Com
sua primeira edição em 1860, Jacob Burckhardt, em A cultura do Renascimento da Itália, retratava os trajes do século
XVI como os mais “belos “ e “elegantes” da época. Também homens italianos
renascentistas tinham costumes mais “refinados”. Para o mesmo, “muitas pessoas,
mesmo as mais graves, consideram a roupa mais bela e apropriada possível um
complemento da personalidade. Houve mesmo um momento em Florença no qual o
vestir era uma questão puramente individual – cada um vestia sua própria moda –
e, até boa parte do século XVI existiam ainda pessoas importantes dotadas de
voragem de fazê-lo; os demais sabiam pelo menos acrescentar um elemento de
individualidade à moda dominante. (...)”[1]
No
século XVI, ainda segundo Burckhardt, em Veneza e Florença, as “mudança das
formas do vestir e a adoção da moda francesa e espanhola serviam apenas para o
anseio habitual pelo ornamento exterior...”[2]
Além
das cidades italianas, as cortes de Borgonha e França possuíam alterações
constantes nos modos de vestir, conforme a perspectiva de Huizinga, em Outono da Idade Média, publicado pela
primeira vez no início do século XX. Na corte
de Borgonha, segundo Huizinga, a moda aproximava-se em muito à arte: “o traje
de luto que Filipe, o Bom, usava depois do assassinato de seu pai, para receber
o rei da Inglaterra, era tão longo que pende grande corcel que cavalgava até o
chão”.[3]
Analisando
a história dos homens vestidos de preto Harvey afirma que “o traje masculino
ideal”, compunha-se de gibão preto, calça cinza, sapatos pretos e luvas
amarelas”. [4] Ao
aprofundar o consumo da veste negra na corte borgonhesa, o mesmo autor nota que
no caso do rei Felipe, o Bom, “o preto que ele usa serve também à sua profissão
de virtude cristã”. Este rei se oferecia como “patrocinador de uma cruzada e se
apresenta voluntário para enfrentar um infiel em combate – assim, pode-se
imaginar que a cor de suas roupas e sua aparência austera tenham contribuído
para que ficasse conhecido como ‘o Bom’.”
A
sua esplendorosa corte, de acordo com
Harvey, era conhecida por seus trajes negros, frequentemente, de veludo preto,
aliando a gravidade e a elegância. “Magro e anguloso, em seu negro vestido de
veludo trabalhado, gibão negro, capucho negro e meias negras”. Esta roupa fora
“ao mesmo tempo, levemente sinistro e quase elegante”. Ainda pode-se
compreender a relevância das vestes negras reais, no modo descrito por um
contemporâneo, a forma como ele ‘caminha solenemente, portando-se bem e com
nobreza’”.
Este rei
tinha consciência de seu poder. E, acordo com Harvey, o mesmo “podia ser uma
figura igualmente ameaçadora – um homem a ser temido num campo de batalha –
talvez seja sugerido nos contornos bruscos e pontudos de sua fina silhueta”.
Seu conjunto indumentário negro tinha “o ar de ao mesmo tempo perigoso,
vingativo – uma sentença proferida contra os assassinos de seu pai – e cristão,
devoto, judicioso”. Este retrato quatrocentista simbolizava ao mesmo tempo
poder, virtude e “uma silhueta de pé, autoritária e negra”.[5]
Para
Michel Pastoreu, a vestimenta negra de Filipe, o Bom, designava o prestígio
pessoal que este rei detinha por todo o Ocidente.[6] E,
o consumo das vestes pretas tornava-se moda nas cortes renascentistas entre os
séculos XV e XVII. Conforme observa Harvey, “Borgonha era poderosa durante o
reinado de Filipe, e sua corte e aristocracia influenciavam a moda em toda a
Europa. A “ ‘moda da Borgonha’ era conhecida pelo uso do preto nas roupas tanto
masculinas quanto femininas. Fica evidente pelas descrições do vestuário que o
preto era muito mais popular do que se percebe nas pinturas da vida de
Borgonha...”[7]
Enquanto
Burckhardt enfocava as rupturas na cultura italiana renascentista, Huizinga
chama atenção para a continuidade cultural na passagem do medievo para o
moderno. Na cultura indumentária, o primeiro enfoca nos trajes luxuosos
italianos nos séculos XV e XVI, presentes nos retratos e iconografias.
Huizinga, contudo, salienta as transformações do vestir e elegância nas
aparências já no medievo na cultura cortesã e cavalheiresca de Borgonha.
O
debate sobre o momento principal do desenvolvimento da moda terá bases nestes
dois autores. Há uma vertente dos estudos sobre as vestimentas que enfatiza as
modas medievais e outra que enfoca as modas renascentistas. Parte desta
discussão está inserida no mito da origem. Ou seja, a moda seria originária da
Idade Média Tardia ou do Renascimento? Em síntese, a questão central é: a
modernidade das vestimentas seria uma continuidade da Idade Média Tardia da
França e Borgonha ou ruptura da Itália renascentista?
De
certa forma, Braudel sintetiza as duas visões quando discute as diferentes
temporalidades históricas. No caso da moda, haviam mudanças de longa duração e
conjunturais. Assim, continuidade e ruptura integram-se na perspectiva
histórica braudeliana. Chamando
a atenção ao problema do consumo cotidiano do vestuário, Braudel afirma que a
indumentária no período Moderno possuía um papel considerável, pois envolve a
produção, a circulação mercantil e o consumo das vestes. Dando os primeiros
passos na linha da História da
Indumentária, o historiador observa que
“a história das roupas é
menos anedótica do que parece. Levanta todos os problemas, os das
matérias-primas, do processo de fabrico, dos custos de produção, da fixidez
cultural, das modas, das hierarquias sociais. Variado o traje por toda a parte
se obstina em denunciar as oposições sociais (...)”.[8]
As linhas historiográficas da História da
Moda e da Indumentária fazem parte no seu conjunto de estudos localizados no
fim da Idade Média, ou no fim do Antigo Regime. No entanto, ainda vale
ressaltar que essa temática precisa ser analisada com mais profundidade no
período da Alta Idade Moderna, ou seja, os séculos XVI e XVII, período esse em
que transcorria o processo de mercantilização do Velho Mundo e colonização do
Novo.
François Boucher trata de algumas
circularidades no modo de vestir, sendo que
para o mesmo,
“Da
Espanha vem também [para a Itália] a moda do preto, que predomina no traje
masculino, como atestam os retratos pintados por Ticiano. As damas usam
preferencialmente roupas verdes ou azuladas ou num púrpura-escuro, mas Lucrecia
Bórgia denota uma nítida queda pela combinação do preto com o ouro; uma carta
de Laura Bentivoglia a Isabela d’Este (após 1502) descreve-a deitada em sua
cama de vestido de seda preta com mangas estreitas deixando passar os punhos de
camisa. (...)”.[9]
Havia, portanto, as modas espanholas que
se difundiam mesmo para regiões da Inglaterra Tudor, ainda depois da derrota da
Incrível Armada, em 1588, com “a propensão à rigidez à solenidade, simbolizada
pelo rufo e a vertugade, [com] origem
na corte de Filipe II”.[10]
Apesar
da maior parte da historiografia apontar a origem da moda no século XIV,
Sarah-Grace Heller, no artigo Fashion in
French crusade literature: desiring infidel textiles, acredita que o
contato entre cristãos e infiéis nas Cruzadas, a partir de 1190, transformava
os modos de vestir dos primeiros, por meio das trocas comerciais de tecidos de
diferentes técnicas de fabricação, coloração, ornamento e dos intercâmbios
culturais com os árabes e bizantinos, que usavam diversas indumentárias. Como
exemplo, aponta os têxteis de seda, a cor púrpura do império de Bizâncio, os
botins das conquistas de Jerusalém e o enriquecimento do território
mediterrânico como o caso da Sicília e da Península Ibérica. [11]
Em
outro artigo, intitulado Obscure lands
and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval
Textile decoration, Sarah-Grace Heller destaca a dificuldade de compreensão
da linguagem das roupas em diferentes momentos históricos e a necessidade de
realizar uma aproximação dos significados das palavras sobre os têxteis e a
indumentária.[12]A autora ainda sugere a necessidade de entender
a constituição do trabalho têxtil imbricado com o religioso. A atividade de
ofício estava diretamente relacionada com a religiosidade cristã a partir da
confecção de tapeçarias com motivos hagiográficos durante os séculos XII e
XIII. [13] Essas “roupas exóticas”[14] seriam peças relacionadas ao sobrenatural e ao
maravilhoso, pois eram feitas com tecidos do Oriente Médio, originários das
Cruzadas, bem como possuíam características religiosas, principalmente, nas
formas e no seu consumo em missas, rezas e batalhas contra os infiéis.
No debate
historiográfico, destacam-se as transformações no universo da “Clothing Culture, 1350-1650”, obra
organizada por Catherine Richardson. Foram realizadas conexões entre as várias
esferas de existência para a ampliação do debate, havendo, portanto, relações
entre o mundo econômico e cultural. A própria autora observa que as mudanças da
moda no Velho Mundo contaram com a participação dos mercadores ingleses e das
exportações de produtos laníferos de produção doméstica. Além disso, não se
pode esquecer a relevância das relações do corpo com os artefatos têxteis e indumentários.
Como por exemplo, encontram-se nos diferentes modos de cortes dos tecidos
presentes nas estatuárias européias, bem como as transgressões sexuais com
articulação entre os gêneros. As definições de modos de vestir de homens e
mulheres são construções históricas.
Outras
características importantes no universo da cultura indumentária dizem respeito
às distinções dos modos de vestir entre Católicos e Protestantes. Nota-se a
presença das indumentárias como “capital simbólico” no universo da corte.
Principalmente, na análise de discurso, salientam-se as transformações em
conexão aos gêneros, às roupas, às modas.[15]
Nessa linha de pesquisa, Sheila
Sweetinburg, aborda as estratégias de caridade em Kent, durante o século XVI, a
partir da leitura de testamentos. A autora quantificou 4.500 documentos,
notando que a doação das mulheres era percentualmente maior. Elas doavam suas
roupas, geralmente saias e túnicas, para as populações mendicantes. É
importante observar a importância da caridade feminina para a comunidade e as
redes de solidariedade cristã presentes no catolicismo quinhentista, pois
vestir aqueles que estavam praticamente nus era, possivelmente, um dos
critérios de salvação das almas.[16]
Nesse sentido, Elizabeth Salter
estuda os testamentos em Greenwich durante o início do Quinhentos. Nesse
ensaio, descreve os discursos dos testadores e destaca os simbolismos
relacionados às escolhas das doações e partilhas dos artefatos segundo as
relações familiares e de “amizade”. Refere-se à prática de reformulação dos
materiais indumentários para o reaproveitamento e consumo por um novo usuário.[17]
Ao analisar as distinções das
indumentárias a partir do status,
Blaire Bartram apresenta o debate entre o orgulho e a humildade nos discursos
das leis suntuárias dos textos religiosos e das documentações legais. Salienta
os valores associados à gentry e aos processos nobiliárquicos. Defende a tese
de que as identidades das indumentárias estavam relacionadas às posições
sociais. Indica que para a ascensão social, as camadas emergentes deveriam
integrar-se aos símbolos da aparência cavalheiresca e cortesã.[18]
Nota-se que a
economia indumentária contava com a participação do povo miúdo. A circulação de
roupas usadas era comum mesmo entre as camadas dominantes. Existiam, portanto,
relações de patronagem e clientela, entre os senhores e os seus vassalos, bem
como do senhoriato e dos servos. As doações de vestimentas, por um lado,
funcionavam como modos de dominação, controle e hierarquização social. Por
outro, como redes de solidariedade e de caridade cristã, como forma de amparar
as camadas mais desamparadas. [19]
O trabalho feminino no interior doméstico
tornava-se essencial para a produção de tecidos e para o consumo das vestes de
toda a Família. A produtividade lanífera tornava-se significativa nos países do
Norte, especialmente na Inglaterra, onde a criação de ovelhas foi muito
valorizada, assim como em Castela.
Conforme Odile Blanc a origem da moda
encontrava-se no século XIV, com a “idade do gibão”, vestimenta descrita nas
crônicas cavalheirescas. Essas mudanças, isto é, “enormis novitas”, aconteciam no contexto dos constantes conflitos
entre a realeza da França e da Inglaterra, em meio à Peste Negra, à fome e às
dificuldades de sobrevivência da maior parte da população européia. Os
cronistas destacavam as distinções dos trajes da nobreza e dos servos, dos
homens com armas e os “civis” e entre os clérigos e os comuns, sendo os
primeiros, predominantemente, críticos aos modos de vestir.[20]
Ao analisar as representações
iconográficas das iluminuras medievais, Blanc destaca a temática da vida
cortesã e do cotidiano. A partir disso, observa as “novas modas masculinas” das
indumentárias militares, que entende como frutos das “fantasias
aristocráticas”. Para Blanc, as distinções vestimentárias masculinas e
cavalheirescas modificavam as relações corporais. Essa dinâmica corporal
masculina, por intermédio das indumentárias, era uma parte da estratégia de manutenção
do domínio e do poder dos homens. Os valores de masculinidade dos cavaleiros
eram, também, caracterizados pelos modos de vestir.[21]
Na perspectiva das transformações da arte
de vestir relacionadas aos gêneros, a historiografia demonstra que a construção
do discurso sobre o corpo durante a Época Moderna era importante. Helen Smith
explora as descrições textuais dos livros sobre os modos de vestir, havendo uma
linguagem das roupas. Dentre os discursos analisados, destacam-se as peças
teatrais e suas performances.[22]
Para Andréa Demy-Brow, o discurso sobre o
estilo indumentário intensificava-se a partir da “revolução virtual” do vestir
europeu por volta de 1340. Segundo a autora, as distinções dos gêneros e as
metamorfoses das silhuetas eram principalmente masculinas, com o “dramático”
encurtamento dos gibões.[23]
Nesse contexto, as leis suntuárias e os cronistas criticavam também, o
comprimento das roupas de acordo com o status
e gênero. A autora sugere que a corporalidade era modificada a partir do
consumo de roupas fabricadas pelos alfaiates por meio de cortes distintos nas
indumentárias. Desse modo, estava presente nos discursos como “modos e marcas
violentas de criação”. [24]
Ainda nessa linha de pesquisa da análise
dos discursos, Elizabeth Hallan trata das “dimensões do gênero”, como um
complexo processo de percepções corporais femininas e masculinas, com destaque
para as construções grotescas dos corpos femininos, pois estes tinham “maior
visibilidade”. [25]
Relacionando fontes textuais e visuais, a autora aborda as articulações de
certos modos de “corporificação”, ou melhor, personificação dos significados de
corpos vestidos e não-vestidos. Salienta a relação das imagens corporais –
espirituais e sociais – com os gêneros. Além disso, sugere a possibilidade de uma
adaptação da “aparência corpórea” por parte da linguagem textual e imagética.[26]
No Brasil, Gilda de Melo e Souza, tratando
do consumo das modas, sobre o prisma sociológico, destaca o papel feminino nos
modos de vestir. Para a autora, a silhueta feminina e o espírito da moda
atingiam a sociedade aristocrática da corte imperial do século XIX. A autora de O Espírito das roupas ressalta o importante caráter da História da
Moda e a necessidade de desenvolver a temática. Entretanto, apesar de estudar a moda no
contexto do Oitocentos, propõe uma questão intrigante a respeito das suas
transformações: “...se cada vez que o estilo varia a moda cai sob o
domínio da arte, o que explica a mudança? O que explica a necessidade constante
de renovação, o cansaço ininterrupto das antigas formas?” [27]
À luz da historiografia aliada à museologia e ao estudo das roupas e da
cultura material, o Museu Paulista publicou, em 2006, uma coletânea intitulada,
Tecidos e a sua conservação no Brasil,
na qual se encontra uma série de comunicações que tratam do tema e dos
problemas relacionados às roupas, à moda e à indumentária. A maior parte das
análises possui uma perspectiva museológica, incidindo sobre a conservação,
catalogação e possibilidades de abordagem dos trajes e das indumentárias.[28]
Neste conjunto de artigos, é importante destacar o de Kátia Castilho, “Têxteis
como documentação da técnica e da estética”, que aponta para a relevância do
estudo da moda no conhecimento científico. [29]
Outro trabalho significativo é o de Teresa Cristina Toledo de Paula, “A
excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”, no qual enfatiza a
presença do mito da ausência de tecidos na História do Brasil, principalmente
na Colônia. Sobre este assunto, afirma que “(...) Herdamos e preservamos um
repertório de imagens fictícias que raramente são postas em xeque e acabam
cristalizando em nós um imaginário significativo sobre os tecidos disponíveis e
sua utilização nos séculos precedentes”.[30]
Dentre essas obras, destaca-se a de Heloisa Barbuy, sob a perspectiva da
História Urbana e da Cultura Material. A autora trata do comércio e da dimensão
do espaço, predominantemente público, dos vestuários femininos e masculinos. As
exposições das vitrines de roupas, chapéus, luvas e adereços da São Paulo do
século XIX foram marcantes nessa “cultura da moda” no processo de transformação
rápida da cidade.[31]
No campo da Cultura Material e da articulação
entre Gênero e Artefato, Vânia de
Carvalho aborda o sistema doméstico na cidade de São Paulo. As indumentárias,
portanto, passaram a estar dentro da “vitrine de casa” da elite paulistana na
passagem do século XIX ao XX.[32]
Apesar de terem como foco o século XIX,
portanto, período posterior ao que se pretende analisar, tais análises são de
importância fundamental, no caso, pois se situam em linhas de pesquisa que
relacionam a cultura vestimentária com a economia têxtil e o contexto mais
amplo. Os artefatos têxteis e trajes apresentam-se na História somente em
relação à sociedade de um determinado momento. Nesse sentido, os artefatos
nunca podem ser estudados isoladamente do conjunto social.
Igualmente relevantes
são os trabalhos de Silvia Hunold Lara por abordarem um tema ainda muito pouco
estudado no período colonial. Em artigo de 1995, Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do
Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815, a autora estuda o vestuário das mulheres negras escravas, as primeiras
determinações legais portuguesas sobre o tipo dos trajes e conclui que a
sociedade colonial mantinha “a função simbólica do vestuário como marca das
distinções sociais”. [33] Em se
tratando das relações entre o senhoriato e a escravaria feminina, a autora
afirma:
“o olhar branco e senhorial experimentava uma
flutuante ambiguidade na identificação do personagem que usava trajes luxuosos:
ora parecia como mulher, ora como mulata ou negra, ou simplesmente escrava; ora
a distinção de gênero e condição social era simplesmente resolvida pelo uso da
palavra negro. Como mulheres, pareciam reunir em si uma somatória de pecados:
ao andar à noite pelas ruas quebravam a regra que ligava recato e
domesticidade, expunham-se publicamente e eram portanto associadas às
prostitutas; por causa disto, senhoras e escravas podiam ser aproximadas, o
luxo de uma podia ser visto como indutor da luxúria de outra e vice-versa.
Expondo publicamente o poder das senhoras, o séquito de cativas ricamente
vestidas acabava, aos olhos de alguns, estabelecendo uma similitude entre
mulheres de condições sociais diametralmente opostas”. [34]
Avançando em sua
pesquisa sobre a temática, a autora, em outro texto, publicado em 1999, “Sedas, panos e balangandãs: o traje de
senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador (Século XVIII)”,
chama a atenção para os raros estudos a respeito do vestuário e mais ainda das
vestes das cativas. Para Lara, “o uso de brinco, colares e outras
jóias-amuletos, tanto por mulheres quanto por homens negros, bem como os
balangandãs, por escravas ou livres, revela a presença cotidiana de devoções e
cultos ou ainda de significados nem sempre facilmente desvendados pelos seus
senhores. (...)”. Como exemplo das jóias ornamentais das escravas africanas,
havia as malungas, pulseiras douradas
com “motivos geométricos”, que variavam de significado conforme a hierarquia
social da cativa em sua origem tribal na África. [35]
Novamente,
especialmente no capítulo “Diferentes e Desiguais” da obra Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América
Portuguesa, publicada em 2007, Silvia H. Lara volta-se para o tema do
vestuário no interior da sociedade escravista.
[36]
Nessa linha de pesquisa, destaca:
“Revelador dos jogos hierárquicos no interior dos
quais as diferenças eram mostradas, o tema das roupas e ornatos torna-se
particularmente interessante para a análise que pretenda avançar em busca dos
modos de dominação social e das distinções...”. [37]
Retomando o tema da
legislação suntuária presente nos outros textos, a autora observa que
“Os principais documentos legais [portugueses] do
século XVI e XVII sobre essa questão seguem um mesmo padrão legislativo:
proíbem o uso de capuzes, de guarnições de ouro nas armas e selas; determinados
tipos de tecidos para o vestuário e alfaias domésticas, conforme a condição
social das pessoas, além de estipular o número de criados e a quantidade de
gente nos vários séquitos particulares, etc”. [38]
As proibições de uso
de determinadas vestes eram marcadas pela afirmação das distinções sociais
presente nas roupas. Exemplo disso, as duas leis régias de 1696, proibindo as
cativas africanas de trajarem “vestidos de seda, cambraia, holandas com rendas
e brincos de ouro ou prata” .[39]
Na perspectiva da
autora, as mulheres senhoriais eram vistas como “recatadas”, “reclusas” e
“vestidas com mantos de baeta”. E, por isso diferenciavam-se das cativas, não
pela ostentação, mas pelo séquito de acompanhantes. As escravas que, no
entanto, saíam para as ruas sozinhas de maneira ostensiva eram entendidas como
“símbolo do pecado”. [40]
Além das
questões relacionadas à gênero, salientam-se as análises voltadas ao universo das cores. Carole Colier Frick,
analisando as vestimentas das famílias das elites florentinas na renascença,
destaca o processo do tingimento dos tecidos fazia-se a partir de um
conhecimento de longa duração. As cores aos poucos passavam a ter novas pigmentações
e tonalidades a partir dos grandes movimentos comerciais. A técnica da produção
têxtil ganhava em variedades de produtos originários de diferentes partes do
globo.
As
tinturas violeta e carmesim coloriam os mais caros brocados de sedas
florentinos durante o Quatrocentos. O vermelho florentino poderia tanto marcar
grupos discriminados como judeus e prostituras, quanto as togas clericais da
cúrias romanas.[41]
No
início do século XVI, quando Lucrecia Borgia casava-se com a casa de Este,
levava trinta vestidos, a maioria de veludo negro. Frick considera que esta cor
tornava-se predominante na moda das cortes renascentistas. Contudo, em
Florença, a moda do negro não predominava em toda indumentária, mas em algumas
peças.[42]
Segundo
a mesma, na tradição florentina, o azul, tradicionalmente significava lealdade
e o branco da Virgem Maria, pureza. As cores, portanto, passavam a ter nomes da
moda em um momento que muitas vezes as tornavam exóticas. A cor escura próxima
do negro chamava-se morello, o cinza,
bigio, o marrom avermelhado, terra di Egito, bem como o rosa, rosa di zaffrone, ou ainda o antigo rosa
turco, rosa secca di turchino.[43]
Abordando
a temática das cores, Michel Pastoreau, em
Bleu: Histoire d’une couleur, afirma que o tingimento de azul possuía no mundo
antigo, um alto preço, sendo originário do índigo, proveniente do Oriente, bem
como o “lapis lazuli”, pedra
originária de regiões como atualmente Sibéria, Afeganistão, Tibet e China, ou
ainda o “guède”, um pastel de
tintureiro, do qual extraíam o azul. Porém, o branco, o preto e o vermelho eram
privilegiados na liturgia medieval. O azul – “blau” na raiz germânica e
“lazaward” na etimologia árabe permaneceu até o século XII distante da liturgia
cristã.[44]
O índigo
foi introduzido na Europa, segundo Sarabia Viespo, por Marco Polo no final do
século XVI. No século seguinte, constituía-se o grêmio de tintureiro de
Florença. No Quinhentos, os comerciantes venezianos procuravam corantes,
tecidos e outros produtos luxuosos asiáticos.[45]
Assim, os artefatos exóticos orientais
circulavam entre as camadas mais abastadas européias, transformando o
conhecimento sobre regiões distantes, bem como a cultura visual e material dos
consumidores destes artefatos. Destaca-se ainda as diferentes construções imagéticas da Ásia, África,
América e de regiões mais distantes dos grandes centros urbanos da Europa, como
Turquia, Polônia, Moscow, ou como notava Vecellio, Mosco.[46]
[1]Jacob Burckhardt. A cultura do Renascimento na Itália. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 267-268.
[3]
Johan
Huizinga. O outono da Idade Média. Estudo sobre as formas de vida e pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify,
2010, p. 430.
[4] Idem, pp. 470-471.
[7] Jonh Harvey. Op Cit.,
p. 72.
[8] Fernand Braudel. Civilização material,
economia e capitalismo. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins
Fontes, (2ª edição),1997, p. 281.
[9] François Boucher. História do Vestuário do Ocidente. São
Paulo: CosacNaify, 2010, p. 184.
[10] Idem, p. 202.
[11]Sarah-Grace Heller. Fashion in French crusade literature:
desiring infidel textiles. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder. Encountering medieval textiles and Dress.
Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp.
103-119.
[12]Para tanto, a abordagem
do tema deve valer-se da categoria gênero ao serem analisados textos literários
como os de Chrétien de Troyes (c. 1165-70) e Marie de France. Sarah-Grace Heller. Obscure lands
and obscured hands: fairy embroidery and the ambiguous vocabulary of Medieval
Textile decoration. In: Robin
Netherton & Gale R. Ower-Croker.
Medieval Clothing and textiles. Woodbridge, U.K.: The Boydell Press, v.5,
2009, pp.15-16.
[13] Idem, pp. 20-35.
[14] Idem, p. 35.
[15] Catherine Richardson. Introduction. In: Catharine Richardson (Ed.) Clothing Culture, 1350-1650. ASHGTE,
2004, pp. 1-25.
[16] Sheila Sweetinburg. Clothing the naked in Late Medieval Kent. In:
Catherine Richardson (org.). Clothing
culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp. 108-121.
[17] Elizabeth Salter. Reworked material: discourses of clothing culture in
Early Sixteenth-Century Greenwich. Catherine Richardson. Clothing culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp.
179-191.
[18] Claire Bartram. Social fabric in Thynne’s debate between Pride and
Lawliness. In: Catherine Richardson. Clothing
culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp. 137-149.
[19] Joanna Crawford. Clothing Distribuitions and social relations c.
1350-1500. In: Catherine Richardson. Clothing
culture, 1350-1650. Hampshire, U.K.: ASGHATE, 2004, pp.158-159.
[20] Odiele Blanc. From Battlefield to
court: the invention of fashion in fourteenth century. In: Désirèe G. Koslin and Jane E. Snyder.
Encountering medieval textiles and Dress.
Objsects, texts, images. U.S.A/UK: Macmillan Publischers Limited, 2002, pp.
157-159.
[21] Idem, pp. 165-170.
[22] Helen Smith. ‘This one poore blacke gowne lined with white’: the
clothing of the Sixteenth-Century English Book. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire,
2004, pp. 195-209.
[23] Andrea Denny-Brown. Rips and Slits: the torn garment and Medieval self.
In: Catherine Richardson. Clothing Culture,
1350-1650. Hampshire, 2004, p. 224.
[24] Idem, p. 230.
[25] Elizabeth Hallam. Speaking to Reveal: the body and acts of ‘exposure’
in Early Modern Popular Discourse. In: Catherine Richardson. Clothing Culture, 1350-1650. Hampshire,
2004, pp. 239-262.
[26] Idem, p. 243.
[27] Gilda de Mello e Souza. O espírito das roupas. A
moda no século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, (1ª edição 1987), p. 87.
[28] Teresa Cristina Toledo
de Paula (coor.). Tecidos e sua
conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP,
2006.
[29] Kátia Castilho.
“Têxteis como documentação da técnica e da estética”. In: Teresa Cristina
Toledo de Paula (coor.). Tecidos e sua
conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da USP,
2006, 123-126.
[30] Teresa Cristina Toledo
de Paula. “A excepcional terra do pau-brasil: um país sem tecidos”. In: Teresa
Cristina Toledo de Paula (coor.). Tecidos
e sua conservação no Brasil: Museu e coleções. São Paulo: Museu Paulista da
USP, 2006, pp. 80-82.
[31] Heloisa Barbuy. A
cidade-exposição. Comércio e
Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006, p. 203.
[32] Vânia Carneiro de
Carvalho. Gênero e Artefato. O sistema
doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo, 1870-1920. São
Paulo: Edusp, 2008, p. 219.
[33] Silvia Humold Lara. Sob o signo da cor: trajes femininos e
relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815.
in: Latin American Studies Association, 1995, p. 9. (mimeo)
[34] Idem, p. 16.
[35] Silvia Hunold Lara. Sedas,
panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de
Janeiro e de Salvador (Século XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Brasil, Colonização e Escravidão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 184-185.
[36] Silvia Humold Lara.
“Diferentes e Desiguais” In: Fragmentos
setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 79-125.
[37] Idem, p. 87.
[38] Idem, p. 88.
[39] Idem, p. 96.
[40] Idem, p. 114.
[41] Carole Collier Frick. Families, fortunes and fine clothing.
Blatimore: The Hohns Hopkins university Press, 2002, p. 174.
[45] Maria Justina Sarabia Viejo. La
Grana y el añil. Técnicas tintóreras en México y América Central. Sevilla:
Fundación el Monte, 1994, p. 16.
[46]Cesare Vecellio. Habitus Antichi et Moderni. The clothing of
Renaissance world. London, U.K.: Tames & Hudson, 2008, pp. 607-408.
Boa tarde, Igor! Acabei de ver seu texto. Muito esclarecedor!!! Também me interesso por tecidos. Estou em fase de conclusão de um trabalho nesse sentido também. Vendo suas referências fiquei muito interessada no texto da professora Silvia Hunold Lara, "Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro. Faz um tempo que estou procurando por esse texto, vc o teria? Seria de grande ajuda! De antemão parabenizo pelas publicações. Um grande abraço.
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