A economia indumentária da vila de São Paulo deve ser compreendida e
explicado a partir dos processos de expansão e colonização portuguesa. Nessa
perspectiva, as transformações na produção, circulação e no consumo dos
indumentos também fazem parte integrante da história mais geral da montagem e
das mudanças do Império Colonial Português.
Assim, o objetivo desse trabalho é realizar uma interpretação das
mudanças na produção, comércio e consumo indumentário estabelecidos na vila de
São Paulo durante os anos de 1554 a 1600. Para a realização desse trabalho procurou-se
abordar vários tipos de fontes coloniais, tais como atas da câmara, cartas jesuíticas,
testamentos, inventários pós-mortem,
bem como os cronistas quinhentistas.
Desse modo, as abordagens das fontes e a contextualização das mesmas
tornam-se relevantes para a formulação e elaboração da hipótese de trabalho, a
qual se concentra nos debates sobre os têxteis e a indumentária. No entanto,
faz-se necessário, primeiramente, uma apresentação da documentação primária, e
depois a apresentação do tema.
No primeiro século da colonização, na capitania de São Vicente
constituíram-se as primeiras famílias da elite paulista por meio dos combates e
aprisionamento dos gentios. [1]
Contudo, nos domicílios paulistas, as mulheres senhoriais trabalhavam na
manutenção e nos cuidados com as crianças por meio do comando das escravarias
indígenas. A partir disto, assumiam papéis importantes no seio familiar. Nas
casas e nos sítios, locais de moradia e de produção das famílias senhoriais,
figuravam os móveis e utensílios de metais, que para muitos eram considerados
objetos de extremo valor. Dentre os mais comuns, destacavam-se as redes de
dormir – fabricadas com o algodão da terra -, as ferramentas de uso cotidiano,
como as facas, as caixas de madeira, os caldeirões de latão, os teares e os
fusos.
Próximos às casas, os sítios tomavam parte significativa dos bens
arrolados nos inventários das famílias senhoriais. A liderança doméstica das
senhoras sobre as escravarias era importante para a manutenção econômica da
vila de São Paulo de Piratininga. Solteiras, casadas ou viúvas, as mulheres
trabalhavam nas lavouras de produtos alimentícios, no cercamento dos gados e na
indústria caseira de algodão, auxiliando no processo de constituição do
patrimônio familiar e na acumulação de excedentes de capital, comercializando
com outras regiões da América portuguesa.
Na Capitania de São Vicente o algodão era plantado, colhido e descaroçado
nas lavouras e nos sítios das famílias senhoriais da vila de São Paulo, desde
os finais do século XVI. As posturas das câmaras paulistas, tentavam regular as
atividades dos artesãos domésticos, que tinham como auxiliares a mão-de-obra indígena.
Na ata da Câmara de Ata do dia 15 de outubro de 1584 os homens bons camarários,
o juiz Manoel Fernandes, o vereador Francisco Pereira e o procurador do
conselho Àlvaro Nero cobravam dos tecelãos e das tecedeiras que não
adulterassem os metros dos tecidos, sob pena de 1$000 réis.[2]
Além das constantes queixas das alterações das medidas dos panos de algodão.[3]
Contudo, a produção algodoeira crescia na passagem do Quinhentos para o
Seiscentos para o consumo da população do sertão. No inventário de Maria Gonçalves,
em 1590, havia $920 réis em fios de algodão.[4]
Oito anos depois, no inventário de Izabel Felix, moradora do Tejeguaçu, era
encontrado $400 réis para uma arroba de algodão. Segundo Sérgio Buarque de
Holanda, esse produto valia “aproximadamente” 2$000 réis o quintal. No entanto,
de 1599 até 1600, havia a variação de $800 até $640 réis à arroba.[5]
É interessante observar também que nas atas da câmara, a governança da
terra debatia sobre a relevância da produção algodoeira. Em 1606, os agentes
camarários escreviam ao donatário da Capitania afirmando, “Pode Vossa Mercê fazer aqui grande reino a
Sua Majestade, há grande meio e trato para Angola, Perú e outras partes,
podem-se fazer muitos navios, que só o bem se pode trazer de lá, pois há muito
algodão, muitas madeiras e outros achegos”.[6]
Contudo, as mulheres e famílias senhoriais, habitualmente, produziam
algodão e tecidos desse produto para o consumo local. Maria de Paiva, na
viuvez, administrava com a família o sítio com casas de palha de algodão e
demais plantas (16$000 réis). Essa proprietária conseguia estocar 3 arrobas de
algodão (1$440 réis) e tinha no arrolamento apenas 2 camisas de algodão e 2
ceroulas. Comandava 14 cativos de nação Tememynós, sendo três crianças e duas
senhoras idosas.[7]
Desse modo, as senhoras conseguiam auxiliar os familiares, atuando na
produção algodoeira graças à mão-de-obra das mulheres escravas indígenas e dos
curumins, que faziam as tarefas mais difíceis e penosas. Ainda nos meados do
século XVI, as cunhãs e os curumins especializavam-se na produção dos tecidos
caseiros de algodão, sendo responsáveis pela mão-de-obra de todo o seu fabrico.
Desde o plantio até a confecção dos tecidos, as mulheres senhoriais controlavam
o feitio dos tecidos e das vestimentas de algodão da terra. As populações
indígenas eram provenientes das expedições através dos sertões chefiadas pelos
homens. Contudo, nos primeiros tempos da colonização, a população gentílica era
o remédio e a sobrevivência das camadas senhoriais de toda a América
Portuguesa, sendo fundamentais para a constituição do patrimônio senhorial.
Dessa maneira, a mão-de-obra feminina escrava também era treinada para
trabalhar na indústria de artesanato de suas senhoras, como tecedeiras de
produtos caseiros que abundavam nos inventários paulistas.Enfim, o algodão era
plantado, colhido e descaroçado nas lavouras e nos sítios das famílias e das
mulheres senhoriais da vila de São Paulo, desde os finais do século XVI.
Assim, os pequenos algodoais da vila formavam parte importante do
patrimônio para o sustento destas mulheres e suas famílias. O trabalho feminino
levava a uma produção variada de tecidos e vestes. Com a utilização da
mão-de-obra das mulheres tecedeiras e costureiras, bem como dos alfaiates
formava-se um sistema indumentário, no qual se produzia uma variada gama de
indumentárias, como o gibão que encarnava o ethos
militar das expedições paulistas, representando a capacidade guerreira dos
sertanistas, e assim, eram vendidos para Angola. Era também como o auxilio
desta indumentária que os colonizadores expandiram-se por todo o vasto
território inóspito da América Portuguesa.
Além disso, graças ao comando das senhoras e ao trabalho das escravas
indígenas tecedeiras que o povoamento e a expansão territorial se estenderam
por todo o Seiscentos. As armaduras faziam com que os senhores se protegessem
das setas indígenas e conseguissem participassem com destaque nas guerras
brasílicas. Assim, este trabalho feminino, realizado geralmente em grupo, foi
essencial para a sobrevivência da vida econômica na São Paulo Colonial.[8]
Assim, a economia e a sociedade paulista se voltavam ora para a mercancia
no litoral, ora para o sertão em busca de mão-de-obra indígena para as lavouras
e sítios. Em uma zona de fronteira, esta
sociedade estava em constante movimento, possuindo características e valores
próprios, diferenciados das regiões centradas na economia açucareira. A partir
do consumo de vestes com tecidos importados e de algodão cru, que eram
elaborados para as caridades das senhoras, bem como comercializado nas redes do
Atlântico.
Entre os moradores da vila de São Paulo que pertenciam à elite senhorial
e de mercancia estabelecia-se um teatro ostentatório, no qual as roupas,
produzidas com tecidos importados tinham o significado de estabelecer o status
do indivíduo perante seu grupo social. No entanto, nesta economia indumentária,
as escravas gentílicas e negras, assim como as mulheres livres e pobres lutavam
para a manutenção de prestígio, consumindo, na medida do possível, roupas e
acessórios mais próximos das grandes senhoras da terra.[9]
Vale ressaltar novamente que as mulheres escravas indígenas voltavam-se
para as atividades da casa e dos sítios das famílias senhoriais paulistas.
Cuidar dos filhos dos senhores, criar animais e ser força de mão-de-obra na
lavoura, conjuntamente com os curumins e às vezes com os esposos que
embrenhavam-se nas expedições pelos sertões, eram trabalhos penosos e demorados
feitos cotidianamente por essas cunhãs cativas. Essas negras da terra,
habitualmente, também eram responsáveis pela realização dos transportes de água
das fontes da vila para as casas senhoriais, assim como pelo leva e trás dos
tecidos de algodão.
Enfim, esses cativos da região Sul da América portguesa pareciam ter um
conhecimento rudimentar de técnicas de tecelagem. Desse modo, fazia parte do
cotidiano feminino o trabalho com o algodão e a produção de indumentárias para
toda uma população, a qual se movimentava por todo o Atlântico Sul.[10]
A partir da segunda metade do século XVI, catequese, colonização e
povoamento avançavam através do sertão nos Campos de Piratininga. Desse modo,
desde 1532 a Capitania de São Vicente passava a ser povoada e juntamente com
esse processo as relações entre a economia indumentária e nos modos de se
vestir alteravam o cotidiano das populações indígenas e brasílicas.
Com a dificuldade colonizadora na primeira metade dos Quinhentos, devido
à resistência gentílica e as expedições francesas e espanholas nas costas
brasílicas, a Coroa portuguesa decidia estabelecer um Governo Geral, bem como a
Companhia de Jesus. Dessa maneira, a região costeira da América portuguesa
ficava povoada graças à formação das feitorias e ao processo de catequização
dos gentios. [11]
No Novo Mundo o consumo indumentário era descoberto e transformado com
uma criatividade importante, que passava aos olhos contemporâneos do século XVI
como exótico. A teatralidade dos gestos foi sempre presente na sociedade
colonial, mas na civilização do algodão pode-se perceber descrições de
indumentárias importadas e da produção caseira, encontrada nos inventários post mortem.
A importância significativa da indumentária também traduz o sentido de
desolamento e a necessidade de se apegar aos valores europeus no mundo colonial
como um todo.[12]
Com roupas de veludo e sedas, não condizentes com o meio, o sentimento de
“desterro” e o ato de se ligar ao Velho Mundo ocorria por meio das vestes. No
entanto, na vida diária a colônia se distanciava da Metrópole também no modo de
se vestir, pois os colonos eram obrigados a utilizar gibões de algodão,
realizados com o comando e o trabalho das mulheres coloniais paulistas. Para
isto e para o remédio da terra paulista, era necessário estender através do
território, a caça de aprisionamento da população indígena, principalmente na
região Meridional da América Portuguesa.
No início da década
de 1560, a vila deixava de ser somente um povoamento longínquo e crescia a
quantidade de cativos e senhores, por meio das migrações coloniais internas e
dos resgates de negros e negras da
terra. Também essa região passava a ser fortificada a mando do governador Geral
Mem de Sá (1558-1572).[13]
Apesar desse
princípio de povoamento dos colonos lusitanos, o jesuíta Manuel da Nóbrega
queixava-se, em 1561, da falta de cama e de vestes para os indígenas, os quais
andavam nus pela vila.[14]
Com essa falta de indumentárias e com a precária vida material na região, os
inacianos defendiam os trabalhos artesanais e os ofícios mecânicos.
Assim, esses trabalhos mecânicos relacionados com a
indumentária parecem ter crescido de acordo com o processo de resgate dos
gentios e a formação da mão-de-obra escravista na Capitania e Vila de São Paulo,
onde formava-se, então, uma civilização do algodão que se caracterizava
predominantemente pela utilização da força de trabalho das mulheres escravas
tecedeiras guaranis, bem como pelo comando das senhoras da elite, que adquiriam
jóias e tecidos de luxo.
Ademais, as referências ao artesanato com o couro e ao comércio com a
região consteira, encontram-se informações importantes nas atas da Câmara da
vila de São Paulo. Conforme percebe-se nessas atas, que se faziam sob a ótica
dos interesses das autoridades da governança da terra, os mercadores atingiam
os seus tentáculos na vila de São Paulo, pois era esse o mais importante
entreposto entre o mar e o sertão, onde se configurava ponto estratégico para a
expansão colonial. Desse modo, conquistar, povoar, produzir o botim e depois
explorá-la, foi um processo fundamental na realidade da vida material da
colônia.
Enfim, nas atas camarárias, encontram-se decisões da governança da terra,
na qual participavam o juiz, vereadores, procuradores do Conselho, almotaceis,
bem como o escrivão. Além desses, existiam referências aos capitães, ou mesmo
aos porteiros, no entanto, na vila de São Paulo, os membros camarários nem
sempre estavam presentes, pois constantemente partiam para o sertão, ou mesmo
para as regiões litorâneas.
No ano de 1575, era marcante a presença dos moradores da vila nos
conflitos bélicos no Rio de Janeiro. O procurador do Conselho Domingos Luiz não
estava presente, pois “estava de caminho para o Rio de Janeiro e elle levava
consiguo o capitan a guera que requeria a sua mercê fezecem hum procurador a
sua ausência para se não perdesem as cousas do conselho...”[15]
A formação da vila de São Paulo contava com uma variada população de
oficiais mecânicos, os quais possuíam suas atividades controladas pela
governança da terra. No ano de 1578, participavam o juiz Baltazar Rodrigues, os
vereadores Salvador Pires e Jorge Nogueira, os almotaceis Antonio Cubas e
Gaspar de Britos, o contador Pero Dias, o alcaide Gaspar Nunes, bem como o
porteiro Pero Fernandes. Segundo decisão do conselho, no dia 19 de julho,
“nenhum tecelão nem tecedeira
tecesse pano que não seja pela marca do mar que é três palmos e meo de pena que
o que o contrário fizer pagara Mill réis pela primeira e pela segunda dos mil e
pela terceira três Mill cada dia a qual pena será há metade para o conselho
desta via e outra hametade para quem o auizar e na avendo acuzador pera todo o
conselho desta vila”.[16]
No mesmo ano, no dia 30 de agosto, os oficiais mecânicos como sapateiros,
carpinteiros, vendedores de mantimentos e carnes, assim como o serviço dos
alfaiates eram convocados a cobrir os caminhos, fontes e pontes, devido às
intempéries das fortes chuvas presentes na vila.
É interessante notar ainda a presença da população ibérica na região dos
Campos de Piratininga, aonde realizam os mais variados ofícios de trabalhos
mecânicos. No entanto, os trabalhos eram feitos cada vez mais por povos conquistados
como os Tupinambá durante a segunda metade do século XVI.
Nesse contexto de povoamento através dos sertões e de resgate de cativos
na extensa Capitania de São Vicente, encontra-se o primeiro inventário
pós-mortem do sapateiro Damião Simões. Logo, a presença de um grupo
significativo de oficiais mecânicos relacionados à indumentária atuavam no
processo colonizador na região. Nessa fonte, encontram-se várias informações,
como a presença do Juís Ordinário Balthazar Rodrigues e dos avaliadores e moradores
da vila, Francisco de Brito e Baltazar Gonçalves, os quais eram responsáveis
por contabilizar os bens móveis e imóveis dos vários artefatos, provavelmente,
utilizados pelo falecido sapateiro, como os três pares de botas de porco e os
três pares de canos de mulher. Esses restos de couramas eram provenientes do
reino e da própria vila. Além desses objetos relacionados com o seu ofício
pode-se ainda encontrar os cativos Tupinambá, como um moço recém capturado,
valendo 3$000 réis, o qual ficou com a viúva grávida, uma escrava velha também
da mesma etnia, avaliada em 5$000 réis, presente no espólio do órfão. Ainda
havia mais uma terceira moça também Tamoia, pertencente ao filho do sapateiro,
que fora resgatada naquela época. Essa escravaria, contudo, pertencia ao
processo de aprisionamento dos colonos portugueses e índios Tupiniquim
contrário aos guerreiros Tupinambá.[17]
Nesse inventário, encontra-se a referência a outro sapateiro, Domingo
Dias, o qual emprestava cinco ou seis cruzados. Após a listagem do patrimônio
ainda existiam um tinteiro e os aparelhos do ofício de sapateiro colocados em
pregão. A venda desses objetos poderia ser feita também na base de escambo com
o açúcar existente que era originário da vila de Santos. Nesse processo, era
significativa a troca a fiado dos canos de botas por açúcar, que Gonçalo
Fernandes realizava. Desse modo, percebe-se a ausência de moeda corrente na
vida econômica da vila.[18]
Ao final do ano, Balthazar Rodrigues, curador do órfão, e irmão da viúva
Suzana Rodrigues, pagava dívidas existentes do processo do sobrinho, ao novo
juiz Manuel Ribeiro.[19]
Durante o processo do inventário pós-mortem do sapateiro Damião Simões,
os juízes variavam no decorrer dos anos. No dia 30 de julho de 1579, Diogo
Fernandes, juiz ordinário da vila, recebia o novo esposo de Susana Rodrigues,
Martim Rodrigues juntamente com o enteado Damião, com dois anos de idade, sendo
que esse órfão deveria ficar reparado com o “vestido da terra”.[20]
Nesse sentido, aos filhos sem pais era necessária a sobrevivência do dia-a-dia
material, como a alimentação, moradia e indumentária.
Enfim, o trabalho de gerenciar as atividades tecedeiras era muito
importante nesse momento. Encontra-se ainda no inventário a cobrança de que a
viúva devia 8 varas de algodão, das 20 que produzira. Além disso, Martim
Rodrigues pagava a dívida ao juizado dos órfãos em 3$435 réis, além dos oitenta
réis devidos às custas do innventário, sendo parte da dívida paga com as varas
de algodão.[21]
As informações sobre os modos de vestir das crias pequenas, bem como para
a população indígena são raríssimos nos inventários pós-mortem, assim como em todas as documentações quinhentistas e
seiscentistas.
Em relação às partilhas das heranças, o órfão recebia 16$800 réis e a
viúva ficava com o patrimônio líquido de 13$353 réis. Apesar dessa distribuição
judicial, a senhora Susana Rodrigues ficava a dever a escrava Tamoia nova, a
qual poderia ser trocada por “um pouco de fio que se havia de tecer”, o qual
“não foi nunca pano partido”, por ser de maior custo. Ou seja, provavelemente,
o valor do tecido de algodão estava relacionado ao preço da cativa, a qual
deveria pagar-se com a atividade tecelã. Assim, provavelmente, a viúva poderia
complementar a renda do esposo ao comandar o trabalho da escrava tecedeira indígena
Tamoia.[22]
Todavia, o processo inventarial se arrastava ao longo dos anos. Em meados
da década de 1590, contavam ainda com mais cativos, como um escravo, com sua
mulher “andante”, uma filha de 6 ou 7 anos, bem como um menino pequeno de
peito. Além dessa família cativa indígena, os senhores possuíam outro negro da
terra por nome de Jabiranga, com um filho e uma menina curumim de mama, valendo
essa apenas 64 cruzados. Mais uma família era contabilizada no inventário do
sapateiro, uma índia por nome Gurayba e um filho por nome Francisco.
Com o interesse pelo patrimônio paterno, Damião passava a se emancipar e
assumir os seus bens logo no início do século XVII. Desse modo, o órfão
conseguiria, assim, a possibilidade de constituir outro núcleo familiar e
trabalhar para adquirir novos patrimônios a partir da herança recebida pelo pai
à bastante tempo falecido. Além disso, o emancipado conseguiria “reger” os
próprios bens imóveis e cativos.[23]
Enfim, os tecidos de algodão encontrados no inventário, bem como as escravarias
foram os bens mais importantes. Desse modo, o primeiro inventário pós-mortem paulista é significativo
tanto para o tema da produção, circulação e consumo algodoeiro quanto para a
economia indumentária como um todo, pois o inventariado era de um oficial
mecânico.
Suzana Rodrigues, casada com o sapateiro Damião Simões, que faleceu por
volta de 1575. A senhora também era irmã do juiz ordinário Balthazar Rodrigues
e do tabelião Paulo Rodrigues, e mãe de Damião Simões, que aprendia o ofício de
barbeiro em São Vicente com Antonio Rodrigues. Em Piratininga, a viúva casou-se
novamente com Martim Rodrigues, comerciante espanhol, pecuarista. Com esse
cônjuge teve ainda mais três filhas, Maria, Tenória e Ana da Veiga.
Viúva pela segunda vez, passou a administrar um patrimônio de 90$000 réis
e 57 cabeças de gado, além de controlar uma força de trabalho de 25 escravos.[24]
De acordo com o inventário do segundo cônjuge:
"foi entregue toda esta fazenda conteúda neste
inventário á viúva Suzana Rodrigues por estar satisfeito dela ser mulher
para governar a sua casa e casar a sua filha por se já de idade para isso e
haver casado já outras duas em ausência de seu marido Martim Rodrigues e ela se
deu por entregue e prometeu cuidar de sua filha e casá-la a melhor que puder com
seu consentimento dele dito juiz e porá em cobro e arrecadação e multiplicação
como cousa sua própria e pela confiança que tem dela e o prometeu fazê-lo assim
e tudo perante seu filho Damião Simões que a tudo esteve presente e por ela não
saber assinar eu tabelião assinei por ela eu Simão Borges”[25]
Fazia parte do espólio da
família as obras O Retábulo da vida de Christo, uma Chronica do Grão
Capitão, Instruções de Confessores e Mysterios da Paixão.
Essas obras demonstram que a senhora Suzana Rodrigues podia “governar a sua
casa e a casar a sua filha” e tinha uma posição mais destacada na sociedade
senhorial e estamental da vila de São Paulo, apesar do primeiro esposo ser
sapateiro e do primogênito ter o ofício de barbeiro. [26]
Outro importante inventário pós-mortem
relacionado aos oficiais mecânicos, era o de Francisco da Gama de 1600. Casado
com Jeronyma Fernandes e pai de Maria, o alfaiate deixava um monte-mor de 55$500
réis, sendo 30$000 réis em mão-de-obra. Todavia, a fortuna familiar era
reduzida devido às dívidas de 23$500 réis.A viúva casava-se novamente com
Baltazar Gonçalves, no entanto, continuava com a metade do patrimônio, uma
quantia de 11$773 réis. Ademais, esse oficial deixava uma significativa
escravaria de 9 indígenas contabilizadas.[27]
Em suma, as camadas senhoriais obtinham além da posse de escravos, jóias,
vestidos importados e outros artigos de luxo, como as roupas importadas do
Reino, Flandres e de outras paragens. As vestes e adereços davam-lhes uma
posição social destacada da população indígena. Além disso, formava-se uma
camada senhorial e mercantil, a qual atuava na incipiente mercantilização da
vila,[28]
presente nas tramas mercantis, através do Caminho do Mar, comercializando os
artefatos de luxo das senhoras e dos senhores da vila de São Paulo.[29]
Enfim, a economia indumentária da vila de São Paulo era marcada pelas
atividades econômicas e caseiras da produção algodoeira, pelo comércio de
produtos importados do reino e de Flandres, bem como pelo consumo de artefatos
como sapatos de couro caseiro e indumentárias, as quais passavam a ser cada vez
mais comercializadas no interior da vila, por meio da venda de roupas e
acessórios usados. Mas isso, ainda é outra história.
[1]
John M. Monteiro. Negros da terra. Índios e Bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[2] Atas da Câmara da vila de São Paulo (1562-1596). São
Paulo: AMSP, 1914, pp. 248-249.
[3] Idem, pp. pp.293-295
[4]
Inventário de Maria Gonçalves (1590). I.T. São Paulo: DAESP, 1921, vol.
1, pp. 185-383.
[5]
Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das
Letras, (1ª ed. 1957), 1997, p. 213.
[6]
“Carta ao donatário” In. Atas da Câmara da vila de São Paulo (1596-1622).
São Paulo: AMSP, 1915, vol. 2, p. 499.
[7]
Inventário de Jorge Rodrigues (1606). I.T. São Paulo: DAESP, 1937, vol.
30, pp. 47-67.
[8]
Igor de Lima. O fio e a trama. Trabalho e
negócios femininos na vila de São Paulo (1554-1640). São Paulo: Dissertação
de Mestrado apresentada na FFLCH/USP, 2006, pp. 122-155.
[9]
Uma análise dos códigos de vestir encontrados nas leis portuguesas e coloniais
encontra-se em Silvia Hunold Lara. Fragmentos
Setencentistas. Escravidão, cultura e poder. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, especialmente os capítulos “Diferentes e Desiguais” e “Os povos
da Conquista”, pp.79-125 e pp. 219-271.
[10]
“Armaduras de algodão, gibões resistentes às flechas de índios – fabricados e
usados pelos paulistas nas suas bandeiras – são importadas da capitania
vicentina pelos governadores de Angola a partir de 1612, e ao longo do século,
para servir de proteção nas escaramuças com os africanos. A utilidade dos
gibões parecia efetiva nas batalhas contra os frecheiros nativos: Luis Mendes
de Vasconcelos chegou a escrever a el-rei que o fabrico e uso das armaduras de
algodão pelos portugueses da América fazia a conquista o Brasil ser mais fácil
que Angola”. Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
pp. 95-96.
[11]
Sobre esse primeiro momento da exploração costeira do espaço da Terra de Santa
Cruz, ver Capistrano de Abreu. O
descobrimento do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, (1ª ed. 1883), 1999. Capistrano
de Abreu. Capítulos de História Colonial
(1500-1800). Brasília: Ed. UNB, (5ª ed.) 1963, pp. 58-62. Alexander
Marchant. Do escambo à escravidão.
São Paulo: Ed. Nacional, (2ª ed.), 1980. Leyla Perrone-Moisés. Vinte luas. Viagem de Paulmier de Gonnevile
ao Brasil, 1503-1505. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[12]
A respeito do desolamento e desterro das populações sertanistas no processo de
colonização, ver Laura de Mello e Souza. Formas provisórias de existência: a
vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA,
Laura de Mello e. História da vida
privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 41-81.
[13]
Serafim Leite, Op. Cit, vol. 2, pp. 76-98.
[14] Serafim Leite. Monumenta Historica Societatis Iesu.
Manumenta Brasiliae. Romoa/Coimbra: 1958, vol.3. (1558-1563). “Carta do P.
Manuel da Nóbrega ao Diego Laynes, Roma. De São Vicente, 12 de junho de 1561”, pp.361-362.
[15] Ata do dia 04 de fevereiro de 1575. in: ATAS da Câmara
da vila de São Paulo (1562-1596). São Paulo: AMSP, 1914, p.
[16] Atas da Câmara da vila de São Paulo (1562-1596). São
Paulo: AMSP, 1914, pp.118-122.
[17]
Essa fonte está alocada no Arquivo do Estado de São Paulo, na caixa C00478. O
seu estado de conservação está precário e significativamente alterado, estando
plastificado e danificado devido à atividade predatória do tempo. Ou seja,
dificilmente o documento manteve o seu valor original do século XVI. Todavia, é
necessário construir ainda uma história dessas fontes tão analisadas pela
historiografia paulista do século XX. Essa mesma fonte foi transcrita pelos
paleógrafos em fins da década de 1910. Ver Inventário de Damião Simões (1578).
São Paulo: AESP, 1920, pp. 3-22
[18]
Idem, p.8.
[19]
Idem, pp.9-10.
[20]
Idem, p. 13.
[21]
Idem, pp.17-18.
[22]
Idem, p. 15.
[23]
Idem, p.21.
[24]
Inventário e testamento de Damião Simões (1578). I. T. São Paulo: DAESP,
vol I, pp. 1-20. Inventário de Martim Rodrigues (1612). I. T. São Paulo:
DAESP, vol. 2, 1920, pp.5-76.
[25]
Inventário de Martim Rodrigues (1612). I. T. São Paulo: DAESP, vol. 2,
1920, pp 15-16.
[26]
Ibidem, pp.12-13.
[27]
Inventário de Francisco da Gama (1600). São Pauilo: AESP, 1920, pp.334-371.
[28] Charles Boxer, analisando a atuação feminina no plano
da expansão ibérica, relata que em Omuz, as viúvas tornavam-se cabeças de casal
e passavam a comandar as armadas de navio, sendo por isso chamadas de
“armadoras de navio”. C. R. Boxer. A mulher na expansão ibérica. Lisboa:
Livros horizontes, LTDA, 1975, p. 98.
[29] Dalene Abreu-Ferreira demonstrou que no norte de
Portugal, nas cidades de Aveiro, Vila do Conde, Viana do Castelo e Ponte de
Lima, durante o Quinhentos, existiam mulheres, geralmente viúvas, que atuavam
nas redes comerciais de peixes e de mercadorias a longa distância. Essas
mulheres comercantes investiam geralmente no comércio com o norte da Europa,
Inglaterra e Paises Baixos. Dessa forma, a historiadora defende a idéia que
apesar de não serem predominante, as mulheres possuíam um papel mais atuante na
mercancia do que afirmava a historiografia portuguesa. “Fishmongers and
shipowners: women in maritime of Early Modern Portugal”. In: Sixteenth
Century Journal. Vol. 31, no. 1, Special edition: gender in Early Modern
Europe. (Spring), 2000, pp. 7-23.
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