quem queriam
deixar suas legítimas.
De acordo com a Tabela 1, percebe-se a
superioridade numérica e proporcional de testamentos do gênero masculino
em relação ao feminino, que pode ser explicado, talvez, pela maior mortandade
masculina, já que os homens saíam para o sertão em busca de índios ou de
riquezas, ou iam ao litoral para realizar negócios.
Tabela 1
|
|||||
Testamentos por gênero
|
|||||
Vila de São Paulo
|
|||||
(1575-1640)
|
|||||
|
|
|
|
|
|
|
Masculinos
|
Femininos
|
Total
|
||
Anos
|
No
|
%
|
No
|
%
|
|
1590-1600
|
8
|
53,4
|
7
|
46,6
|
15
|
1601-1610
|
13
|
81,3
|
3
|
18,7
|
16
|
1610-1620
|
22
|
53,6
|
19
|
46,4
|
41
|
1621-1630
|
22
|
52,4
|
20
|
47,6
|
42
|
1631-1640
|
46
|
73,0
|
17
|
27,0
|
63
|
Total
|
111
|
62,7
|
66
|
37,3
|
177
|
Fontes:
Inventários e testamentos (1575-1640). São Paulo: DAESP, vols.1-44, 1921-1977.
Outro corpo documental utilizado foram
os inventários paulistas do período Quinhentista e Seiscentista. De uma maneira
geral, nessas fontes havia o arrolamento e a partilha do patrimônio tanto do
inventariado, ou inventariada quanto do seu cônjuge, caso fosse casado. Essa
documentação era escrita por um escrivão, do Juizado dos Órfãos da vila de São
Paulo, logo após a morte da inventariada ou do inventariado, sendo que o término
do processo de distribuição de bens poderia se arrastar por anos a fio. Logo,
os inventários paulistas são fontes seriais, que tem como um dos aspectos mais
relevantes o sistema de herança, do qual participava toda a família senhorial –
esposo, pais, avós, filhos, genros, cunhados e outros parentes.
Para um melhor entendimento desse
corpus documental, optou-se por elaborar duas formas diferentes e
complementares no banco de dados. Na primeira, procedeu-se à estruturação da
documentação. Na segunda parte foi realizado o levantamento dos temas mais
importantes para essa pesquisa, assim como algumas observações dos dados
quantitativos (tabelas e quadros) e qualitativos sobre o conjunto dos mesmos.
Os inventários possuem um caráter
extremamente heterogêneo, porém, é possível distinguir alguns temas que mantêm
maior recorrência. Descrever essa série documental, portanto, é essencial para
se entender alguns aspectos formais do processo da sua constituição. A
descrição a seguir é dividida em 7 partes, que, na verdade, facilitam a
visualização do banco, contendo: intróito (data, localidade, juiz, escrivão,
estado conjugal), notificação dos avaliadores; rol dos herdeiros (filhos,
esposo atual); arrolamento dos bens materiais e escravos indígenas (cartas de
terras, benfeitorias, animais de criação, estoques, bens domésticos,
ferramentas, bens pessoais, metais, jóias, dinheiro); dívidas e créditos;
relações de escravos indígenas; folha de contas (monte-mor, monte-menor, metade
do cônjuge, terça, processo de partilha, partilha dos escravos indígenas).
Para os escravos encontrados nos
inventários foi produzido um banco de dados específico, o qual buscava conter
as seguintes informações: nome do inventariado; data do inventário; local do
inventário; nome; estatuto jurídico; valor; etnia; ocupação; estado conjugal;
nome do cônjuge; idade; filhos; sexo; a presença ou ausência de família; nome
paterno; nome materno; nome dos irmãos e observações. Não obstante, nem todos
os inventários continham todas essas referências listadas acima.
Nota-se, na análise da fonte, que há
poucas referências sobre as ocupações e as relações de compadrio e de
sociabilidade dos indígenas. Foram escassas as referências encontradas sobre as
condições étnicas dos cativos. No entanto, os dados se referem na maioria das
vezes aos Carijós. De modo contrário, as relações familiares são explicitadas
freqüentemente nos inventários paulistas, havendo referências significativas
sobre as relações de parentesco dos índios. Havia também outras famílias
constituídas por pequenos núcleos familiares. Todavia, a maioria da população
cativa era constituída majoritariamente por famílias fragmentadas, como mães
solteiras ou homens e mulheres sós.
Em relação aos indígenas, é ainda
necessário lembrar que eram arrolados como “forros” e, na maioria das vezes,
não possuíam valores em réis, como os bens materiais dos paulistas.
Nos inventários
verifica-se a existência de elementos importantes para a vida social e material
da vila. Benfeitorias, artefatos materiais, produtos alimentícios, animais,
relações de crédito e débito, bem como as escravarias indígenas aparecem como
um conjunto de patrimônio a ser partilhado na herança.
Os 210 inventários paulistas,
dentre os anos de 1554 e 1640, fornecem informações de relevo sobre as mudanças
no patrimônio e na organização social dos moradores da vila de São Paulo, cuja
diversidade de condições econômicas e sociais vale a pena destacar. (Tabela 2)
Tabela 2
|
|
|
|||||
Número de inventários
|
|
|
|||||
Vila de São Paulo
|
|
|
|||||
(1575-1640)
|
|
|
|||||
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Femininos
|
Masculinos
|
|
|
|
||
Anos
|
Número
|
%
|
Número
|
%
|
Total
|
|
|
1575-1600
|
5
|
45
|
6
|
55
|
11
|
|
|
1601-1610
|
3
|
20
|
12
|
80
|
15
|
|
|
1611-1620
|
25
|
44
|
32
|
56
|
57
|
|
|
1621-1630
|
21
|
44
|
27
|
56
|
48
|
|
|
1631-1640
|
24
|
30
|
55
|
70
|
79
|
|
|
Total
|
78
|
37
|
132
|
63
|
210
|
|
|
|
Fontes: Inventários e testamentos (1575-1640).
São Paulo: DAESP, vols.1-44, 1921-1940.
No que se refere aos dados do
ciclo de vida feminino, tais como faixa etária, etnia, relações familiares com
os pais, mães e demais parentes, são limitados quando se trata da documentação
serial desses inventários. Entretanto, nota-se que o mercado matrimonial era
amplo, sendo que as mulheres senhoriais podiam se casar mais de uma vez. Além
disso, freqüentemente, acabavam falecendo ainda em idade reprodutiva, deixando
filhos pequenos, os quais ficavam dependentes dos tutores.
As famílias senhoriais tinham
o patrimônio contabilizado de dois modos. No primeiro, chamado de monte-mor, ou,
patrimônio bruto era arrolada a soma dos bens do casal, incluindo os débitos
contraídos. Diferentemente, o segundo, patrimônio líquido, ou, monte-menor, era
constituído pelos bens com a exclusão das dívidas passivas. No entanto, esse
último tipo de contabilidade nem sempre era descrito no inventário. Ou seja,
muitas vezes, omitia-se o valor líquido do espólio.
Vale destacar que para o
presente trabalho foi necessário utilizar os inventários dos senhores e das
senhoras, pois o monte-mor era relativo aos bens do casal em conjunto. Ademais,
como havia um maior número de homens com inventários (63%) as viúvas tinham
possibilidade de administrar os bens dos maridos. Ou seja, como a mortalidade
masculina era maior, o espaço feminino de atuação, possivelmente, era mais
significativo, apesar da necessidade dessa de precisar de um procurador para a
representar no sistema jurídico do juizado de órfãos da vila.
Encontra-se um número de 132 inventários de
homens, contendo informações relevantes sobre os caminhos do patrimônio e sobre
a atuação feminina, pois estando em viuvez, as mulheres eram obrigadas a
controlar o patrimônio e a pagar e receber as dívidas do marido.
Diferentemente, nos inventários das mulheres, em quantidade de 78, nota-se a
constituição da riqueza familiar e os frutos dos trabalhos e negócios que as
inventariadas realizaram durante a vida.
Para analisar os testamentos e inventários, a
historiografia atual utilizou-se de vários modos interpretativos.[2] No entanto, a principal
abordagem escolhida para compreender a atuação das mulheres senhoriais foi a
categoria de análise gênero.
[1]
Para a análise da vida material escolheu-se a abordagem braudeliana. Fernand
Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo. As estruturas do
cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 1, 1997.
[2] Dentre os trabalhos que se utilizaram dos
testamentos e inventários no período colonial das mais variadas perspectivas
estão: John French. “Riqueza, poder e mão-de-obra em uma economia de
subsistência”. In: Revista do Archivo Municipal: São Paulo, 1982. Sheila de Castro Faria.
A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano
colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998. Carlos de Almeida Prado Bacellar. Os senhores da terra: famílias e sistema sucessório de
engenhos do oeste paulista, 1765-1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997. John Manuel
Monteiro. Negros da terra.
Indios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
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