terça-feira, 29 de maio de 2012

HISTÓRIA DA MODA MEDIEVAL. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA



Nos fins da Idade Média, constituía-se a moda cavalheiresca, centrada na relação com o corpo da sociedade cristã. E era nesse momento que as distinções de roupas de homens e mulheres eram descritas nas canções de gesta e eram marcadas pelas mudanças nas conjunturas e estruturas econômicas, políticas e sociais.
 No século XII, o comércio crescia Mediterrâneo e no Norte da Europa, formavam-se dos Estados Nacionais (marcada pela figura real e pelo crescimento das instituições administrativas), da sociedade de corte e despontava a figura da burguesia mercantil, enriquecida também pelo comércio têxtil com o Oriente e interno nas fronteiras europeias. Além disso, as corporações de ofício e as especializações na produção de tecidos finos adquiriam uma nova extensão. Toda essa conjuntura das cruzadas, das gestas na literatura cavalheiresca estavam presentes nesse momento de ascenção moda cavalheiresca.
Essa moda cavalheiresca estava condicionada à “incorporação social”, por meio do processo de investidura e das corporações de ofício.  Segundo Le Goff, a roupa “é não somente dorno, mas também proteção e armadura”, enquanto o nu era “risco moral, falta de pudor o erotismo.” O processo de vestir-se era, confrome o mesmo, um rito “significativo”, na “ordenação do monge e do clérigo”, na “investidura do cavaleiro. Quando da consagração dos reis, o abandono das roupas anteriores e a adoção de hábitos reais  constituem um dos ritos mais importantes”. Esse jogo entre a nudez e a vestimenta continua na valorização da beleza física, como as tranças e o recato feminino, e a admiração do corpo do cavaleiro, como Lancelote, herói dos romances arturianos. Ainda conforme o autor, “...heróis e heroínas corteses impõem-se também pela beleza de suas roupas, favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda”. [1] Nesse sentido,o autor levanta a necessidade de desenvolver a “História da moda indumentária na Idade Média”, com o estudo da relação do corpo (como cabeleira, bigode, barba), com a “evolução de enfeitar o rosto” (principalmente por parte das mulheres) a partir dos estudos literários e iconográficos. [2]
Apesar da maior parte da historiografia apontar a origem da moda no século XIV, Sarah-Grace Heller, no artigo “Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles”, defende a ideia de que o contato entre cristãos e infiéis nas Cruzadas, a partir de 1190, transformava os modos de vestir dos primeiros, por meio das trocas comerciais de tecidos de diferentes técnicas de fabricação, coloração, ornamentos e dos intercâmbios culturais com os árabes e bizantinos, que usavam diversas indumentárias. Como exemplo, apontou os têxteis de seda, a cor púrpura do império de Bizâncio, os botins das conquistas de Jerusalém e o enriquecimento do território mediterrânico como o caso da Sicília e da Península Ibérica.
Os cristãos consumiam joias de ouro, topázio e esmeralda, elmos verdes, malhas bem enlaçadas, bandeiras de seda, bem como novas peças, como o siglaton (veste de ouro), e bordados com motivos de pássaros e peixes. Além disso, a autora abordou as modas islâmicas, centradas nas diferentes colorações e texturas. Dentre as indumentárias islâmicas importantes, destacou o khil’a (ornamentos honoríficos com carcterísticas diferentes para cada pessoa e os tiraz) cintos tecidos com desenhos decorativos em ouro.[3]
As camadas populares do Velho Mundo vestiam-se ainda de maneira mais simples com tecidos de lã e sapatos rústicos. Mas as vestimentas religiosas passavam lentamente por modificações nos detalhes, como os ricos bordados sobre ícones religiosos.[4] Susan M. Carroll-Clark, em “Bad Habits: clothing and textiles references in the register of Eudes, Archbishop of Rouen”, trata da reforma religiosa de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão, em 1215, no que se refere aos têxteis e indumentária. A autora destacou a crítica à “desnecessária ornamentação” dos monges por meio de relatos do Arcebispo de Rouen. Salientam-se, dentre os artefatos, o uso da camisa de linho, o tabardo (espécie de short, proibido para monges e padres) e da capa (espécie de pequena faixa, geralmente, de seda). Com relação aos têxteis, consumiam a lã, seda, o barracan e peles das mais variadas espécies, como coelhos e raposas. Também possuíam acessórios como sapatos, cintos (de tecido e metálicos), véus, cuff, ou cucufa (espécie de capuz).[5]
A autora também nota que geralmente os artigos de luxo proibidos pela legislação papal eram encontrados nos monastérios, como as comuns camisas de linho, as peles de coelhos e a roupa de lã listrada (serge radiata). Às freiras era também interditado o uso de jóias e ornamentos luxuriosos em seus véus. No entanto, a autora encontrou referências de religiosas com esses bens, sendo que esses podiam ser comercializados.
Havia, portanto, dificuldade de se compreender as distinções e mudanças no vestir do interior dos membros da Igreja porque os clérigos, no século XIII, ainda vestiam-se de maneira próxima a outras camadas sociais.[6]
Nessa linha de pesquisa, Tomas M. Izbicli estuda as cores das vestimentas eclesiásticas, em “Forbidden colors in the regulation of clerical dress the Fourth Lateran Council (1215) to the time of Nicholas de Cusa (d. 1464)”. Nesse artigo, o autor destacou as restrições impostas em várias legislações suntuárias dos concílios da Igreja Católica Apostólica Romana, de vestimentas e ornamentos de cores vermelhas e verdes (pannis rubeis aut viridibus) de ornamentadas de dourado (deauratis) nas suas vestimentas e da prática de freqüentar tavernas. Segundo os decretos gregorianos de 1234, as mulheres judias eram obrigadas a colocar faixas azuis em seus véus. E, especialmente para as vestimentas femininas, o Cardeal Latino Malabranca, em 1279, proibia qualquer mulher de vestir-se imodestamente, revelando-se muito ou apresentando seu corpo.[7]
Além dessas regras, vários outros concílios menores tentavam regular os materiais, as formas e as cores das indumentárias clericais durante os séculos XIII e XIV. A proibição de sapatos, faixas e outras peças verdes ou vermelhas faziam parte das regulamentações da Igreja. Durante o século XIV, as proibições passaram a diminuir, sendo que no Conselho de Basel (1431-1449), o tema das restrições vestuárias não estava em pauta. Apesar da tentativa reformista de Nicolau de Cusa (Reformo Generalis), o papado mantinha-se com o crescimento do luxo, principalmente na corte romana.[8]
No que se refere à indumentária religiosa, John Harvey, em Homens de preto, destaca que os dominicanos, ordem fundada por Domingo Guzman em 1215, ficaram conhecidos como os “frades negros”, pois se vestiam com manto e capuz negro por cima de manto e capuz branco. Conforme o autor, “Nos Frades Negros encontramos o grande paradoxo do preto, pois o preto é uma quantidade negativa, a ausência de cor: considerada como uma cor, que se escolhe vestir, ela é o sinal da abnegação e da perda. Entretanto, a abnegação pode também conferir poder e autoridade sobre os não-abnegados. A abnegação total pode dar a idéia de santidade e fazer do abnegado um exemplo a ser admirado com reverência e temor, e o preto, entendido como a cor do poder sobre si mesmo, tornou-se a representação de uma impressionante e intensa introversão. (...).”[9]
Em outro artigo, intitulado “Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval Textile decoration”, Sarah-Grace Heller destaca a dificuldade de compreensão da linguagem das roupas em diferentes momentos históricos. Afirma que é  necessário realizar uma aproximação dos significados das palavras sobre os têxteis e a indumentária. Para isso, conforme a autora, deve-se tratar do tema valendo-se da categoria gênero, quando se analisam textos literários como os de Chrétien de Troyes (c. 1165-70) e Marie de France.[10]
Heller observa que era raro encontrar dados a respeito de mulheres bordando ou tecendo nas fontes literárias dos séculos XII ao XIV. Aponta, além disso, para o crescimento das manufaturas têxteis, em Paris, com a participação feminina, enquanto que a produção doméstica de tecidos de luxo entre a aristocracia diminuía de importância.[11] A partir de 1292, por meio da análise da documentação das corporações de ofício, nota-se a presença de brodadeurs (bordadores) e broderesses (bordadoras), destacando-se aqueles que produziam os brocados com ouro.[12]
A autora ainda sugere a necessidade de entender a constituição do trabalho têxtil imbricado com o religioso. A atividade de ofício estava diretamente relacionada com a religiosidade cristã a partir da confecção de tapeçarias com motivos hagiográficos durante os séculos XII e XIII. [13] Essas “roupas exóticas”[14] seriam peças relacionadas ao sobrenatural e ao maravilhoso, pois eram feitas com tecidos do Oriente Médio, originário das Cruzadas, bem como possuíam características religiosas, principalmente nas formas e no seu consumo em missas, rezas e batalhas contra os infiéis.
Nesse sentido religioso, Charlot A. Stanford, no artigo “Donation from de body for the Soul: apparel, devotion and status in Late Medieval Strasbourg”, analisa o Book Donors, relacionando-o com as doações para a construção da catedral de Strasburgo, do século XIII ao XVI.[15] Nessas listagens, a autora encontra expressões em latim, alemão ou até mesmo termos mistos referentes às vestimentas mais significativas dos espólios de doadores, geralmente falecidos. Era comum a referência às esmolas serem apenas declaradas como “vestimentum”, ou mesmo a sua abreviação: vestes. Segundo a pesquisadora, eram encontrados nomes genéricos das peças de indumentária feminina ou masculina nos arrolamentos de esmolas para a Igreja.[16]
Desse modo, no período moderno, a linguagem das roupas era constituída por palavras mistas, sem uma definição lingüística definida. Em outras palavras, as línguas nacionais, como francesa, alemã, inglesa, espanhola, portuguesa e italiana não possuíam unidades definidas. O latim permanecia como base para distinções e especificidades e era distante dos eruditos renascentistas.
Para além da explicação dos sentidos adquiridos pelas palavras habitus, vestimentas, vestes, costumes e moda, é preciso discutir conceitos como economia e cultura indumentária, bem como gênero, na reconstituição, compreenção e explicação das metamorfoses da moda. Reforça-se, portanto, a necessidade da elaboração de um contexto para uma desejável aproximação dos conceitos sobre as principais características dessas mudanças.



[1] Jacques Le Goff e Nicolas Truong. Uma História do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 141-142.
[2] Idem, p.74.
[3] Sarah-Grace Heller. Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp. 109-110.
[4] Boucher.  François Boucher. História do Vestuário do Ocidente. São Paulo: CosacNaify, 2010, p. 146.
[5] Susan M. Carroll-Clark. Bad Habits: clothing and textiles references in the register of Eudes, Archbishop of Rouen. In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.1, 2005, pp. 81-86.
[6] Idem, pp. 90-91.
[7] Tomas M. Izbicli. Forbidden colors in the regulation of clerical dress the Fourth Lateran Council (1215) to the time of Nicholas de Cusa (d. 1464). In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.1, 2005, pp. 105-114.
[8] Idem.
[9] John Harvey. Homens de Preto. São Paulo: Unesp, 2003, p. 62. (tradução)
[10] Sarah-Grace Heller. Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval Textile decoration. In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.5, 2009, pp.15-16.
[11] Idem, pp. 19-20.
[12] Idem, p. 26.
[13] Idem, pp. 20-35.
[14] Idem, p. 35.
[15] Charlot A. Stanford. Donation from de body for the Soul: apparel, devotion and status in Late Medieval Strasbourg. In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.6, 2010, pp.173-205.
[16] Idem, p. 202.

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