Igor de Lima*
"O estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e
contraditório, ansioso na mesma proporção que é afirmativo".
No Brasil, houve inicialmente uma
historiografia que discorreu sobre a participação feminina dentro de uma
perspectiva senhorial e patriarcal, na qual as mulheres viviam em reclusão, em
total opressão no interior doméstico e sem nenhum papel significativo nas
transformações econômicas e sociais da América Portuguesa. Além disso, construiu
uma série de imagens esteriotipadas do gênero feminino na história da
América portuguesa.
Alcântara Machado, em Vida e morte do
bandeirante, obra publicada em 1929, analisava pela primeira vez os
inventários pos-mortem e testamentos paulistas.
Debatendo com Olivera Viana, defendia a idéia das difíceis condições de
existência dos bandeirantes paulistas, os quais viviam na pobreza, distantes do
centro Metropolitano. Com uma abordagem descritiva dessas fontes, compunha um
quadro do cotidiano dos bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A
interiorização e o isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma
sociedade pobre, com baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era
relativizada com a presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do
mobiliário, que tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da
mineração.[2]
Em um contexto de transformações lentas na vida
material, as mulheres
bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos bens e escravos.
Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos próprios filhos e
da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos,
porém, a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua
Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras
preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça,
penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila
adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da
colônia”. [3]
Para Alcântara Machado, a
família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela
significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto.
Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental
exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a
autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos
e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor
da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do
patriciado”.[4]
Nessa perspectiva, o poder
inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e
opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela.
“Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do
marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e
lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua
educação”. Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e
do matrimônio.[5]
Ao lado da família legítima,
estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias
concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos
vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo Machado
possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e faceira”,
estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o historiador, o
português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que
deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a
sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra
da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o
íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele
para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num
meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num
ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de
Deus..." [6]
Por outro lado, as escravas faziam parte do
botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas
brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os
despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do
vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a
parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.[7]
Em relação às mulheres das
famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam
leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem
ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". [8] O espaço feminino era reservado ao lar e
à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas
representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas
cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza;
elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as
iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas
policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros
indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.[9]
Na
obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros,
mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na
São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas
brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de
linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos
homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos
estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda
da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de
golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho.
Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata,
adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de
porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as
vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
Para
as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas
de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na
os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão
de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano.
É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do
Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de
baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha,
contra a penetração das setas inimigas”.[10]
Na vila, fazia-se importante o
indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e
de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada.
A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650,
quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de
baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote;
outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo
da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.[11]
Diferentemente, as roupas
femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em
relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.[12]
Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende vasquinha, saia de roda exuberante,
franzida na cintura; e, ajustado ao busto, o corpinho; e, por cima deste, o
gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio, casacão rabilongo de mangas perdidas,
com abertura ao nível dos cotovelos, dando passagem e liberdade aos braços; e,
cobrir tudo isso, como se tudo isso não bastasse, o manto. Com muito menos se
supõem vestidas as damas da atualidade. E têm razão. Entre outros motivos,
porque, parecendo obedecer à intimação das modas peregrinas, se inspiram de
fato no figurino guaianás das filhas de Caiubi e Tibiriçá”[13]
Apesar de não haver variação
dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As
senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro
eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o
“cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em
quarenta mil réis.[14]
Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre
aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das
senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de
prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais
complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o
enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre as
diferentes camadas sociais. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas
de utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as
vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das
“senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada.
Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras pulseiras
e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas de d. Ana
de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado de verde,
branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior. Para essas mulheres eram reservados os
rosários com cruzes de ouro ou de prata.[15]
Distantes da cultura erudita,
sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das
senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No
entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as
autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos incidentes dessa natureza o mais curioso é o que
se desenvolve no inventário de Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento
Pires Ribeiro. Curioso, não pela substância jurídica do caso, mas pela
qualidade das pessoas em
lide. Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça
de Deus, tem e possui com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem
necessite alguma cousa, pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da
inventariada, se lhe defira a curadoria dos netos. Não está por isso o capitão
Fernão Pais Leme, tio dos órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela
franqueza que respira, o protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa
por acentuar que a suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e
muitos anos, e tão doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não
pode fazer sem ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os
sobrinhos com sua gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como
no mais, e também na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e
de raiz, não tem outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de
outra forma, os órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.[16]
Essa senhora fora a principal
protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de
Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se
homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em
tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse
entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e
a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par,
ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos
debulhados em lágrimas. A
turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do matador, se deixa vencer e
desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a devassa. Concluído o
processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para levá-lo à Bahia, onde
deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do sertão bravio, Inez
Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do filho. Mas antes de lá
chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam, resolvem executá-lo
covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no mar nas alturas da
Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar a sua criatura,
desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série e infindável de
conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um século ensangüenta
e sobressalta a nossa terra”.[17]
As senhoras “matronas”[18]
eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de
atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo. Nessa perspectiva, entendeu-se que as
mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela
filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia, em momentos de exceção, existiam algumas
mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando,
ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero
masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de
sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações
das senhoras paulistas.
Além disso, em sua análise dos
inventários post-mortem enfocava a narrativa do cotidiano bandeirante. Descrever de maneira colorida a vida e morte
dos habitantes de São Paulo no século XVII, era, de certa forma, retomar as
condições de vida dos antigos moradores da cidade de São Paulo. E as mulheres
bandeirantes paulistas forneciam maneira nobre e honrada condições para que
seus maridos, esposos e filhos expandissem os limites do sertão. Nesse sentido,
os volores morais e ideais da honra e nobreza eram retomados pelo autor para
reconstruir a imagem digna dos valorosos homens e das mulheres bandeirantes
paulistas de outrora.
*
Pos-Doutorando FAPESP no Centro de Estudos de Demografia Histórica da América
Latina FFLCH/USP.
[2] Alcântara Machado. Vida
e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp.
65-74.
[3]
Ibidem, p. 67.
[4]
Ibidem, p. 151.
[5]
Ibidem, p. 153.
[6]
Ibidem, p. 157.
[7]
Ibidem, p. 156.
[8]
Ibidem, p. 94.
[9]
Ibidem, p. 77.
[10]
Ibidem, pp. 240-241.
[11]
Ibidem, p. 88.
[12]
Ibidem, p. 89.
[13]
Ibidem, pp. 89-90.
[14]
Ibidem, pp. 90-91.
[15]
Ibidem, p. 94.
[16]
Ibidem, p. 121.
[17]
Ibidem, pp. 223-224.
[18]
Ibidem, p. 161.
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