quarta-feira, 16 de maio de 2012

Introdução (Tese): "HABITUS" no Sertão: gênero, economia e indumentária na vila de São Paulo (1554-c.1650). Igor Renato Machado de Lima


 
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS









Igor Renato Machado de Lima




“Habitus” no sertão:
gênero, economia e cultura indumentária na vila de São Paulo (1554 - c.1650)








Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de doutor em História.
Orientador: Professora Dra. Eni de Mesquita Samara




São Paulo
2011
INTRODUÇÃO
O objetivo desta tese é realizar uma interpretação das mudanças ocorridas nas relações de gênero, na produção, comércio, e representações culturais das indumentárias na vila de São Paulo durante os anos de 1554 a 1650. Para a realização deste tema, procurou-se abordar vários tipos de fontes coloniais, tais como atas da câmara, cartas jesuíticas, testamentos, inventários post-mortem, bem como os relatos quinhentistas e seiscentistas. Eses documentos serão analisados por meio das aproximações possíveis e da contextualização dos séculos XVI e XVII.
A trajetória da tese originou-se da dissertação de mestrado: O fio e a trama: trabalho e negócios femininos na vila de São Paulo (1554-1640), cujos enfoques foram os papéis das senhoras e cativas na vida material, constituída por meio do trabalho e dos negócios das mulheres senhoriais.[1]
Uma primeira obra que aponta a relevância do tema é a obra de Fernand Braudel. Para esse autor, a indumentária possui um papel considerável, pois têm como características a produção, circulação mercantil e consumo dos têxteis e do vestuário. Dando os primeiros passos na linha da História da Indumentária, o historiador afirmou: “A história das roupas é menos anedótica do que parece. Levanta todos os problemas, os das matérias-primas, do processo de fabrico, dos custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais. Variado o traje por toda a parte se obstina em denunciar as oposições sociais (...)”.[2]
A historiografia brasileira, principalmente do período colonial, identificou aspectos importantes sobre a produção, circulação e consumo do algodão e da indumentária. No entanto, ainda é necessário desenvolver a temática durante os primeiros momentos da Colônia.
Gilda de Melo e Souza, tratando do consumo das modas, sobre o prisma sociológico, destacou o papel feminino nos modos de vestir. Para a mesma, a silhueta feminina e o espírito da moda atingiam a sociedade aristocrática da corte imperial do século XIX. A autora de O Espírito das roupas observou o importante caráter da História da Moda e da necessidade de desenvolver a temática. Entretanto, apesar de estudar a moda no contexto do Oitocentos, propôz uma questão intrigante a respeito das suas transformações: “...se cada vez que o estilo varia a moda cai sob o domínio da arte, o que explica a mudança? O que explica a necessidade constante de renovação, o cansaço ininterrupto das antigas formas?” [3]
É a partir deste questionamento que se pode observar a necessidade de desenvolver problemas pertinentes à produção algodoeira, assim como aprofundar o interessante tema da circulação e consumo dos tecidos, vestes e acessórios. Para isto, também é preciso identificar as transformações ocorridas na indumentária, assim como desenvolver este assunto na Europa e no  Novo Mundo durante séculos XVI e XVII.
O contato com as pesquisa de trabalhos importantes sobre cultura material do Museu Paulista foi fundamental para a constituição da definição do objeto de pesquisa. Dessa maneira, à luz da historiografia aliada à museologia e ao estudo das roupas e da cultura material, o Museu Paulista publicou, em 2006, uma coletânea intitulada, Tecidos e a sua conservação no Brasil, na qual se encontra uma série de comunicações que tratam do tema e dos problemas relacionados aos têsteis, tecidos e vestuário. A maior parte das análises possui uma perspectiva museológica, sobre a conservação, catalogação e possibilidades de abordagens dos trajes e das indumentárias.[4] Neste conjunto de artigos, é importante destacar o de Kátia Castilho, “Têxteis como documentação da técnica e da estética”, que aponta para a relevância do estudo da moda no conhecimento científico. [5]
Outro trabalho, nesta linha de pesquisa, é o de Teresa Cristina Toledo de Paula, “A excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”, que enfatiza a presença do mito da ausência de tecidos na História do Brasil, principalmente na Colônia. Sobre este assunto, notou que “(...) Herdamos e preservamos um repertório de imagens fictícias que raramente são postas em xeque e acabam cristalizando em nós um imaginário significativo sobre os tecidos disponíveis e sua utilização nos séculos precedentes”.[6]
Dentre essas obras, destaca-se a de Heloisa Barbuy, sob a perspectiva da História Urbana e da Cultura Material, tratando do comércio e da dimensão do espaço, predominantemente público, dos vestuários femininos e masculinos. As exposições das vitrines de roupas, chapéis, luvas e adereços da São Paulo do século XIX foram marcantes nessa “cultura da moda” no processo de transformação rápida da cidade.[7]
No campo da Cultura Material e da articulação entre Gênero e Artefato, Vânia de Carvalho abordou o sistema doméstico na cidade de São Paulo. As indumentárias, portanto, passaram a estar dentro da “vitrine de casa” da elite paulistana na passagem do século XIX ao XX.[8]
Também são importantes os trabalhos de Silvia Hunold Lara por abordar um tema ainda muito pouco estudado no período colonial. Em artigo de 1995, “Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815”, estudou o vestuário das mulheres negras escravas, as primeiras determinações legais portuguesas sobre o tipo dos trajes e defendeu a ideia de que a sociedade colonial mantinha “a função simbólica do vestuário como marca das distinções sociais”. [9] Em se tratando das relações entre o senhoriato e a escravaria feminina, a autora afirmou: “o olhar branco e senhorial experimentava uma flutuante ambiguidade na identificação do personagem que usava trajes luxuosos: ora parecia como mulher, ora como mulata ou negra, ou simplesmente escrava; ora a distinção de gênero e condição social era simplesmente resolvida pelo uso da palavra negro. Como mulheres, pareciam reunir em si uma somatória de pecados: ao andar à noite pelas ruas quebravam a regra que ligava recato e domesticidade, expunham-se publicamente e eram portanto associadas às prostitutas; por causa disto, senhoras e escravas podiam ser aproximadas, o luxo de uma podia ser visto como indutor da luxúria de outra e vice-versa. Expondo publicamente o poder das senhoras, o séquito de cativas ricamente vestidas acabava, aos olhos de alguns, estabelecendo uma similitude entre mulheres de condições sociais diametralmente opostas”. [10]
Avançando em sua pesquisa sobre a temática, a autora, em outro texto, publicado em 1999, “Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador (Século XVIII)”, chama a atenção para os raros estudos a respeito do vestuário e mais ainda das vestes das cativas. Para a Lara, “o uso de brinco, colares e outras jóias-amuletos, tanto por mulheres quanto por homens negros, bem como os balangandãs, por escravas ou livres, revela a resença cotidiana de devoções e cultos ou ainda de significados nem sempre facilmente desvendados pelos seus senhores. (...)”. Como exemplo das jóias ornamentais das escravas africanas, havia as malungas, pulseiras douradas com “motivos geométricos”, que variavam de significado conforme a hierarquia social da cativa em sua origem tribal na África. [11]
Novamente, especialmente no capítulo: “Diferentes e Desiguais” da obra Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa, publicada em 2007, Silvia H. Lara retomou o tema do vestuário no interior da sociedade escravista. [12] Nessa linha de pesquisa, destacou que “Revelador dos jogos hierárquicos no interior dos quais as diferenças eram mostradas, o tema das roupas e ornatos torna-se particularmente interessante para a análise que pretenda avançar em busca dos modos de dominação social e das distinções...”. [13]
Retomando o tema da legislação suntuária presente nos outros textos, a autora observou que “Os principais documentos legais [portugueses] do século XVI e XVII sobre essa questão seguem um mesmo padrão legislativo: proíbem o uso de capuzes, de guarnições de ouro nas armas e selas; determinados tipos de tecidos para o vestuário e alfaias domésticas, conforme a condição social das pessoas, além de estipular o número de criados e a quantidade de gente nos vários séquitos particulares, etc”. [14]
As legislações, os decretos e as ordens régias sobre as proibições de uso de determinadas vestes eram marcados pela afirmação da distinção sociais presente nas roupas. Um exemplo disso, eram as duas legislações régias de 1696, proibindo as caticas africanas trajarem “vestidos de seda, cambraia, holandas com rendas e brincos de ouro ou prata” .[15]
Na perspectiva da autora, as mulheres senhoriais eram vistas como “recatadas”, “reclusas” e “vestidas com mantos de baeta”. E, por isso diferenciavam-se das cativas, não pela ostentação, mas pelo séquito de acompanhantes. As escravas que, no entanto, saíam para as ruas sozinhas de maneira ostensiva eram entendidas como “símbolo do pecado”. [16]
Esses trabalhos, apesar de inserirem-se no período posterior desse doutorado, isto é, dos séculos XVIII e XIX, foram importantes na medida em que apresentaram linhas de pesquisa do objeto relacionando a vestimenta com o contexto histórico. Os artefatos têxteis e trajes apresentam-se na História somente em relação à sociedade de um determinado momento. Nesse sentido, os artefatos nunca podem ser estudados isoladamente do conjunto social.
As questões vinculadas à importância da economia e cultura indumentária dos tecidos também podem ser analisadas no discurso dos membros da Companhia de Jesus, presente nas Cartas Jesuíticas, que se encontram compiladas e impressas na obra Monumenta Brasiliae de Serafim Leite. Outra compilação do mesmo autor são as Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil.[17]
Além das cartas dos inacianos, serão tratadas as Atas da Câmara da vila de São Paulo, publicadas pela Câmara Municipal Paulistana, que revelam a vida administrativa e a atuação dos oficiais camarários. Nessas fontes, observa-se que as relações de poder e de fiscalidade são os temas mais representativos e desafiadores. No caso desta tese, a preocupação foi analisar a presença dos ofícios mecânicos e no comércio de algodão, tecidos e roupas, localizadas nos discursos das atas.[18]
Para abordar a participação econômica, da vida material e social dos paulistas, serão utilizados os inventários post-mortem. Pesquisados na publicação dos 47 volumes do Arquivo do Estado, essa série documental possui várias possibilidades de interpretação. Essas fontes revelam principalmente o arrolamento do patrimônio, tanto dos cônjuges quanto os pessoais dos moradores da vila de São Paulo, assim como a distribuição dos bens e dos cativos, fossem eles índios ou africanos da Guiné.
Também como fontes analisar-se-ão os testamentos da vila de São Paulo. Nesta série documental foram selecionados os testamentos daqueles que ditavam os desejos referentes aos bens e às últimas vontades em vida – tanto do gênero masculino quanto do feminino. Os testamenteiros deixavam legados e as últimas vontades, redigidas pelo escrivão, para os familiares e conhecidos. Por isso, essa fonte é significativa para se compreender a indumentária, no que diz respeito às mortalhas funerárias, doações de esmolas, partilhas da terça e do dote.[19]
Foi também devido à pesquisa documental sobre a presença das mulheres e de seus artefatos nas cartas jesuíticas, testamentos, inventários post-mortem e atas da Câmara da vila de São Paulo, que a preocupação de trabalhar com as metamorfoses das indumentárias e das modas foi despertada. Assim, as reflexões sobre História das Mulheres e da categoria de gênero foram fundamentais para a formulação da temática, bem como para a elaboração dos resultados da pesquisa.
A hipótese desta tese é de que os “habitus no sertão” constituíram-se em características importantes para a sobrevivência. Esses “habitus” formavam-se por meio das distinções de gênero, da constituição de uma civilização algodoeira, centradas nas armas do sertão, ou seja, os gibões fabricados pelas escravas tecedeiras indígenas e seus filhos; em uma cultura indumentária, baseada no espírito da moda cortesã; e nos consumos indumentários ostensivos. Além disso, na vida material rústica do sertão paulista, as vestimentas possuíam valores, econômicos e simbólicos, superiores aos de outros artefatos ou mesmo em relação às benfeitorias.
As metamorfoses das roupas adquiriam características próprias na zona de fronteira da América portuguesa. A partir da segunda metade do século XVI até a metade do outro, a vila de São Paulo era a região “periférica da periferia da economia mundo” conforme observa Maria Luiza Marcílio.[20] Mas esse espaço de fronteira era o centro irradiador de modos de vestir específicos, variando no espírito das modas cortesãs dos centros de Valença, Londres e Ruão, até as roupas feitas com peles de animais selvagens e tecidas ali mesmo na região, como o algodão da terra.
Dividide-se a tese em três partes. Na primeira, Aproximações e contexto: a modernidade da arte de vestir, será inserido o tema no enquadramento do contexto da Alta Idade Moderna e da Colonização na América portuguesa. Serão incluídas questões teóricas e metodológicas, como a historicização dos conceitos de “habitus”, moda, gênero, economia e cultura indumentária. Lembrando-se sempre que está em jogo não as vestes em si, mas as suas relações com as condições sociais, econômicas e culturais.
Para constituir essa primera parte, foram incorporadas as discussões de Françoise Piponnier & Perrine Mane, Dress in the Middle Ages, os avanços sobre as temáticas dos têxteis, indumetária dos artigos da Medieval Clothing and Textiles, da organização de Encontring Medieval Textiles and Dress e, nesse momento, destaca-se Cloting Culture.[21] Além desta bibliografia, é importante ressaltar a presença das obras do especialista em cores e em heráldica, Michel Pastoureau, de Daniel Roche sobre a “cultura das aparências” e do filósofo Giles Lipovetsky a respeito das principais estruturas da moda. [22] Sobressai-se nesses textos a obra de fôlego de François Boucher, a História do Vestuário no Ocidente.[23]
Os temas dos têxteis, da economia e cultura indumentária pressupõem contextos e conhecimentos mais amplos, sendo São Paulo Colonial o espaço do limite dos artefatos e da expansão colonial Seiscentista.
Desse modo, o segundo momento, Entre gibões e flechas: a civilização do algodão no planalto paulista, será referente à conjuntura econômica da vila e o florescimento da cultura algodoeira no interior de uma economia de produção de gêneros alimentícios. Ainda destacam-se os papéis econômicos dos negócios e dos trabalhos femininos na vila de São Paulo.[24]
Neste momento da tese, recorreu-se ao historiador já citado Fernand Braudel, que define vida material como sendo “homens e coisas, coisas e homens”. No caso desta parte da tese, é inspiradora a sua ideia de que “é das pessoas que temos que partir. Só depois poderemos falar das coisas”. [25] Nesse sentido, debateu-se, portanto, com a historiografia da História das Mulheres, de gênero e sobre a população, vida econômica e familiar paulista dos séculos XVI e XVII. Em outras palavras, estudam-se as relações de gênero e de mão-de-obra no contexto de povoamento dos “paulistas”, bem como da formação e expansão da cultura algodoeira. [26]
O consumo indumentário e os aspectos culturais, hierárquicos e modernos da moda serão os assuntos destacados na parte final, O espírito da moda cortesã: a indumentária no cotidiano da vila de São Paulo. As mudanças locais da região foram relacionadas com o contexto maior da vida material européia e ainda estarão inseridas nessa última etapa da tese. Acrescente-se a isso, o retorno às discussões dos capítulos anteriores sobre gênero, economia e cultura indumentária no Novo Mundo.
Contudo, as Aproximações de Fernando A. Novais são inseridas neste debate, bem como a necessidade de historicizar os conceitos e a de estabelecer ideias para aproximar-se o máximo possível da reconstituição, compreensão e explicação da realidade. Debate-se o “habitus” a partir dos termos de gênero, economia e cultura indumentária.[27] Conforme o autor, “os homens [e as mulheres] vivem, no curso da história, todas as dimensões da realidade, que a análise separa para explicar. Na realidade objetiva, portanto, todas as dimensões estão interligadas, e são interdependentes”.[28]
A partir disso, podem ser realizados questionamentos importantes, tais como: havia uma forma de vestir específica na Colônia? Como a presença do modo de ostentação e da teatralização das aparências entre as elites coloniais, isto é, a “moda” estava presente no mundo da América portuguesa? Utilizar esse termo não seria anacrônico?
Além dessas questões outras se apresentam. A vila de São Paulo, distante dos centros mercantis europeus conseguia adquirir produtos importados? Quais eram as transformações que ocorriam na produção, na circulação e no consumo dos têxteis no interior das sociedades da América portuguesa, e em especial na São Paulo Colonial? Quais foram os papéis dos oficiais mecânicos, essencialmente dos tecelões, tecelãs, e alfaiates na sociedade paulista? Existiam diferenças no consumo das vestes em relação aos gêneros e à hierarquia social? Se havia, quais eram?
Todos esses problemas levantados devem ser analisados por meio da abordagem da produção, da comercialização e do consumo indumentário da distante região do sertão paulista. No entanto, ainda é possível pensar em outras questões: Qual era o papel do consumo indumentário no conjunto do patrimônio da elite senhorial? Como transformava-se o consumo das vestes e dos acessórios? Quais eram as diferenças entre os gêneros na forma de vestir? E, como era modificada a silhueta feminina e masculina com a alteração do consumo indumentário colonial? Em outras palavras, a forma do corpo feminino variava se usavam vestidos de carmesim europeus ou trapos de algodão? E, na indumentária masculina, havia diferença na maneira de vestir entre o uso de gibão de algodão e o de uma camisa de linho do velho mundo? Para responder esses problemas, utiliza-se as explicações conceituais de gênero, economia e cultura indumentária. Levanta-se também alguns aspectos da moda e o seu significado durante os séculos XIII ao XVI.
A presença da crítica e da moral aos modos de vestir e, portanto, à moda já estava presente nos discursos das autoridades do mundo ibérico.
Apesar da temática ser muito específica, privilegiou-se conectar as referências pontuais das fontes primárias com abordagens mais amplas do mundo moderno, como a economia mundo mercantilizada, a cultura das aparências, as vidas domésticas, relações de gênero e familiares, bem como os papéis femininos nas estruturas e conjunturas históricas dos séculos XVI e XVII.
No processo colonizador, encontram-se os nexos de existência e o “viver em colônias”, no qual a Colônia era o “prolongamento da Metrópole, mas ao mesmo tempo a sua negação”.[29]
Procurar entender as mudanças na indumentária e da moda neste contexto e fazer conexões com essas grandes temáticas é essencial para a compreensão e explicação histórica. E, de acordo com Novais, “a tarefa, verdadeiramente fascinante, do historiador, será procurar as mediações que articulam os processos estruturais com a superfície flutuante dos acontecimentos”.[30]
Dessa maneira, analisar um objeto como a indumentária é um desafio, sendo necessário, portanto, um tratamento preliminar da temática, que levanta logo uma questão: Há uma História da Indumentária ou da Moda para todos os tempos e espaços?
Além da dificuldade do recorte do objeto, deve-se delimitar o tempo e o espaço, os quais são fundamentais para um estudo histórico. A cronologia é marcada pelo contexto da Alta Idade Moderna, na qual se constituiu o Renascimento, a formação das Monarquias, dos Impérios Ibéricos, as Reformas e, a Colonização no Novo Mundo e o povoamento de uma região de fronteira como a vila de São Paulo.
Apresenta-se ainda a tese de que existiam modas na colonização e em São Paulo nos primeiros anos. Ou seja, havia uma capacidade criativa relacionada ao consumo indumentário ostensivo e de luxo, que distinguia socialmente as pessoas em camadas estratificadas. A formação da incipiente mercantilização econômica da região fazia-se no mercado luxuoso e da economia indumentária colonizadora. A expansão da Colonização de exploração também se corporificava nas vestes das mulheres e dos homens, na medida em que eram presentes os artefatos indumentários, e as modas do Velho Mundo. Esses artefatos eram recodificados no universo da colonização portuguesa. Ademais, trata-se da expansão da moda cortesã e da sua adaptação ao universo da Colonização portuguesa e das ações de povoamento e de expansão territorial a partir do centro da vila de São Paulo de Piratininga, região periférica da Colônia, e, por isso, distinta nas mobilidades sociais e nas relações de gênero.
Assim, os objetivos, as hipóteses e os debates historiográficos apresentados nessa tese serão desenvolvidos e aprofundados no decorrer das sínteses das três partes desenvolvidas a seguir.


[1] Igor Renato Machado de Lima. O fio e a trama: trabalhos e negócios femininos na vila de São Paulo (1554-1640). São Paulo: Dissetação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP, 2006.
[2] Fernand Braudel. Civilização material, economia e capitalismo. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, (2ª edição),1997, p. 281.
[3] Gilda de Mello e Souza. O espírito das roupas. A moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, (1ª edição 1987), p. 87.
[4] Teresa Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006.
[5] Kátia Castilho. “Têxteis como documentação da técnica e da estética”. In: Teresa Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006, 123-126.
[6]“A excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”. In: Teresa Cristina Toledo de Paula (cor.). Tecidos e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP, 2006, p. 80.
[7] Heloisa Barbuy. A cidade-exposição. Comércio e Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006, p. 203.
[8] Vânia Carneiro de Carvalho. Gênero e Artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008, p. 219.
[9] Agradeço à Aline Zanatta a doação do texto: Silvia Humold Lara. Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815. in: Latin American Studies Association, 1995, p. 9. (mimeo)
[10] Idem, p. 16.
[11] Silvia Hunold Lara. Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador (Século XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Brasil, Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 184-185.
[12] Silvia Humold Lara. “Diferentes e Desiguais” In: Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 79-125.
[13] Idem, p. 87.
[14] Idem, p. 88.
[15] Idem, p. 96.
[16] Idem, p. 114.
[17] Serafim Leite. Monummeta Brasiliae. Historica Societatis Iesus. Coimbra/Roma, 1956, volumes I, II, III IV e V. Serafim Leite. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Paulo, Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1954.
[18] Atas da Câmara da vila de Santo André da Borda do Campo. (1554-1560). São Paulo: Arquivo Municipal de São Paulo, 1914. Atas da Câmara da Vila de São Paulo. (1560-1639). São Paulo: Arquivo Municipal de São Paulo, 1915, 3 vols. Atas da Câmara da Vila de São Paulo (1640-1652). São Paulo: Arquivo Municipal de São Paulo, vol.5, 1915. Atas da Câmara da Vila de São Paulo (1653-1678). São Paulo: Arquivo Municipal de São Paulo, vol.6 (Parte I e II), 1915.
[19] Inventários e Testamentos. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1921-1998, vol. 1-47.
[20] Maria Luiza Marcílio. Crescimento demográfico e evolução agária paulista, 1700-1836. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 19.
[21] Désirèe G. Koslinucher and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress. Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002. Robin Netherton & Gale R. Ower-Croker. Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.1, 2005. Françoise Piponnier & Perrine Mane. Dress in the Meddle Ages. Yale University, 1997. (tradução). Catherine Richardson (org.). Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004.
[22] Michel Pastoureau. O tecido do diabo: uma história das riscas e dos tecidos listrados. Lisboa: Editorial Estampa, 1991. Michel de Pastoureau. Belu. Histoire d’une coleur. Paris: Ed. de Suel, 2006. Michel Pastoureau. No tempo dos cavalheiros da távola redonda. São Paulo: Companhia das Letras/ Circulo do Livro, 1989, p. 12. (tradução).  Daniel Roche. La culture des apparences. Une histoire du vêtement XVIIe. e XVIIIe. Siècle. Paris : Fayard, 1989. Gilles Lipovetsky. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, (tradução).
[23] François Boucher. Histoire du costume en Ocident. Paris: Flamarion, 2008. François Boucher. História do Vestuário do Ocidente. São Paulo: CosacNaify, 2010.
[24] Sobre o trabalho feminino alinhado ao setor têxtil e indumentário no século XX em São Paulo ver o belo trabalho de Wanda Maleronka. Fazer Roupa Virou moda. São Paulo: Senac, 2007.
[25] Fernand Braudel. Op. Cit., vol. 1, p. 19-20.
[26] Sobre a economia paulista colonial ver, dentre outros: Raquel Glezer. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. Eni de Mesquita Samara. Famílias, Mulheres e Povoamento, São Paulo, século XVII. Bauru: EDUSC, 2003. Ilana Blaj. As tramas das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo Colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002. Maria Luiza Marcílio. Op. Cit. John Manuel Monteiro. Negros da terra. Índios, bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, (1ª ed. 1956)1995. Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial, (1ª Ed. 1933) 2006.
[27] Fernando Novais. Aproximações. Estudos de História e Historiografia. São Paulo: CosacNaify, 2005.
[28] Idem, p. 160.
[29] Fernando A. Novais.  Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 2001 (1ª ed., 1979), p. 209.
[30] Idem, p. 201.

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