domingo, 4 de março de 2012

As mulheres bandeirantes paulistas na leitura de Alcântara Machado. Igor de Lima.



Igor de Lima*

"O estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção que é afirmativo".
Homi K. Bhabha [1]

No Brasil, houve inicialmente uma historiografia que discorreu sobre a participação feminina dentro de uma perspectiva senhorial e patriarcal, na qual as mulheres viviam em reclusão, em total opressão no interior doméstico e sem nenhum papel significativo nas transformações econômicas e sociais da América Portuguesa. Além disso, construiu uma série de imagens esteriotipadas do gênero feminino na história da América portuguesa.
 Alcântara Machado, em Vida e morte do bandeirante, obra publicada em 1929, analisava pela primeira vez os inventários pos-mortem e testamentos paulistas.  Debatendo com Olivera Viana, defendia a idéia das difíceis condições de existência dos bandeirantes paulistas, os quais viviam na pobreza, distantes do centro Metropolitano. Com uma abordagem descritiva dessas fontes, compunha um quadro do cotidiano dos bandeirantes, homens valentes que saiam ao sertão. A interiorização e o isolamento fariam da população da vila de São Paulo, uma sociedade pobre, com baixos níveis de riqueza. Todavia, a falta de fortuna era relativizada com a presença de alguns artefatos materiais de relativo luxo do mobiliário, que tornava-se mais promissor a medida que se aproximava da mineração.[2]
Em um contexto de transformações lentas na vida material, as mulheres bandeirantes paulistas eram proprietárias de poucos e escassos bens e escravos. Dedicavam-se aos afazeres domésticos e às roças, cuidando dos próprios filhos e da prole ilegítima dos esposos. “Aproveitemos, porém, a ausência do chefe de família, partido para o sertão ao serviço de Sua Majestade, no descimento do gentio ou no descobrimento de metais e pedras preciosas; e, como a mulher e os filhos estão longe também, no sítio da roça, penetremos, abafando os passos, num desses casarões sorumbáticos da vila adormecida”, dizia o autor ao referir-se às famílias da “aristocracia da colônia”. [3]
Para Alcântara Machado, a família representava a “unidade social da sociedade paulista”, pois ela significava a solidificação dos indivíduos no espaço inóspito do planalto. Ademais, a “congregação familiar” tinha um caráter homogêneo e pacificador.
“Organização defensiva, o agrupamento parental exige um chefe que a conduza e governe à feição romana, militarmente. Daí, a autoridade incontestável do pai de família sobre a mulher, a prole, os escravos e também os agregados ou familiares, proprietários livres, que acolhem ao calor da sua fortuna e à sombra do seu prestígio e que lembram a clientela do patriciado”.[4]

Nessa perspectiva, o poder inquestionável do patriarca não possuía limites. No entanto, a subordinação e opressão feminina davam-se de maneira passiva e até mesmo por desejo dela. “Acostumada à sujeição e desobediência, a mulher, pupila eterna do pai e do marido. Vive enclausurada em meio às mucamas, sentada no seu estrado, a coser e lavrar e fazer renda e rezar as orações, bons costumes em que se resume a sua educação”. Nessa condição, às mulheres apenas restava a sujeição do convento e do matrimônio.[5]
Ao lado da família legítima, estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos vencedores. No que se refere ao papel das escravas indígenas em São Paulo Machado possui uma posição ambígua. Por um lado, a índia era “robusta e faceira”, estando sempre disponível às investidas dos senhores. Conforme o historiador, o português
"aliviado de escrúpulos e preconceitos que deixou na pátria distante, como bagagem incômoda, à hora da partida, com a sensualidade fustigada pelas solicitações da natureza tropical, pisando a terra da colônia como terra conquistada e consciente da sua superioridade sobre o íncola e o africano, o branco não encontra embaraços à atração que o impele para a índia robusta e faceira e para a negra impudente. Nem a ação da lei, num meio desgovernado em que a justiça é ilusória; nem o freio da opinião, num ambiente em que todos são culpados da mesma fraqueza: nem sequer o temor de Deus..." [6]

 Por outro lado, as escravas faziam parte do botim da conquista colonial, tendo o autor notado que
“repetem-se aqui, há trezentos anos, as práticas brutais dos guerreiros de Homero e de Moisés. Preada em combate entre os despojos dos vencidos, a índia passa por direito de conquista a concubina do vencedor. Em sua origem, o concubinato doméstico é então, como sempre em toda a parte, a apropriação conjugal dos prisioneiros de guerra”.[7]

Em relação às mulheres das famílias “aristocráticas”, o autor ainda afirmou que elas não praticavam leituras, viviam na reclusa, pois somente "na igreja que a mulher tem ocasião de fazer-se e de mostrar-se bela". [8] O espaço feminino era reservado ao lar e à Igreja. Na clausura, ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturado-lhe um pouco de cinza; elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas policrônicas ou esguias espirais de argila". Tais artesanatos caseiros indígenas eram comercializados entre a “arraia miúda” paulista.[9]
            Na obra machadiana, as vestimentas dos paulistas foram divididas conforme os gêneros, mas não se distinguiam conforme as diversas segmentações sociais existentes na São Paulo Colonial. O vestuário masculino era constituído por parcas roupas brancas de algodão grosseiro como as camisas e as ceroulas. Já o tecido de linho era ainda mais raro. Na maioria das vezes, as meias utilizadas pelos homens eram de fio de algodão da terra. Conforme aumentava o patrimônio dos estamentos dominantes e se desenvolvia o comércio, apareciam as meias de seda da Inglaterra e depois da Itália. Como adereço, usavam os mantéus – espécie de golas – de algodão, que foram sendo substituídos pelos cabeções de linho. Alguns dos senhores paulistas também levavam consigo armas de punho de prata, adagas e chapéus de feltro de algodão. Ademais, os sapatos eram de couro de porco e veado. Não obstante, a roupeta, o ferragoulo e o calção eram as vestimentas masculinas mais utilizadas no cotidiano da São Paulo Seiscentista.
            Para as descidas ao sertão, os bandeirantes deveriam estar bem equipados, com armas de fogo, pólvora e com
“a armadura que o ambiente reclama, encontraram-na os paulistas. São as armas de algodão colchoadas. É o gibão de armas de algodão de vestir, adaptação da velha jaqueta medieval às condições do meio americano. É o escupil usado pelos espanhóis nas guerras contra o gentio do México, do Peru e do Chile. É uma carapaça de couro cru, recheio de algodão, forro de baeta . Tanto basta para proteger o corpo, à maneira das costas de malha, contra a penetração das setas inimigas”.[10]

Na vila, fazia-se importante o indivíduo que usasse vestimentas coloridas e extravagantes nos dias de festa e de missa, em que os homens se diferenciavam vestindo roupas de seda importada. A transformação da “moda” masculina ocorreu na vila após a década de 1650, quando era “o tempo de casacas de duquesa com gueta de seda, dos casacões de baeta verde, dos coletes, das cuecas. Os coletes são às vezes de chamalote; outras vezes de couro, com mangas de tafetá. Há quem prefira trazer por baixo da casaca uma véstia abotoada com botões de prata”.[11]
Diferentemente, as roupas femininas, das “senhoras de qualidade”, não sofreram grandes mudanças em relação ao feitio no decorrer dos seiscentos.[12] Conforme Machado, as vestimentas das mulheres da “aristocracia” paulista
“compreende vasquinha, saia de roda exuberante, franzida na cintura; e, ajustado ao busto, o corpinho; e, por cima deste, o gibão, ou jibão; e sobre o jubão ou saio, casacão rabilongo de mangas perdidas, com abertura ao nível dos cotovelos, dando passagem e liberdade aos braços; e, cobrir tudo isso, como se tudo isso não bastasse, o manto. Com muito menos se supõem vestidas as damas da atualidade. E têm razão. Entre outros motivos, porque, parecendo obedecer à intimação das modas peregrinas, se inspiram de fato no figurino guaianás das filhas de Caiubi e Tibiriçá”[13]

Apesar de não haver variação dos feitios dos vestidos, os tecidos sofriam transformações marcantes. As senhoras Catarina de Siqueira, Maria Bicudo, Catarina de Góes e Izabel Ribeiro eram proprietárias dos vestidos mais caros de Piratininga, tendo a última o “cetro da elegância”, com o vestido de veludo com um manto de seda avaliado em quarenta mil réis.[14] Ainda no vestuário feminino, o autor separa a qualidade dos sapatos, entre aqueles de casa e o outro para a saída à Igreja. Dentre os acessórios das senhoras, destacava-se a cinta vermelha, os chapéus, as redes e toucas de prender os cabelos que variavam das mais simples feitas de algodão até as mais complexas de seda com alfinetes de prata.
No final do Seiscentos, com o enriquecimento da vila e a descoberta das minas, o luxo espalhava-se entre as diferentes camadas sociais. Em um decreto de 1696, as escravas eram proibidas de utilizar as vestimentas luxuosas adornadas com ouro e prata. Sendo assim, as vestes de luxo ficavam confinadas ao domínio das senhoras.
Faziam parte do espólio das “senhoras elegantes” as jóias as quais denotavam a sua condição social elevada. Brincos, gargantilhas de ouro e prata, pingentes, crucifixos, anéis, raras pulseiras e inúmeros rosários. Como exemplo, o autor apresentou as gargantilhas de d. Ana de Proença, mulher de Pedro Dias, que possuía duas de ouro esmaltado de verde, branco e azul, com vinte pedras verdes menores e outra maior.  Para essas mulheres eram reservados os rosários com cruzes de ouro ou de prata.[15]
Distantes da cultura erudita, sendo apenas letrada Madalena Hosquor e Leonor de Siqueira, a maioria das senhoras paulistas sabiam coser, bordar e realizar as tarefas domésticas. No entanto, possuíam um espaço de atuação e poder em meio às negociações com as autoridades jurídicas, como no caso de Inez Monteiro:
“Dos incidentes dessa natureza o mais curioso é o que se desenvolve no inventário de Sebastiana Leite, dona viúva pelo capitão Bento Pires Ribeiro. Curioso, não pela substância jurídica do caso, mas pela qualidade das pessoas em lide. Mulher nobre que sempre viveu honestamente e, por graça de Deus, tem e possui com o que pode passar enquanto viver sem que de outrem necessite alguma cousa, pela famosa matrona d. Inez Monteiro, sogra da inventariada, se lhe defira a curadoria dos netos. Não está por isso o capitão Fernão Pais Leme, tio dos órfãos. Na forma e no fundo, pela altivez e pela franqueza que respira, o protesto é bem digno do caçador de esmeraldas. Começa por acentuar que a suplicante está em idade decrépita, passando de oitenta e muitos anos, e tão doente que, para se levantar de um lugar para outro, o não pode fazer sem ajuda. Promete seguir, se lhe derem a curadoria, auxiliar os sobrinhos com sua gente, sem interesse nenhum, assim na lavoura do trigo, como no mais, e também na olaria. E diz, em remate, que, a fazenda de bens móveis e de raiz, não tem outro objetivo senão o de atender às muitas perdas que, de outra forma, os órfãos virão a ter para o futuro. Dá-lhe razão o juiz”.[16]

Essa senhora fora a principal protetora do filho Alberto Pires, que havia assassinado a esposa d. Leonor de Camargo Cabral. Explicando a vingança dos Camargos, o autor afirmara que
“...certa noite, sabendo que o criminoso se homiziara na fazenda de sua mãe. D. Inês Monteiro, para lá se dirigiam em tumultuoso bando. Posta a casa em cerco exigiram que o assassino lhes fosse entregue, para ser justiciado sumariamente. É então que começa a destacar-se e a crescer a figura da matrona. Na moldura da porta, que se abre de par em par, ela aparece sozinha, com um crucifixo erguido nas mãos trêmulas, e os olhos debulhados em lágrimas. A turba indômita, que a pouco reclamava o sangue do matador, se deixa vencer e desarmar. O réu é entregue á justiça. Vem depois a devassa. Concluído o processo, uma sumaca recebe em Santos o delinqüente, para levá-lo à Bahia, onde deve ser julgado pela Relação. Varando léguas e léguas do sertão bravio, Inez Monteiro vai aguardar no Rio de Janeiro a passagem do filho. Mas antes de lá chegar a embarcação, os adversários, que o escoltam, resolvem executá-lo covardemente: amarram-lhe uma pedra no pescoço e atiram-no mar nas alturas da Ilha Grande. Inez Monteiro volta à São Paulo, e, para vingar a sua criatura, desencadeia e alimenta, irredutível e implacável, aquela série e infindável de conflitos políticos e de lutas armadas, que durante quase um século ensangüenta e sobressalta a nossa terra”.[17]

As senhoras “matronas”[18] eram subjugadas pelo poder do homem bandeirante, não possuindo espaço de atuação no dia-a-dia familiar e na vida pública e privada de São Paulo.  Nessa perspectiva, entendeu-se que as mitológicas mulheres bandeirantes ficavam reclusas ao lar e auxiliadas pela filharada bastarda dos maridos infiéis. Todavia,  em momentos de exceção, existiam algumas mulheres como a senhora Inês Monteiro que assumiam posições de mando, ultrapassando a condição de subserviência em relação ao gênero masculino. Assim, há no texto de Alcântara Machado uma ambivalência de sentidos, ou melhor, uma contradição, quando este faz referência às atuações das senhoras paulistas.
Além disso, em sua análise dos inventários post-mortem enfocava a narrativa do cotidiano bandeirante.  Descrever de maneira colorida a vida e morte dos habitantes de São Paulo no século XVII, era, de certa forma, retomar as condições de vida dos antigos moradores da cidade de São Paulo. E as mulheres bandeirantes paulistas forneciam maneira nobre e honrada condições para que seus maridos, esposos e filhos expandissem os limites do sertão. Nesse sentido, os volores morais e ideais da honra e nobreza eram retomados pelo autor para reconstruir a imagem digna dos valorosos homens e das mulheres bandeirantes paulistas de outrora.


* Pos-Doutorando FAPESP no Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina FFLCH/USP.
[1] Homi K. Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.110.
[2] Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1965, “O Mobiliário”, pp. 65-74.
[3] Ibidem, p. 67.
[4] Ibidem, p. 151.
[5] Ibidem, p. 153.
[6] Ibidem, p. 157.                                                                                                                                                                        
[7] Ibidem, p. 156.
[8] Ibidem, p. 94.
[9] Ibidem, p. 77.
[10] Ibidem, pp. 240-241.
[11] Ibidem, p. 88.
[12] Ibidem, p. 89.
[13] Ibidem, pp. 89-90.
[14] Ibidem, pp. 90-91.
[15] Ibidem, p. 94.
[16] Ibidem, p. 121.
[17] Ibidem, pp. 223-224.
[18] Ibidem, p. 161.

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