segunda-feira, 28 de maio de 2018

TARDE DE MAIO. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

"Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior dos mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos.
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minha' alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primeiros imploram à relíquia saúda e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa.....
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, nunca fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos urgiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o viessem não saberiam dizer: se era um préstimo
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos calçados;
não está certo de ser amor, há tanto levou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdia no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens".

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