Nos fins da Idade Média, constituía-se a moda cavalheiresca,
centrada na relação com o corpo da sociedade cristã. E era nesse momento que as
distinções de roupas de homens e mulheres eram descritas nas canções de gesta e
eram marcadas pelas mudanças nas conjunturas e estruturas econômicas, políticas
e sociais.
No século XII, o comércio crescia Mediterrâneo e no Norte da Europa, formavam-se dos Estados Nacionais (marcada pela figura real e pelo crescimento
das instituições administrativas), da sociedade de corte e despontava a figura da
burguesia mercantil, enriquecida também pelo comércio têxtil com o Oriente e
interno nas fronteiras europeias. Além disso, as corporações de
ofício e as especializações na produção de tecidos finos adquiriam uma nova extensão. Toda essa
conjuntura das cruzadas, das gestas na literatura cavalheiresca estavam presentes nesse momento de ascenção
moda cavalheiresca.
Essa moda cavalheiresca estava condicionada à “incorporação
social”, por meio do processo de investidura e das corporações de ofício. Segundo Le Goff, a roupa “é não somente
dorno, mas também proteção e armadura”, enquanto o nu era “risco moral, falta
de pudor o erotismo.” O processo de vestir-se era, confrome o mesmo, um rito
“significativo”, na “ordenação do monge e do clérigo”, na “investidura do
cavaleiro. Quando da consagração dos reis, o abandono das roupas anteriores e a
adoção de hábitos reais constituem um
dos ritos mais importantes”. Esse jogo entre a nudez e a vestimenta continua na
valorização da beleza física, como as tranças e o recato feminino, e a
admiração do corpo do cavaleiro, como Lancelote, herói dos romances arturianos.
Ainda conforme o autor, “...heróis e heroínas corteses impõem-se também pela
beleza de suas roupas, favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda”. [1]
Nesse sentido,o autor levanta a necessidade de desenvolver a “História da moda
indumentária na Idade Média”, com o estudo da relação do corpo (como cabeleira,
bigode, barba), com a “evolução de enfeitar o rosto” (principalmente por parte
das mulheres) a partir dos estudos literários e iconográficos. [2]
Apesar
da maior parte da historiografia apontar a origem da moda no século XIV,
Sarah-Grace Heller, no artigo “Fashion in French crusade literature: desiring
infidel textiles”, defende a ideia de que o contato entre cristãos e infiéis
nas Cruzadas, a partir de 1190, transformava os modos de vestir dos primeiros,
por meio das trocas comerciais de tecidos de diferentes técnicas de fabricação,
coloração, ornamentos e dos intercâmbios culturais com os árabes e bizantinos,
que usavam diversas indumentárias. Como exemplo, apontou os têxteis de seda, a
cor púrpura do império de Bizâncio, os botins das conquistas de Jerusalém e o
enriquecimento do território mediterrânico como o caso da Sicília e da
Península Ibérica.
Os
cristãos consumiam joias de ouro, topázio e esmeralda, elmos verdes, malhas bem
enlaçadas, bandeiras de seda, bem como novas peças, como o siglaton (veste de ouro), e bordados com motivos de pássaros e
peixes. Além disso, a autora abordou as modas islâmicas, centradas nas
diferentes colorações e texturas. Dentre as indumentárias islâmicas
importantes, destacou o khil’a
(ornamentos honoríficos com carcterísticas diferentes para cada pessoa e os tiraz) cintos tecidos com desenhos
decorativos em ouro.[3]
As
camadas populares do Velho Mundo vestiam-se ainda de maneira mais simples com
tecidos de lã e sapatos rústicos. Mas as vestimentas religiosas passavam
lentamente por modificações nos detalhes, como os ricos bordados sobre ícones
religiosos.[4] Susan M. Carroll-Clark, em “Bad Habits: clothing and
textiles references in the register of Eudes, Archbishop of Rouen”, trata da
reforma religiosa de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão, em 1215, no que
se refere aos têxteis e indumentária. A autora destacou a crítica à
“desnecessária ornamentação” dos monges por meio de relatos do Arcebispo de
Rouen. Salientam-se, dentre os artefatos, o uso da camisa de linho, o tabardo (espécie de short, proibido para
monges e padres) e da capa (espécie
de pequena faixa, geralmente, de seda). Com relação aos têxteis, consumiam a
lã, seda, o barracan e peles das mais
variadas espécies, como coelhos e raposas. Também possuíam acessórios como
sapatos, cintos (de tecido e metálicos), véus, cuff, ou cucufa (espécie de capuz).[5]
A
autora também nota que geralmente os artigos de luxo proibidos pela legislação
papal eram encontrados nos monastérios, como as comuns camisas de linho, as
peles de coelhos e a roupa de lã listrada (serge
radiata). Às freiras era também interditado o uso de jóias e ornamentos
luxuriosos em seus véus. No entanto, a autora encontrou referências de
religiosas com esses bens, sendo que esses podiam ser comercializados.
Havia,
portanto, dificuldade de se compreender as distinções e mudanças no vestir do
interior dos membros da Igreja porque os clérigos, no século XIII, ainda
vestiam-se de maneira próxima a outras camadas sociais.[6]
Nessa
linha de pesquisa, Tomas M. Izbicli estuda as cores das vestimentas
eclesiásticas, em “Forbidden colors in the regulation of clerical dress the
Fourth Lateran Council (1215) to the time of Nicholas de Cusa (d. 1464)”. Nesse
artigo, o autor destacou as restrições impostas em várias legislações
suntuárias dos concílios da Igreja Católica Apostólica Romana, de vestimentas e
ornamentos de cores vermelhas e verdes (pannis rubeis aut viridibus) de ornamentadas de dourado (deauratis) nas suas vestimentas e da
prática de freqüentar tavernas. Segundo os decretos gregorianos de 1234, as
mulheres judias eram obrigadas a colocar faixas azuis em seus véus. E,
especialmente para as vestimentas femininas, o Cardeal Latino Malabranca, em
1279, proibia qualquer mulher de vestir-se imodestamente, revelando-se muito ou
apresentando seu corpo.[7]
Além dessas regras, vários outros
concílios menores tentavam regular os materiais, as formas e as cores das
indumentárias clericais durante os séculos XIII e XIV. A proibição de sapatos,
faixas e outras peças verdes ou vermelhas faziam parte das regulamentações da
Igreja. Durante o século XIV, as proibições passaram a diminuir, sendo que no
Conselho de Basel (1431-1449), o tema das restrições vestuárias não estava em
pauta. Apesar da tentativa reformista de Nicolau de Cusa (Reformo Generalis), o papado mantinha-se com o crescimento do luxo,
principalmente na corte romana.[8]
No
que se refere à indumentária religiosa, John Harvey, em Homens de preto, destaca que os dominicanos, ordem fundada por
Domingo Guzman em 1215, ficaram conhecidos como os “frades negros”, pois se
vestiam com manto e capuz negro por cima de manto e capuz branco. Conforme o
autor, “Nos Frades Negros encontramos o grande paradoxo do preto, pois o preto
é uma quantidade negativa, a ausência de cor: considerada como uma cor, que se
escolhe vestir, ela é o sinal da abnegação e da perda. Entretanto, a abnegação
pode também conferir poder e autoridade sobre os não-abnegados. A abnegação
total pode dar a idéia de santidade e fazer do abnegado um exemplo a ser
admirado com reverência e temor, e o preto, entendido como a cor do poder sobre
si mesmo, tornou-se a representação de uma impressionante e intensa
introversão. (...).”[9]
Em outro artigo, intitulado “Obscure
lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of
Medieval Textile decoration”, Sarah-Grace Heller destaca a dificuldade de
compreensão da linguagem das roupas em diferentes momentos históricos. Afirma
que é necessário realizar uma aproximação
dos significados das palavras sobre os têxteis e a indumentária. Para isso,
conforme a autora, deve-se tratar do tema valendo-se da categoria gênero,
quando se analisam textos literários como os de Chrétien de Troyes (c. 1165-70)
e Marie de France.[10]
Heller observa que era raro encontrar
dados a respeito de mulheres bordando ou tecendo nas fontes literárias dos
séculos XII ao XIV. Aponta, além disso, para o crescimento das manufaturas
têxteis, em Paris, com a participação feminina, enquanto que a produção
doméstica de tecidos de luxo entre a aristocracia diminuía de importância.[11]
A partir de 1292, por meio da análise da documentação das corporações de
ofício, nota-se a presença de brodadeurs (bordadores)
e broderesses (bordadoras),
destacando-se aqueles que produziam os brocados com ouro.[12]
A
autora ainda sugere a necessidade de entender a constituição do trabalho têxtil
imbricado com o religioso. A atividade de ofício estava diretamente relacionada
com a religiosidade cristã a partir da confecção de tapeçarias com motivos
hagiográficos durante os séculos XII e XIII. [13] Essas “roupas exóticas”[14] seriam peças relacionadas ao sobrenatural e ao maravilhoso,
pois eram feitas com tecidos do Oriente Médio, originário das Cruzadas, bem
como possuíam características religiosas, principalmente nas formas e no seu
consumo em missas, rezas e batalhas contra os infiéis.
Nesse
sentido religioso, Charlot A. Stanford, no artigo “Donation from de body for
the Soul: apparel, devotion and status in Late Medieval Strasbourg”, analisa o Book Donors, relacionando-o com as
doações para a construção da catedral de Strasburgo, do século XIII ao XVI.[15] Nessas listagens, a autora encontra expressões em latim,
alemão ou até mesmo termos mistos referentes às vestimentas mais significativas
dos espólios de doadores, geralmente falecidos. Era comum a referência às
esmolas serem apenas declaradas como “vestimentum”,
ou mesmo a sua abreviação: vestes. Segundo a pesquisadora, eram encontrados
nomes genéricos das peças de indumentária feminina ou masculina nos
arrolamentos de esmolas para a Igreja.[16]
Desse
modo, no período moderno, a linguagem das roupas era constituída por palavras
mistas, sem uma definição lingüística definida. Em outras palavras, as línguas
nacionais, como francesa, alemã, inglesa, espanhola, portuguesa e italiana não
possuíam unidades definidas. O latim permanecia como base para distinções e
especificidades e era distante dos eruditos renascentistas.
Para
além da explicação dos sentidos adquiridos pelas palavras habitus, vestimentas, vestes, costumes e moda, é preciso discutir
conceitos como economia e cultura indumentária, bem como gênero, na
reconstituição, compreenção e explicação das metamorfoses da moda. Reforça-se,
portanto, a necessidade da elaboração de um contexto para uma desejável
aproximação dos conceitos sobre as principais características dessas mudanças.
[1] Jacques Le Goff e Nicolas Truong. Uma História do corpo na Idade Média. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 141-142.
[2] Idem, p.74.
[3] Sarah-Grace Heller.
Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress.
Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp.
109-110.
[4] Boucher.
François
Boucher. História do Vestuário do
Ocidente. São Paulo: CosacNaify, 2010, p. 146.
[5] Susan M. Carroll-Clark. Bad Habits: clothing and textiles
references in the register of Eudes, Archbishop of Rouen. In: Robin Netherton
& Gale R. Ower-Croker. Medieval
Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.1, 2005, pp.
81-86.
[6] Idem, pp. 90-91.
[7] Tomas
M. Izbicli. Forbidden colors in the regulation of clerical dress the Fourth
Lateran Council (1215) to the time of Nicholas de Cusa (d. 1464). In: Robin
Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval
Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.1, 2005, pp.
105-114.
[8] Idem.
[10] Sarah-Grace Heller.
Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary
of Medieval Textile decoration. In: Robin Netherton & Gale R.
Ower-Croker. Medieval Clothing and
textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.5, 2009, pp.15-16.
[11] Idem, pp. 19-20.
[12] Idem, p. 26.
[13] Idem, pp.
20-35.
[14] Idem, p. 35.
[15] Charlot
A. Stanford. Donation from de body for the Soul: apparel, devotion and status
in Late Medieval Strasbourg. In: Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles.
Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.6, 2010, pp.173-205.
[16] Idem, p. 202.
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