sexta-feira, 3 de agosto de 2012

TESTAMENTOS E INVENTÁRIOS POST MORTEM PAULISTAS. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA

A partir do final do século XVI, surgiam os testamentos da vila de São Paulo, que por meio dos seus dados, fornecem inúmeras possibilidades de interpretações. Dentre os amplos espectros de assuntos, destacam-se as informações sobre a vida religiosa e material dos moradores da vila.
Esse conjunto documental revela as disposições de última vontade dos indivíduos em relação ao destino do patrimônio, além das posições do testamenteiro sobre a religiosidade e a família. Ou seja, ele faz parte da “ordem volitiva”, na qual os testadores expressavam os seus desejos finais.[1]
Em decorrência da quantidade e variedade dessa série de fonte foi realizado um banco de dados do programa Access/2000, em que se extraíram os dados empíricos da pesquisa. Convencionou-se dividir a descrição em 6 partes, nas quais são apresentadas em linhas gerais como o testamento era organizado pelos escrivões: Invocação da Santíssima Trindade; localização e data do documento; identificação do testador (nome); disposição dos legados espirituais, local de sepultamento, forma de sepultamento, número, locais e para que santo são rezadas as missas; disposições e legados materiais (doações/esmolas, dotes, terça, partilhas de escravos indígenas, débitos e créditos); disposições gerais (escrivão, testamenteiro, herdeiros).
Os testamentos paulistas faziam parte dos rituais de morte e da religiosidade da sociedade. As mulheres testadoras, muitas vezes, declaravam as suas relações de compadrio, com os familiares (pais, cônjuges, filhos, primos, tios, cunhados e cunhadas, genros e noras, sogros e sogras), a vizinhança, escravaria, e, no caso da vila de São Paulo, com outros moradores e autoridades (freis, jesuítas, padres, juízes, oficiais da câmara, tabeliões). Também foram analisados os testamentos dos homens senhoriais, os quais muitas vezes deixavam dotes às filhas esmolas às Igrejas, relatavam para quem queriam deixar suas legítimas.
De acordo com a Tabela 1, percebe-se a superioridade numérica e proporcional de testamentos do gênero masculino em relação ao feminino, que pode ser explicado, talvez, pela maior mortandade masculina, já que os homens saíam para o sertão em busca de índios ou de riquezas, ou iam ao litoral para realizar negócios.
Tabela 1
Testamentos por gênero
Vila de São Paulo
(1575-1640)







Masculinos
Femininos
Total
Anos
No
%
No
%

1590-1600
8
53,4
7
46,6
15
1601-1610
13
81,3
3
18,7
16
1610-1620
22
53,6
19
46,4
41
1621-1630
22
52,4
20
47,6
42
1631-1640
46
73,0
17
27,0
63
Total
111
62,7
66
37,3
177

Fontes: Inventários e testamentos (1575-1640). São Paulo: DAESP, vols.1-44, 1921-1977.
             
Outro corpo documental utilizado foram os inventários paulistas do período Quinhentista e Seiscentista. De uma maneira geral, nessas fontes havia o arrolamento e a partilha do patrimônio tanto do inventariado, ou inventariada quanto do seu cônjuge, caso fosse casado. Essa documentação era escrita por um escrivão, do Juizado dos Órfãos da vila de São Paulo, logo após a morte da inventariada ou do inventariado, sendo que o término do processo de distribuição de bens poderia se arrastar por anos a fio. Logo, os inventários paulistas são fontes seriais, que tem como um dos aspectos mais relevantes o sistema de herança, do qual participava toda a família senhorial – esposo, pais, avós, filhos, genros, cunhados e outros parentes.
Para um melhor entendimento desse corpus documental, optou-se por elaborar duas formas diferentes e complementares no banco de dados. Na primeira, procedeu-se à estruturação da documentação. Na segunda parte foi realizado o levantamento dos temas mais importantes para essa pesquisa, assim como algumas observações dos dados quantitativos (tabelas e quadros) e qualitativos sobre o conjunto dos mesmos.
Os inventários possuem um caráter extremamente heterogêneo, porém, é possível distinguir alguns temas que mantêm maior recorrência. Descrever essa série documental, portanto, é essencial para se entender alguns aspectos formais do processo da sua constituição. A descrição a seguir é dividida em 7 partes, que, na verdade, facilitam a visualização do banco, contendo: intróito (data, localidade, juiz, escrivão, estado conjugal), notificação dos avaliadores; rol dos herdeiros (filhos, esposo atual); arrolamento dos bens materiais e escravos indígenas (cartas de terras, benfeitorias, animais de criação, estoques, bens domésticos, ferramentas, bens pessoais, metais, jóias, dinheiro); dívidas e créditos; relações de escravos indígenas; folha de contas (monte-mor, monte-menor, metade do cônjuge, terça, processo de partilha, partilha dos escravos indígenas).
Para os escravos encontrados nos inventários foi produzido um banco de dados específico, o qual buscava conter as seguintes informações: nome do inventariado; data do inventário; local do inventário; nome; estatuto jurídico; valor; etnia; ocupação; estado conjugal; nome do cônjuge; idade; filhos; sexo; a presença ou ausência de família; nome paterno; nome materno; nome dos irmãos e observações. Não obstante, nem todos os inventários continham todas essas referências listadas acima.
Nota-se, na análise da fonte, que há poucas referências sobre as ocupações e as relações de compadrio e de sociabilidade dos indígenas. Foram escassas as referências encontradas sobre as condições étnicas dos cativos. No entanto, os dados se referem na maioria das vezes aos Carijós. De modo contrário, as relações familiares são explicitadas freqüentemente nos inventários paulistas, havendo referências significativas sobre as relações de parentesco dos índios. Havia também outras famílias constituídas por pequenos núcleos familiares. Todavia, a maioria da população cativa era constituída majoritariamente por famílias fragmentadas, como mães solteiras ou homens e mulheres sós.
Em relação aos indígenas, é ainda necessário lembrar que eram arrolados como “forros” e, na maioria das vezes, não possuíam valores em réis, como os bens materiais dos paulistas.
Nos inventários verifica-se a existência de elementos importantes para a vida social e material da vila. Benfeitorias, artefatos materiais, produtos alimentícios, animais, relações de crédito e débito, bem como as escravarias indígenas aparecem como um conjunto de patrimônio a ser partilhado na herança.
Os 210 inventários paulistas, dentre os anos de 1554 e 1640, fornecem informações de relevo sobre as mudanças no patrimônio e na organização social dos moradores da vila de São Paulo, cuja diversidade de condições econômicas e sociais vale a pena destacar. (Tabela 2)

Tabela 2


Número de inventários


Vila de São Paulo


(1575-1640)











Femininos
Masculinos



Anos
Número
%
Número
%
Total


1575-1600
5
45
6
55
11


1601-1610
3
20
12
80
15


1611-1620
25
44
32
56
57


1621-1630
21
44
27
56
48


1631-1640
24
30
55
70
79


Total
78
37
132
63
210



 Fontes: Inventários e testamentos (1575-1640). São Paulo: DAESP, vols.1-44, 1921-1940.

No que se refere aos dados do ciclo de vida feminino, tais como faixa etária, etnia, relações familiares com os pais, mães e demais parentes, são limitados quando se trata da documentação serial desses inventários. Entretanto, nota-se que o mercado matrimonial era amplo, sendo que as mulheres senhoriais podiam se casar mais de uma vez. Além disso, freqüentemente, acabavam falecendo ainda em idade reprodutiva, deixando filhos pequenos, os quais ficavam dependentes dos tutores.

As famílias senhoriais tinham o patrimônio contabilizado de dois modos. No primeiro, chamado de monte-mor, ou, patrimônio bruto era arrolada a soma dos bens do casal, incluindo os débitos contraídos. Diferentemente, o segundo, patrimônio líquido, ou, monte-menor, era constituído pelos bens com a exclusão das dívidas passivas. No entanto, esse último tipo de contabilidade nem sempre era descrito no inventário. Ou seja, muitas vezes, omitia-se o valor líquido do espólio.
Vale destacar que para o presente trabalho foi necessário utilizar os inventários dos senhores e das senhoras, pois o monte-mor era relativo aos bens do casal em conjunto. Ademais, como havia um maior número de homens com inventários (63%) as viúvas tinham possibilidade de administrar os bens dos maridos. Ou seja, como a mortalidade masculina era maior, o espaço feminino de atuação, possivelmente, era mais significativo, apesar da necessidade dessa de precisar de um procurador para a representar no sistema jurídico do juizado de órfãos  da vila.
 Encontra-se um número de 132 inventários de homens, contendo informações relevantes sobre os caminhos do patrimônio e sobre a atuação feminina, pois estando em viuvez, as mulheres eram obrigadas a controlar o patrimônio e a pagar e receber as dívidas do marido. Diferentemente, nos inventários das mulheres, em quantidade de 78, nota-se a constituição da riqueza familiar e os frutos dos trabalhos e negócios que as inventariadas realizaram durante a vida.
Para analisar os testamentos e inventários, a historiografia atual utilizou-se de vários modos interpretativos.[2] No entanto, a principal abordagem escolhida para compreender a atuação das mulheres senhoriais foi a categoria de análise gênero.


[1] Para a análise da vida material escolheu-se a abordagem braudeliana. Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo. As estruturas do cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 1, 1997.
[2] Dentre os trabalhos que se utilizaram dos testamentos e inventários no período colonial das mais variadas perspectivas estão: John French. “Riqueza, poder e mão-de-obra em uma economia de subsistência”. In: Revista do Archivo Municipal: São Paulo, 1982. Sheila de Castro Faria. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Carlos de Almeida Prado Bacellar. Os senhores da terra: famílias e sistema sucessório de engenhos do oeste paulista, 1765-1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997. John Manuel Monteiro. Negros da terra. Indios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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