domingo, 18 de setembro de 2016

As origens do capitalismo e a Revolução Industrial. Observações historiográficas. Igor de Lima

           Karl Marx, em A origem do capital, afirma que “a acumulação primitiva desempenha na economia política o mesmo papel, pouco mais o menos que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã, e o pecado surgiu no mundo. A origem do pecado explica-se por uma aventura que se teria passado alguns dias depois da criação do mundo”. (MARX, pp. 11-12)
Esse pecado possui um processo desigual, que segundo o próprio Marx, havendo “o homem condenado pelo Senhor a ganhar o pão com o suor do seu rosto; mas, a do pecado econômico preenche uma lamentável lacuna revelando-nos como e porque que há homens que escaparam esta ordem do senhor.” (Idem, p. 12) O processo dava-se com a história da “conquista e da dominação”, ou seja, “da força armada”. (Idem, p. 13)
       A exploração capitalista era engendrada da exploração feudal, tendo seus “primeiros fundamentos no prelúdio no último terço do século XV e no começo do século XVI”, na Inglaterra com o processo de cercamentos da terra e expulsão da mão de obra feudal do campo. Além disso, a reforma e confiscação dos bens da Igreja Católica, pela Igreja Anglicana, transformou a terra em um bem expropriado dos servos. Surgia, nesse contexto, a figura dos arrendatários. Depois da Revolução Gloriosa Inglesa de 1688, o tesouro público era “lapidado” pelos grandes proprietários de terras e “capitalistas de baixa condição”. (Idem, p. 33)
             Formava-se, então, a partir do fins do século XVII, uma forte burguesia inglesa, proprietárias de grandes manufaturas, fruto do trabalho dos jornaleiros e mercenários. (Idem, p. 34)
Ao mesmo tempo, terras florestais transformavam-se em pastagens que por sua vez viriam a tornarem-se em reserva de caça. A propriedade privada da terra era formada graças “aos despojos dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal e mesmo a patriarcal, em propriedade moderna, a guerra às cabanas, foram sucessos idílicos da acumulação primitiva. Conquistaram terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e entregaram a indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem lar nem pão”. (Idem, pp. 54-55)
Tratando da expansão da mão de obra, Marx observa que “estes homens arrancados de suas ocupações habituais, não se podiam adaptar prontamente à disciplina do novo sistema social, surgindo por conseguinte deles, uma porção de mendigos, ladrões e vagabundos. Daí a legislação contra a vadiagem, promulgada nos fins do século XVI, no oeste da Europa”. (Idem, p. 57) Essa usurpação das terras, o crescimento da força de trabalho e a exploração desta mão de obra inical é muitas vezes centradas em Marx, com base na Utopia de Thomas More. (Idem, pp. 58-59)
Ademais, Marx também descreve a intervenção constante do Estado em favor da Burguesia. “(....) a nascente burguesia nada poderia sem intervenção constante do Estado, do qual serve para ‘regular’ o salário, isto é, para rebaixá-lo um nível conveniente, para prolongar a jornada de trabalho e manter o trabalhador no grau desejado de dependência. É esse um momento essencial de acumulação primitiva”. (Idem, p. 68)
              Esse pagamento em forma de salário deveria desde o “estatuto de 1349” ser elevado por baixo para que gerasse lucro. Esse estatuto fazia parte, segundo Marx, de um processo mais amplo da organização do trabalho realizada pelo Estado, com as corporações de ofícios. (Idem, p. 77)
             A desigualdade social na Inglaterra acentuava-se. “A revolução agrícola dos últimos trinta anos do século XV, prolongada até o último quartel do século XVI, enriquece-os tão depressa como empobrece a população dos campos. A ursupação dos pastos comunais permite-lhes aumentar rapidamente, e quase sem gastos, seu gado, do qual tira desde essa época grande lucros pela sua venda, pelo seu emprego como animais de carga e, enfim, por mais abundante adubação do solo”. (Idem, p. 77)
           Durante o século XVI, na sociedade inglesa cresceram a quantidade de oferta de produtos, porque “a revolução nas condições de propriedade agrária era acompanhada do aperfeiçoamento de métodos de cultivo, da cooperação numa escala maior, da concentração dos meios de produção, etc. Além disso, os assalariados agrícolas foram obrigados a um trabalho mais intensivo, ao passo que o campo, que eles exploravam por própria conta, e em seu próprio benefício, se reduzia progressivamente, e o arrendatário apropriava-se assim, cada vez mais de todo o seu tempo livre. É dessa maneira que os meios de subsistência e uma grande parte da população rural encontraram-se disponíveis ao mesmo tempo que ela (a população rural), devendo figurar no futuro como elemento material do capital variável. Tempos depois, o camponês desapossado teve de comprar o valor dessa subsistência, sob forma de salário, de seu novo amo, o capitalista manufatureiro. E o mesmo acontecendo com as matérias primas das indústria proveniente da agricultura: transformando-se em um elemento do capital constante”. (Idem, pp. 81-82)
         A produção doméstica com base na fiação e tecelagem vai se especializando na produção manufatureira fragmentada. No fim do reinado de Elizabeth I, o crescimento do cultivo de linho, o crescimento da agricultura capitalista, a expulsão da mão de obra do campo (pelo processo dos cercamentos) e a concentração de terra impulsionaram o desenvolvimento do capitalismo industrial.            Para Marx, “a constituição feudal dos campos e a organização corporativa das cidades impediam ao capital-dinheiro, formado pela dupla via da usura e do comércio, de converter-se em capital industrial. Essas barreiras caíram com o licenciamento da criadagem senhorial, com a expropriação e a expulsão parcial dos cultivadores; entretanto, pode-se julgar da resistência de se transformarem em fabricantes-comerciantes, pelo fato de pequenos fabricantes de panos de Leeds terem enviado, ainda em 1794, uma deputação do parlamento para impedir uma lei proibindo todos os comerciantes de se tornarem fabricantes. Ademais, as novas manufaturas estabeleceram-se de preferencia nos portos do mar, centro de expropriações de ofícios (artesãos). Daí, na Inglaterra, as lutas encarniçadas entre as velhas cidades privilegiadas (corporate towns) e estas novas sementeadeiras da indústria. Em outros países, como, por exemplo, na França, as indústrias foram postas sob proteção especial dos reis”. (Idem, p. 93)
      Na Inglaterra o regime colonial, o crédito público, o moderno sistema de finança e o protecionismo, ou seja, o poder do estado como gestor da economia política facilitaram o desenvolvimento posterior da industrialização. Contudo, durante o século XVII, os holandeses com o monopólio do chá chinês e o regime colonial, com a acumulação de capitais graças ao monopólio colonial, atingiam em 1684 o seu apogeu, pois, nessa época, era a supremacia comercial que fornecia a supremacia industrial no Antigo Regime. (Idem, p. 100)
             O desenvolvimento do estado na economia possui um papel importante na análise de Marx. “A dívida pública opera com um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva. Por um golpe de varinha mágica, ela dá o dinheiro improdutivo a  virtude produtiva e converte dessa maneira o capital, sem que ele tenha que com isso sofrer os riscos, as perturbações inseparáveis de seu emprego industrial e mesmo da usura privada. Os credores da dívida pública, a dizer a verdade, não dão nada, pois sua principal metamorfose em defeitos públicos de fácil transferência continua funcionando em suas mãos como qualquer outro numerário. Entretanto, afora a classe de credores ociosos assim criada, além da fortuna improvisada dos financistas intermediários entre o governo e a nação – do mesmo modo que a dos arrendatários particulares, aos quais boa parte de todos os empréstimos lhes faz o efeito de um capital caído do céu – a dívida pública deu impulso às sociedades por ações, ao comércio de papéis negociáveis de toda sorte às obrigações aleatórias, à agiotagem, em suma, aos jogos da bolsa e a bancocracia moderna”. (Idem, pp. 101-102)
Essa bancocracia moderna constituiu-se com o apoio do Estado, pois “os grandes bancos, desde o seu início, disfarçados com títulos nacionais, não eram mais que associações de especuladores privados, estabelecidos ao lado dos governantes e, graças aos privilégios que deles obtinham, emprestavam-lhes o dinheiro público. Por isso, a acumulação da dívida pública não tem crescimento mais seguro que o da alta sucessiva de ações destes bancos, cujo desenvolvimento integral data da fundação do Banco da Inglaterra, em 1794. Este começou a emprestar ao Governo todo o seu capital, a juros de 8% ao mesmo tempo, era autorizado pelo parlamento a cunhar moeda do mesmo capital, emprestando-a novamente ao público, sob a forma de bilhetes que se lhe permitiu por em circulação, descontando com eles os bilhetes de câmbio, adiantando-os sobre mercadorias e empregando-os nas compras de metais preciosos. Em breve, esta moeda de crédito de sua própria fabricação chegou a ser o dinheiro com o qual o Banco da Inglaterra efetuou os seus empréstimos ao Estado e pagou com eles os juros da dívida pública”. (Idem, pp. 102-103)
            Em outra análise sobre a origem do capitalismo e da revolução industrial, Braudel, em síntese, critica a visão simplista sobre esta transição, sendo importante incluir a visão da economia mundial para compreender as transformações como a “progressiva entrada nas racionalidades do mercado, da empresa, do investimento capitalista, até o advento de uma Revolução Industrial”. Esta última, segundo o autor, dividia a história em dois. (BRAUDEL, vol. 1, p. 11)
            Essas transformações econômicas seriam fruto de contradições e confrontos, havendo também uma série de economias. A primeira estrutural era a da “vida ou da vida material”, ou seja, uma infra-economia, na qual são formas de consumo que se diferiam do mundo industrializado. Ademais, acaba por definir que essa economia é capitalista, de mercado, pois era opressiva e exploratória da mesma forma que a pós- industrial. (Idem, p. 12)
         O autor destaca o papel da economia algodoeira na Revolução Industrial, sendo que a “Europa bem cedo trava conhecimento com o precioso têxtil, sobretudo a partir do século XIII, quando, na sequencia de uma diminuição da criação do carneiros, a lã se torna rara. Difunde-se, então, um tecido ersatz, os fustões, feitos com uma teia de linho e uma trama de algodão. São muito bem aceitos na Itália, mais ainda no norte dos Alpes, onde começa a boa estrela do Barchent, em Ulm e Ausburgo, nessa zona transalpina que Veneza, no século XV, duas vezes por ano, com grandes naus vão busca-lo na Síria. Claro que o algodão também é trabalhado localmente, como em Alepo e arredores de Alepo, e exporta-se para a Europa. No século XVII, o pano grosso de algodão azul, semelhante ao tecido tradicional nos nossos aventais de cozinha, servia para o vestuário popular no sul da França. Mais tarde, no século XVIII, chegarão aos mercados da Europa as chias da Índia, tecidos finos, estampados, as indiennes’ que farão as delicias da clientela feminina até o dia em que a revolução industrial permitir aos ingleses fabricar tão bem como os hábeis tecelões das Índias e arruiná-los”. (Idem, pp. 295-296)
       Na Inglaterra, contudo, segundo Braudel, a técnica batia sempre um teto do possível, não avançando antes do final do século XVIII, na Revolução Industrial. Porém, um dos problemas centrais para os capitalistas era o problema dos “custos”. “A revolução industrial do algodão está já muito avançada para que os empresários ingleses, que mandavam fiar à fábrica, continuem a dirigir-se ao tecelão manual, a dificuldade foi sempre a de fornecer o fio aos tecelões. Suprimindo esse ‘gargalo pertado, porque começar a mecanizar a tecelagem, já que o trabalho domiciliar satisfazia a procura? Esta terá de aumentar muito, tal como o salario dos tecelões demasiado solicitados para que se imponham a soluções de tecelagem mecânica. Mas, com a derrocada das remunerações da tecelagem manual, que era brutal, continuaremos ainda por muito tempo a ver empresários preferi-la às novas técnicas por mera questão de custos de produção. (...)”. (Idem, p. 397)
           Segundo Braudel, desenvolve-se primeiramente no setor têxtil, durante toda a metade do século XVIII, com o aumento do desenvolvimento técnico, sendo “muito importante para a Revolução Industrial Inglesa”. (Braudel, vol. 2, p. 273) Contudo, no período pré-industrial, o “capitalismo é antes de tudo, o dos mercados urbanos. Mas esses mercadores, negociantes ou empresários, foram de início introduzidos na ordem corporativa criada pelas cidades a fim de organizar no seu seio toda a vida artesanal. Mercadores e artesãos foram acompanhados nas malhas de uma mesma rede de que nunca se libertaram por completo. Daí as ambiguidades e os conflitos”. (Idem, pp. 273-276)
           A transformação da economia não se dava sem a sua conexão com a política na Inglaterra, com o desaparecimento de grande parte da nobreza oposta às casas reais monárquicas. Decorrente dos conflitos das Duas Rosas no século XV, “em 1485 de 50 lordes, sobreviveram 29. Terminou a era dos warlords, dos senhores da guerra. Na tormenta, desapareceram as grandes famílias hostis aos Tudor: Pole, Stafford, Couternay... Então, fidalgos de menor envergadura, burgueses compradores de terras, até gente de origem modesta ou obscura, favoritos da realeza, preenchem o vazio social de cima, graças à mudança profunda da ‘geologia política’ do solo inglês, como se disse. O fenômeno em si não é novo, é-o apenas por seu volume. Por volta de  1540, encontra-se instalada uma nova aristocracia, nova ainda, mas já respeitável. Ora, antes da morte de Henrique VIII e, depois, sob os movimentados e frágeis reinados de Eduardo IV (1547-1553) e de Maria Tudor (1553-1558), essa aristocracia vai ficando cada vez mais à vontade e em breve se opõe ao governo. A reforma, as vendas de propriedades eclesiásticas e dos bens da Coroa, a crescente atividade do Parlamento a favorecem. Por trás do brilho, aparentemente intenso, do reinado de Elizabeth (1558-1603), a aristocracia consolida, amplia suas vantagens e privilégios. Será um sinal dos tempos que a realeza, que até 1540, multiplicara as construções suntuosas, prova da sua vitalidade, tenha parado depois dessa data? O fato não está relacionado com a conjuntura, uma vez que o papel de construtor não passa então definitivamente para as mãos da aristocracia. Com o final do século, multiplicara os campos da Inglaterra, as residências quase principescas, Longleat, Wollaton, Workosp, Burguley House, Oldenby.... A ascensão ao poder dessa nobreza acompanha a primeira grandeza marítima da Ilha, o aumento do rendimento agrícolas e o desenvolvimento a que J. U. Nef chama, com muito boas razões, de primeira revolução industrial. A aristocracia já não precisa tanto da Coroa para aumentar e consolidar a sua fortuna. E, quando, em 1640, esta tenta estabelecer a sua autoridade sem controle, é tarde demais. A aristocracia e a grande burguesia – que em breve segue a pouca distância – atravessarão os anos difíceis da guerra civil e desabrocharão com a restauração de Carlos II (1660-1685). ‘Depois do improglio suplementar dos anos 1688-89 (...) podemos considerar que a Revolução Inglesa (Iniciada em 1640 e, de certo ponto de vista até mais cedo) cumpriu o seu ciclo...”. (Idem, pp. 421-423)
          Centrado na abordagem de Marx, Christopher Hill, analisa o desenvolvimento econômico, social e político inglês para pensar nas revoluções inglesas do século XVII. Após a segunda metade do quartel do século XVI, sob o governo dos Tudor constituía-se uma nova aristocracia de funcionários e militares que adquiriam terras, geralmente proveniente da Igreja Católica dos monastérios e retiradas pela Igreja Anglicana de Henrique VIII. 
          Durante os anos de 1540 à 1640, havia uma ascensão social na sociedade inglesa. Dentre as camadas sociais que se enriqueciam estava a gentry, proprietárias de terras e bens de consumo. Também destacava-se o crescimento da burguesia, a ascensão social das camadas médias e o empobrecimento geral, havendo, portanto, uma acentuação das diferenciações sociais. Conforme Hill, “a transformação que ocorreu no século XVII é, então, muito mais do que simplesmente uma revolução constitucional ou política, ou uma revolução na economia, na religião ou no gosto estético. Ela abarca a vida em seu todo. Duas concepções de civilização entraram em conflito: uma usava como modelo o Absolutismo francês, a outra, a república holandesa”. A revolução inglesa fornecia, portanto, as bases do governo parlamentarista, do avanço econômico, da política externa imperialista , da tolerância religiosa e do progresso científico”. (Hill, 1986, p. 9)
         Desse modo, segundo Christopher Hill, a sociedade inglesa passava por disfunções múltiplas, caracterizadas, em síntese, por forças e tendências sociais, econômicas, religiosas e políticas governamentais a longo prazo.  A política econômica dos governos Tudor e Stuart eram marcadas pela dificuldade de tributação, pela falta de tropas, pela crise das instituições políticas e religiosas, bem como os conflitos entre as elites. 
        No século seguinte, o general Oliver Cromwell durante a revolução inglesa, poderia aderir a algumas das ideias do mercante da rainha Elizabeth Walter Ralegh apoiando uma política mercantil, como o Ato de Navegação, em 1651, que o Parlamento declarava o monopólio imperial sobre o comércio e a frota mercante. Desse modo, a disputa pelo regime colonial se acirrava com confrontos com as marinhas mercantes holandesas. (HILL, 1989, pp. 19-48 )
A respeito do impacto da revolução inglesa na economia da Inglaterra, Braudel observa que “um Ancien Regime foi minado, derrubado: é a estrutura tradicional da agricultura e da propriedade fundiária que se destrói ou acaba de destruir; são as corporações que se desorganizam, até em Londres, depois do incêndio de 1666; é o Ato de Navegação que é renovado; são as últimas medidas constitutivas de uma política mercantilista de proteção e defesa que se sucedem. (...)”. (BRAUDEL, vol. 3, p. 545)
        Contudo, foi “o algodão que conduziu o baile”, com a mão de obra com o trabalho feminino e infantil tornava-se mais barato, consumava-se a divisão do trabalho setorizada e o predomínio do setor industrial, originalmente algodoeiro e, consequentemente o advento do capitalismo industrial. (Idem, pp. 555-556)
     Analisando o trabalho feminino no período da formação do capitalismo, Olwen Hufton declara que a maioria das mulheres precisava trabalhar para seu próprio sustento, possuindo uma curta infância. “Enquanto filhas de pequenos rendeiros, de trabalhadores agrícolas ou de ganhos, elas precisavam de pouca competências para além das que lhes eram transmitidas pelas mães, e que não iriam para além da aptidão para coser ou fiar, ocupar-se de trabalhos agrícolas simples ou cuidar de crianças mais novas. Sempre que possível, a maioria das moças desejaria ocupar um lugar estável de criada numa quinta, mas a procura de tais lugares ultrapassava largamente a oferta. Para as mulheres, o trabalho doméstico no setor agrícola limitava-se a zonas de grandes quintas e era mais frequente nas quintas leiteiras, onde a ordenha e o fabrico de manteiga e de queijo eram tarefas femininas. Havia uma grande concorrência em torno do trabalho em quintas porque este proporcionava às jovens serviçais a vantagem de permanecerem perto de suas famílias e não as forçava a uma mudança adrupta no seu modo de vida. No entanto, por vezes, os ajustes de trabalhos eram feitos por períodos anuais ou só para uma parte do ano. Em Inglaterra, algumas contratações faziam-se nas feiras. (...)”. (HUFTON, 1991, p. 27)
            No final do século XVIII, o trabalho local nos sítios e fazendas eram mais difíceis de serem encontrados pelas moças devido ao aumento demográfico e da necessidade de uma maior especialização. Desse modo, muitas das mulheres do campo passavam ao trabalho urbano neste momento. Um dos trabalhos mais procurados era a criadagem.  Em 1796, Londres possuía por volta de 200.000 criados, sendo que as mulheres representavam o dobro dos homens. “Em contrapartida, havia muitas moças que não conseguiam competir na estrutura da carreira do serviço doméstico, e a miséria que atingiu certas regiões em consequência do crescimento demográfico verificado nos séculos XVI e XVIII trouxe-as em grande número das zonas rurais para as cidades. As jovens em questão viviam em uma pobreza crônica, subalimentadas, raquíticas, doentes pelas bexigas, sujas e cobertas de piolhos. Obviamente, careciam do mínimo de formação na infância que os preparasse para se empregarem mesmo numa casa mais modesta. As moças de regiões inteiras, e no caso da Irlanda de toda uma nação, ao chegarem às cidades inglesas ficavam automaticamente excluídas, precisamente por causa da pobreza dos seus antecedentes, de tudo o que se parece como uma situação respeitável no mundo do serviço doméstico”. (Idem, pp. 35-36)
        Mas a maioria das mulheres trabalhadoras urbanas viviam de serviços “miseráveis, volátil, dependente da honestidade do patrão, obrigadas a trabalhar constantemente para não gastarem suas reservas e incapazes de gerir as águas revoltosas da vida de servir. Uma criada com uma gravidez não desejada nas mãos era simplesmente despedida. Pelo meio da escala estavam aquelas que por volta dos vinte e cinco anos de idade teriam juntado umas cinquenta libras em seu nome, soma modesta, mas, mesmo assim, um triunfo pessoal”. (Idem, p. 36)
Essa reserva de mão de obra era fundamental para a estrutura industrial têxtil. Conforme discute Hufton, “o trabalho feminino barato foi um elemento chave no desenvolvimento das indústrias têxteis europeias. Consideremos o caso da indústria de seda de Lyon. A seda era um tecido delicado e caro, destinado aos ricos, e preparado do princípio ao fim em oficinas urbanas, sob a supervisão de um mestre. A força de trabalho feminino era necessária para esvaziar os casulos de seda, torcer o fio, enrolar as lançadeiras e fazê-las passar no tear para conseguir a execução de padrões de grande complexidade. O trabalho dos homens era montar e esticar a urdidura. Toda as oficinas tinham, no mínimo três ou quatro moças, um aprendiz, o mestre e sua mulher e, no conjunto da indústria a força de trabalho feminina era cinco vezes mais numerosa do que a masculina. Para a recrutar, recorria-se às aldeias dos arredores e as jovens eram trazidas ao árido Forez e do montanhoso Delfinado para o domicílio do mestre, que serviria também como oficiana. Dormiam em armários e sob os teares, e os seus salários eram guardados pelos patrões. As moças de doze ou catorze anos começavam a trabalhar na ocupação mais baixa, a de desenrolar os canilos, debruçadas sobre bacias de água a ferver na qual os canelos eram mergulhados para que a serina, substância pegajosa e dá forma ao casulo, derretesse. As duas roupas estavam permanentemente molhadas e os dedos chegavam a perder a sensibilidade. Pior do que isso, a tuberculose era galopante nas oficinas. Ainda assim, se conseguisse sobreviver catorze anos sem longos período de desemprego – as crises eram frequentes e as jovens postas na rua sem cerimônias – uma moça podia ascender a puxadora, e então, feitas as contas, uma operária de seda não só acumulava um pecúlio como uma vasta experiência industrial. Ela era a esposa ideal para qualquer aprendiz industrioso, pois podia faltar-lhe todo o dinheiro necessário para pagar a sua carta de mestre e contribuir para o funcionamento de uma nova oficina”. (Idem, pp. 36-37)
            A interpretação do trabalho feminino no período da formação do capitalismo industrial de Hufton continua observando que “nas aldeias industriais, as mulheres solteiras apenas ficavam em casa com a produção têxtil se acreditavam que o seu trabalho lhes podia proporcionar um modo de vida viável a longo prazo. Para fazerem essa escolha, os ganhos financeiros tinham que ser mais elevados do que os que obteriam na indústria doméstica sazonal, com a fiação da lã ou do linho, no inverno. Os homens e as mulheres jovens da paróquia tinham de estar convencidos de que podiam instalar uma casa própria ou que, após o casamento, podiam viver com os seus pais auferindo proventos industriais suficientemente elevados. Podiam garantir o equipamento de que precisassem, através dos mercados ou do fabricante o que vendiam seus produtos acabados. Se estas condições fossem preenchidas, os jovens ficavam em casa. Se a indústria entrava em crise, então uma ou duas gerações podiam ver-se apanhadas numa armadilha de pobreza, dado que os jovens se apegavam à ideia de que um retorno os haveria de recompor. Com o tempo, porém, os seus sucessores eram forçados a partir por necessidade, quer para regressarem ao serviço doméstico, quer para dirigirem a outra região com uma indústria mais florescente. Talvez, por fim, mas seguramente não da noite pelo dia, outra indústria pudesse emergir na sua aldeia, como no Devon, onde a produção de sarja morreu gratuitamente e o seu lugar foi ocupado pela produção de botões, embora nada houvesse de inevitável em tal substituição. Quando a indústria de lã do Languedoque se extinguiu em Cleermont de Lodève, no século XVIII, este universo de indústria transformou-se virtualmente numa aldeia fantasma”. (Idem, p. 39)
        Poucas eram as opções de trabalho para uma filha de pais operários. Também as dificuldades de serem aceitas eram grandes nas corporações de ofício em tempos de crise. Por um lado, durante o século XVIII, essas opções de trabalho feminino foram expandindo-se. Por outro, com o crescimento da oferta os salários acabaram abaixando. Muitas atividades passaram a ser consideradas como “trabalho de mulher”, e, portanto, por isso terem remunerações bem mais baixas. “Em 1762, o Anuário de Londres de Campbell colocava todos os ofícios do vestuário, exercitados por mulheres, na categoria de trabalho indigente, expondo-as à mais estrema carência e fornecendo o terreno de recrutamento para a prática da prostituição”. (Idem, pp. 40-41)
         Discutindo de maneira geral as condições de vida dos trabalhadores, o jovem Engels em A situação da classe trabalhadora, em 1845, descreve a interferência das máquinas, como a máquina a vapor, inventada por James Watt, em 1764, na vida das crianças, mulheres e homens trabalhadores ingleses. “A consequência disso foram, por um lado, uma rápida redução dos preços de todas as mercadorias manufaturadas, o desenvolvimento do comércio e da indústria, a conquista de quase todos os mercados estrangeiros não protegidos, o crescimento veloz dos capitais e da riqueza nacional; por outro lado, o crescimento ainda mais rápido do proletariado, a destruição de toda a propriedade e de toda a segurança de trabalho para a classe operária, a degradação moral, as agitações políticas e todos os fatos que tanto repugnam aos ingleses proprietários e que iremos examinar nas páginas seguintes. Se, mais acima, vimos as transformações provocadas nas relações sociais das classes inferiores por uma só máquina, mesmo tão rudimentar como a jenny, não há por que se espantar com o que pode proporcionar um sistema plenamente coordenado de máquinas extremamente aperfeiçoadas, que recebe de nós a matéria prima e nos devolve tecidos acabados”. (ENGELS, pp. 50-51)
             Engels resume a “história da indústria inglesa”, a partir de por volta da década de 1780, como “uma história que não tem equivalente nos anais da humanidade. Há sessenta ou oitenta anos, a Inglaterra era um país como todos os outros, com pequenas cidades, indústrias diminutas e elementares e uma população rural dispersa, mas relativamente importante; agora, é um país ímpar, com uma capital de 2,5 milhões de habitantes, imensas cidades industriais, uma indústria que fornece produtos para o mundo todo e que fabrica quase tudo com a ajuda das máquinas mais complexas, com uma população densa, laboriosa e inteligente, cujas duas terças partes estão ocupadas na indústria e constituem classes completamente diversas das anteriores. Agora, a Inglaterra é uma nação em tudo diferente, com outros costumes e com necessidades novas. A revolução industrial teve para a Inglaterra a mesma importância que a revolução política teve para a França e a filosófica para a Alemanha, e a distância que separa a Inglaterra de 1760 da Inglaterra de 1844 é pelo menos tão grave quanto aquela que separa a França do Antigo Regime da França da Revolução de Julho. O fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês”. (Idem, pp. 58-59)
        Além disso, Engels realiza notas muito relevantes sobre as relações entre as diferentes hierarquias e os interesses de classe na Inglaterra industrial. Segundo o mesmo, “a situação da classe trabalhadora, isto é, a situação da imensa maioria do povo inglês, coloca o problema: o que farão esses milhões de despossuídos que consomem hoje o que ganham ontem, cujas invenções e trabalho fizeram a grandeza da Inglaterra, que a cada dia se tornaram mais conscientes de sua força e exigem cada vez mais energicamente a participação nas vantagens que proporcionam às instituições sociais? Esse problema se converteu, desde o Reform Bill, na questão nacional: todos os debates parlamentares de algum relevo podem ser reduzidos a ele e embora a classe média inglesa ainda não o queira confessar, embora procure evita-los e fazer passar seus próprios interesses particulares como os verdadeiros problemas da nação, esses expedientes de nada lhe servem. A cada sessão parlamentar, a classe operária ganha terreno, os interesses da classe média perdem importância e, embora esta última seja a principal – senão a única – a força no parlamento, a derradeira sessão de 1844 não foi mais que um longo debate sobre as condições de vida dos operários (lei sobre os pobres, lei sobre as fábricas, lei sobre as relações entre senhores e empregados). Thomas Duncombe, representante da classe operária na Câmara dos Comuns, foi a grande personalidade dessa sessão, ao passo que a classe média liberal (com sua noção sobre a supressão das leis sobre os cereais) e a classe média radical (com sua proposta de recusar os impostos) desempenharam um papel miserável. Até mesmo as discussões sobre a Irlanda não passaram, no fundo, de debates sobre a situação do proletariado irlandês e sobre os meios de melhorá-la. Mas já é tempo de a classe média inglesa fazer concessões aos operários – que já não pedem, exigem, ameaçam -, porque em breve pode ser tarde demais”. (Idem, p. 61)
         Ao tratar da cidades inglesas, Engels realiza a seguinte afirmação sobre a relação entre a mesma e os indivíduos: “Essa indiferença brutal, esse insensível isolamento de cada um no terreno de seu interesse pessoal é tanto mais repugnante e chocante quanto maior é o seu número desses indivíduos confinados nesse espaço limitado; e mesmo que saibamos que esse isolamento do indivíduo, esse mesquinho egoísmo, constitui em toda a parte o princípio fundamental da nossa sociedade moderna, em lugar nenhum ele se manifesta de modo tão impudente e claro como na confusão da grande cidade. A desagregação da humanidade em nômadas, cada qual com um princípio de vida particular e com um objetivo igualmente particular, essa atomização do mundo, é aqui levada às suas extremas consequências”. (Idem, p. 68)
    Engels descreve vários casos de situações degradantes de desempregados e miseráveis sobrevivendo à míngua nas cidades industriais inglesas. Exemplo, era o caso do doutor Lee, pastor da igreja velha de Edimburg, declarando na Commission of Religious Instituction [Comissão de instrução religiosa], em 1836:
“Até hoje, nunca em minha vida vi tanta miséria como a que existe em minha paróquia. As pessoas não têm móveis, não tem nada; é comum que dois casais vivam num mesmo quarto. Num só dia, visitei sete casas onde não havia camas – em algumas, nem palhas havia; octogenários dormiam no chão, quase todos conversavam à noite as roupas usadas durante o dia. Num porão, encontrei duas famílias vindas do campo; pouco tempo depois de sua chegada à cidade, morriam duas crianças e uma terceira agonizava quando da minha visita; para cada família, havia um monte de palha suja num canto e, ainda por cima, o porão, tão escuro que não permitia distinguir-se um ser humano em pleno dia, servia de estábulo a um burro. Mesmo um coração de pedra sangraria diante da miséria de um país como a Escócia”. (Apud, Idem, p. 78)
         Para Engels, a indústria algodoeira fora pioneira no processo de industrialização na Inglaterra e descreve a substituição da força de trabalhadores por máquinas: “Na indústria algodoeira do South Lancashire, o aproveitamento das forças da natureza, a substituição do trabalho manual pelas máquinas (especialmente no tear mecânico e a self-actor mule) e a divisão do trabalho chegam ao extremo; e se localizamos nesses três elementos os traços característicos da indústria moderna, devemos reconhecer que a indústria algodoeira, de seus primórdios à atualidade, continua na vanguarda de todos os ramos industriais. Mas é também nela que, ao mesmo tempo, desenvolveram-se, na forma mais pura e mais completa, os efeitos da indústria moderna sobre a classe operária – e, nela, o proletariado industrial revelou suas mais clássicas características. Nela, elevou-se ao máximo a degradação a que o emprego da força do vapor, das máquinas e da divisão do trabalho que submeteu o operário, e as tentativas do proletariado para superar esta situação aviltante chegaram aqui ao extremo e tornaram-se lucidamente suficientes. (...)”
           Continuando a tratar das condições da vida da classe trabalhadora, o autor descreve sobre as suas vestimentas, que “as roupas da esmagadora maioria dos operários estão em péssimas condições, os tecidos empregados em sua confecção são os mesmos apropriados e o linho e a lã quase desapareceram do vestuário de homens e de mulheres, substituídos por algodão; as camisas são de algodão branco ou colorido e as roupas femininas são de chitas estampada; nos varais, raramente se vem secar roupas interiores de lã. Em sua maior parte, os homens usam calças de fustão ou de qualquer tecido grosso de algodão e casacos e paletós do mesmo pano. Os paletós de fustão (fustiam) tornaram-se o traje típico dos operários, estes os chamam de fistian-jackets, mesma denominação utilizada por eles para se referirem a si mesmos em oposição aos cavalheiros que se vestem com lã (broad-cloth), expressão também empregada para designar a classe média; quando veio a Manchester, durante a primeira insurreição de 1842, fergus O’ Connor, líder dos cartistas, apareceu com um paletó de fustão, arrancando aplausos entusiasmado dos operários. Na Inglaterra, o uso do chapéu é generalizado, inclusive entre os operários – chapéus das mais variadas espécies, redondos, cônicos e cilíndricos, com abas largas ou estreitas; boné só são usados nas cidades industriais pelo mais jovens; quem não tem um chapéu, faz para si mesmo, com papelão, um gorro baixo e quadrangular” (Idem, p. 108)
Bibliografia
HILL, Christopher. A Revolução Inglesa de 1640. 2 ed. Lisboa, . Presença, 1983.
MARX, Karl. A origem do capital. A acumulação primitiva. São Paulo: Global, (1a ed. 1978), 1989.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 3 vols., 1997.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SP: Boitempo, 2008.
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções (1748-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.


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