sexta-feira, 13 de outubro de 2017

NOTAS SOBRE O RENASCIMENTO. IGOR RENATO MACHADO DE LIMA

Jacob Burckhardt, em A cultura do Renascimento na Itália, obra publicada em 1865, discute o aparecimento do Renascimento no século XIV.A partir da abordagem de Burckhardt, questiona-se em que medida este período foi uma ruptura ou uma continuidade com a cultura medieval. 
E, para entender este processo e debater isto, cita-se o próprio Burckhardt: “O Renascimento não teria se configurado no elevado e universal necessidade histórica que foi se pudesse abstrair tão facilmente dessa Antiguidade”. O autor insiste que “não foi a Antiguidade sozinha, mas sua estreita ligação com o espírito italiano presente a seu lado, que sujeitou o mundo ocidental. É desigual a liberdade que nessa aliança, nesse espírito observou para si, parecendo amiúde muito pequena, quando se examina, por exemplo, a literatura neolatina. Nas artes plásticas, no entanto, em várias outras esferas, na dimensão é notável, fazendo com que a aliança entre duas longínquas épocas culturais de um mesmo povo se revele uma, porque autônoma em suas partes, e, por isso, legitima e fecunda. O restante do Ocidente pôde estudar de que maneira repelir o impulso proveniente da Itália, ou como apropriar-se total ou parcialmente dele. Ante deste último caso se deu, poupem-se nos as lamentações acerca do declínio precoce de nossas concepções e manifestações culturais medievais: tivessem elas tido força suficiente para se defender, estariam ainda vivas, tivessem estes espíritos elegíacos e saudosos de passar uma única hora em meio delas. É certo que, ante processos históricos de tamanha envergadura, muito desses nobres botões pereceram sem ver assegurado o florescimento imorredouro na tradição e na poesia; nem por isso, todavia, é lícito desejar que o processo, em sua totalidade não tivesse ocorrido. Tal processo consiste no fato de que, paralelamente à Igreja, que até então mantivera o Ocidente coeso (e não lograria continuar a fazê-lo por muito mais tempo), sugere uma nova força espiritual que, espraiando-se a partir da Itália, se torna a atmosfera vital para todo europeu de maior instrução. A crítica mais severa que se pode externar desse processo é aquela referente a se caráter tão popular, ou seja, à fatal separação entre cultos e incultos que então se estabeleceu em toda a Europa. Tal crítica perde, porém, seu valor tão logo nos vemos obrigados a admitir que essa mesma questão hoje ainda que claramente percebida, não pode ser alterada. Além disso, já há tempos essa separação não se revela tão cruel e inexorável. Ali, afinal, o mais artístico de seus poetas, Tasso, anda também nas mãos dos mais pobres”. (BURCKHADT, p. 139)
Analisando a recepção da Antiguidade no pensamento renascentista humanista, Burckhadt declara que “a Antiguidade grego romana, que desde o século XIV intervém tão poderosamente na vida italiana – enquanto suporte e base da cultura, enquanto meta e ideal de existência e, em parte, também como nova e consciente reação ao já existente - , havia muito tempo vinha exercendo uma influência parcial sobre toda a Idade Média, inclusive fora da Itália. Aquela erudição representada por Carlos Magnus constituía essencialmente um renascimento, em contraposição à barbárie dos séculos VII e VIII, e nem podia ser diferente. Da mesma maneira como, além dos fundamentos formais herdados da Antiguidade, notáveis imitações diretas dos antigos imiscuem-se na arquitetura românica do Norte, também o conjunto do saber monástico absorvera uma grande massa de elementos oriundos dos autores romanos, e mesmo seu estilo, a partir de Eimbard, não permanece imune à imitação”. (Idem, p. 140)
E, o autor avança afirmando que, “na Itália, entretanto, diferentemente do que ocorre no Norte, a Antiguidade desperta novamente. Tão logo a barbárie tem fim, a consciência do próprio passado faz-se novamente presente em um povo ainda parcialmente ligado à Antiguidade; ele celebra e deseja reproduzi-la. Fora da Itália, o que ocorre é uma utilização erudita e refletida de elementos isolados da Antiguidade; dentro dela, trata-se de uma objetiva tomada de partido ao mesmo tempo erudita e popular pela Antiguidade de uma forma geral, uma vez que esta constitui ali a lembrança da própria grandeza de outrora. A fácil compreensibilidade do latim, o montante de recordações e monumentos ainda presentes, estimula decisivamente esse desenvolvimento. Dele e de sua interação com o espírito italiano que se alterou com o passar do tempo – com a instituição do Estado Germano-Lombardo, com a cavalaria comum a toda a Europa, com as demais influencias culturais profundas do Norte, com a religião e a Igreja – surge então, o novo todo: o moderno espírito italiano, destinado a tornar-se o modelo decisivo para todo o Ocidente” (BURCKHADT, pp. 140-141).
Continuando sua análise do Renascimento, dividindo a histórias dos “povos” Ocidentais entre um período de “barbárie”, de Renascimento da Antiguidade Clássica e do subsequente advento da “modernidade”, Burckhardt declara que “de qualquer forma, o antigo se manifesta nas artes plásticas, tão logo finda a barbárie, verifica-se nitidamente nas edificações toscanas do século XII – aquele que deu o tom de todo um gênero de poesia latina de então – tenha sido um italiano. Referimo-nos ao autor das melhores canções do assim chamado Carmina Burana. Uma alegria sem entraves pela vida e seus prazeres, sob a proteção dos antigos deuses pagãos, que ali aparecem, flui uma magnífica torrente de suas estrofes rimadas. Quem as lê de uma só vez dificilmente poderá negar a impressão de que ali fala um italiano, provavelmente da Lombardia; evidências específicas corroboram ainda essa impressão. Em certa medida, essas poesias latinas do clerici vacantes do século XV, juntamente com grande e notável frivolidade, são um produto do conjunto da Europa. Mas quem compôs a canção A Estuans Interius este não foi, presume-se, alguém oriundo do Norte, nem tampouco era esta a origem do sibarita refinado e observador a quem devemos Dim Riance vitrea sera lampas oritur. O que aqui se verifica é um renascimento da visão de mundo dos antigos, tomado ainda mais evidente pelo uso da rima medieval. (...)”. O autor reafirma a relevância do Renascimento quando declara que este “não significa imitação ou compilação fragmentária, mas sim o nascer de novo, e este nascer de novo encontra-se, na realidade naqueles poemas do clerigus desconhecidos do século XII” (BURCKHARDT, p. 141)
Para Burckhardt, a “grande e geral tomada de partido dos italianos pela Antiguidade começa, no entanto, apenas no século XIV. Para tanto foi necessário um certo desenvolvimento da vida municipal, desenvolvimento este que se deu somente na Itália e naquele momento: a convivência sob um mesmo teto e a afetiva igualdade entre nobres e burgueses, a formação de um meio social comum que sentia necessidade de educar-se e dispunha de tempo e meios para tanto. Tal educação, porém, tão logo pretendesse libertar-se das fantasias do mundo medieval, não poderia subitamente abrir caminho até o conhecimento do mundo físico e intelectual através de mero empirismo; ela necessitava de um guia, e foi enquanto tal que a Antiguidade Clássica, com toda a sua enorme bagagem de verdades objetivas e luminosas em que as áreas do conhecimento, se apresentou. Absorve-se-lhe, então forma e substância com gratidão e admiração, tornando-a o conteúdo central de toda a educação. A situação geral da Itália era também favorável a isso. O império medieval, desde o declínio dos Hohenstaufehn, renunciara a ela, ou feria-se para Avignon, e os poderes efetivamente eram, em grande parte, violentos e ilegítimos. O espírito que despertou para a consciência, por sua vez, estava a procura de um novo e sólido ideal, de modo que a falsa imagem e o postulado de uma dominação mundial romano-italiana apoderam-se da imaginação popular, intentando mesmo sua realização prática na figura de Cala Di Rienzi. (...) A despeito disso, para o sentimento nacional, a lembrança da Antiga Roma não constituía absolutamente um suporte desprovido de valor. Armados novamente de sua cultura, os italianos logo se sentiram, de fato, a mais avançada nação do mundo”. (Idem, p. 42)
Burckhardt analisa o Renascimento Italiano e seu humanismo, a partir da formação de uma cultura italiana e com o sentimento de “nação” dos seus membros. Importante para o retorno da Antiguidade Clássica foram dentre outros, as ruinas romanas, os triunfos romanos do século XIV, narrados por Petrarca e  retomando o período clássico dos imperadores romanos. (...)” (Idem, p. 142).

François Dosse, pensando na relação entre História e a Filosofia da História, declara que os historiadores humanistas retomaram o trabalho de Heródoto, pois segundo o mesmo, “o descobrimento do Novo Mundo, a multiplicação das viagens, a importância dada à alteridade nesse começo de modernidade oferecem um contexto mais favorável à recepção da obra de Heródoto”. (DOSSE, 2012, p. 13). Ademais, neste momento, os historiadores humanistas começavam a lançar um “método crítico das fontes. O humanismo convida a um retorno aos clássicos, ao gosto pelo antigo e a um olhar deslumbrado diante dos textos dos historiadores gregos e romanos. O enorme sucesso de Plutarco e de seu Vidas paralelas, traduzido para o francês em 1559, atesta este entusiasmo. Vinte anos depois, Montaigne dirá que ele é o ‘breviário das damas’ e confessa nos Ensaios ‘Plutarco é meu homem’”. (Idem, p. 21) Mas é com Lorenzo Valla que se dará a “Revolução historiográfica”, conforme Dosse. 
“Podemos considerar que o grande e decisivo acontecimento no abalo da noção de verdade ocorreu quando Lorenzo Valla conseguiu estabelecera falsidade da doação de Costantino. Esse documento fundamental na partilha entre autoridade papal e imperial dizia que o imperador Constantino deu ao papa Silvestre a posse de Roma e da Itália e aceitou a autoridade temporal do Vaticano sobre o Ocidente cristão. Essa demonstração se tornou a pedra angular do método crítico. Filólogo, Valla dedicou seus trabalhos ao estabelecimento de uma gramática histórica da língua latina. Iniciou por volta de 1440 a crítica da doação de Constantino, quando estava na corte do rei de Nápoles, Afonso de Aragão, e gozava da proteção do príncipe”. (Idem, p. 21)
Dosse também afirma, “Podemos avaliar como, atacando a autoridade mais eminente, isto é, o papado. Valla realiza uma verdadeira revolução historiográfica. De fato, ele consegue substituir a autenticidade fundada na autoridade pela autoridade fundada na verificação e abre um imenso campo de investigação, graças a esse novo igualador de validade que não protege mais as massas de arquivos, até então à sombra da hierarquia dos poderes. Os textos tornam-se iguais de direito e, portanto, submetidos todos eles ao olhar crítico. O efeito dessa descoberta é considerável, tanto no plano jurídico quanto no teológico, pois o questionamento de um texto que pertence ao direito canônico inaugura a discussão possível dos textos sagrados, até então fora do debate da controvérsia”. (Idem, pp. 24-25)
O avanço na ideia de história, entre os humanistas, ocorreu com La Popelinière (1541-1605), conforme Dosse. Este humanista nobre francês acreditava que “a universalidade” residia “na capacidade interpretativa do historiador. Ora, este deve livrar-se dos pontos de vista singulares, dos campos exclusivos, como o político ou militar, para abordar o real histórico em todos os seus estados, sem reduzir arbitrariamente a perspectiva histórica. Assim, a história pode e deve ser completa”. (Idem, p. 52)
Na perspectiva de buscar uma história ideal Popelinière acreditava que “depois de ter delimitado o seu assunto, o historiador que visa ao universal, ao geral, deve adotar uma atitude filosófica para abordar as fontes documentais”. (Idem, p. 53) Neste sentido, a partir de Popelinière florescia uma corrente historicista em que havia uma fissura entre o passado e o presente, apontando, assim, para a modernidade. Essa corrente historicista influenciara os juristas e os filólogos. Ademais, o historicismo longe de ser cético, acreditava na possibilidade de “escrever uma história cada vez mais científica”. (Idem, p. 54)
As escavações renascentistas continuavam sob a proteção papal. Rafael rogava a Julio II que protegesse os remanescentes da Antiguidade, iniciando os primeiros trabalhos de uma certa “arqueologia”, conforme novamente Burckhardt. (Burckhardt. Op. Cit, pp. 147-148)
Os autores da Antiguidade marcavam o conhecimento do período renascentista, havendo, principalmente a partir do século XV, a construção de bibliotecas e a preocupação de tradução de textos gregos e do latim para as línguas “modernas”. Burckhardt observa que “ainda monge, o papa Nicolau V endividou-se para comprar manuscritos ou mandar copiá-los; já naquela época, ele professava abertamente as duas grandes paixões do Renascimento: os livros e as edificações”. (Idem, p. 150)
Mais famosa é a biblioteca dos Médici que chegava com Niccolo Niccoli ter 800 livros. Também a Biblioteca de Urbino, produzida pelo famoso Frederico de Montefeltro teve a sua importância. (Idem, pp. 151-152) 
Segundo o mesmo,  “Autores mais modernos lamentam a miúde que os germes de uma cultura incomparavelmente mais autônoma e aparentemente italiana em sua essência, como os que se manifestaram por volta de 1300 em Florença, tenha sido, posteriormente, tragados por completo pela torrente do humanismo. Argumentam eles, que, àquela época em Florença, todos podiam ler, que até mesmo os arrieiros podiam contar as canzoni de Dante e que os melhores manuscritos italianos de que ainda dispomos teriam pertencido originalmente a artesãos florentinos; teria sido possível então – dizem eles o surgimento de uma enciclopédia popular (...)”. Ademais, “tudo isso teria tido por base de uma força e firmeza de caráter resultante da participação de todos os negócios de Estado, do comércio, das viagens e, principalmente, da sistemática eliminação de todo o ócio – fatores que vicejavam na Florença de então. Além disso – prossegue a argumentação – os florentinos eram à época respeitados e de grande serventia no mundo todo, não em vão sendo chamados pelo papa Bonifácio VIII, naquele mesmo ano, o quinto elemento. A presença mais forte do humanismo a partir de 1400, teria, pois, atrofiado esse impulso nacional, na medida em que se passou a esperar exclusivamente da Antiguidade a solução para todo e qualquer problema, permitindo-se, além disso, que a literatura fosse absorvida pela mera citação; a própria perda da liberdade estaria relacionada a isso, na medida em que tal erudição repousaria numa servidão à autoridade, sacrificando o direito municipal ao romano, já em razão disso, procurando e encontrando em favor dos déspotas”. (Idem, p. 156)
Dentre os maiores expoente estava Dante, “que foi e permaneceu sendo aquele que, pela primeira vez e de maneira enfática, trouxe a Antiguidade para o primeiro plano da vida cultural. Na Divina Comédia, é verdade, ele não dispensou tratamento equânime aos mundos antigos e cristãos, mas os situa, continuamente em planos paralelos; assim como, em seus primórdios, a Idade Média reunia modelos e anti modelos extraídos das histórias e figuras do Velho e Novo Testamento, Dante reúne, em geral, um exemplo cristão e um pagão para ilustrar um mesmo fato. Não se deve esquecer que o imaginário e a história cristã eram conhecidos, ao passo que imaginário e história da Antiguidade, pelo contrário, eram relativamente desconhecidos, auspiciosos e estimulantes, e que esta última tinha necessariamente de preponderar no interesse geral, não mais havendo um Dante para estabelecer um equilíbrio”. (Idem, p. 157)
Outro grande da literatura renascentista, Petrarca “representava a Antiguidade em pessoa, imitando todos os gêneros da poesia latina e escrevendo cartas cujo valor, na qualidade de dissertações acerca de determinados tópicos da Antiguidade....” (Idem)
Delumeau afirma que Francesco Petrarca (1304-1374) fora o “mais conhecido de todos os promotores do movimento humanista. Tendo seu pai sido exilado de Florença, Francesco passou uma parte da vida a viajar ao estrangeiro; encontramo-lo, sucessivamente, em Arezzo, em Pisa, em Montpellier, em Bolonha e, principalmente, na Provença (Avinhão). Depois de sólidos estudos, feitos, à moda do tempo, em diversas universidades, frequentou os meios mundanos e cultos de Avinhão e de Roma. Em 1341 foi consagrado como poeta do Capitólio. Esta distinção dirigia-se principalmente, ao humanista, ao poeta épico, imitador de Virgílio, e ao epistológrafo elegante, aluno de Cícero. Era grande leitor e reunira na sua biblioteca muitos manuscritos antigos, que mandara copiar ou copiara ele próprio. Foi ele que mais contribuiu para a criação das noções – se não, mesmo, das palavras – de Idade Média e Renascimento. Mas não é o escritor de língua latina, admirado pelos seus contemporâneos, que hoje mais conta para nós: é o poeta – muito mais pessoal e original – do Canzoniere, das Rime e dos Trionfi, recolhas de poemas escritos em língua vulgar: o toscano. Os sonetos – a sua parte essencial – glosam o amor de Petrarca por Laura de Noves, que ele encontrou em 1327 na igreja de Santa Clara de Avinhão. Mais que os episódios reais de uma aventura amorosa, o que estes poemas reflectem é aquilo que o romantismo chamaria mais tarde de ‘estados de alma’. Mais uma egéria que uma amante, Laura é para Petrarca a mensageira dos pensamentos e sentimentos dele próprio: é ela que faz comunicar o amante e o amor, o poeta e a poesia, a natureza e o mundo interior, com todas as vicissitudes – êxitos, fracassos, aproximações, traições, etc. – que existem no amor pela inteligência ou pela arte como no amor por uma mulher. Daí essa poesia toda de gerações, de variações, ora espontânea, ora sábia, ora inspirada ora amaneirada, mas sempre complexa e sutil, cujas riquezas e virtuosidades fascinaram, em Itália e no estrangeiro, tantos poetas – de Bembo e Acéve e a Ronsard”. (DELUMEAU,1994, vol. 2, p. 311)
O terceiro escritor humanista da Itália, segundo Burckhardt, Boccaccio realizava “compilações mitográficas, geográficas e biográficas em língua latinas, ele já era famoso havia dois séculos em toda a Europa antes que, ao norte dos Alpes, se tivesse notícia do seu Decamerom. Uma daquelas compilações, de Geneaologia deorim, contém um notável apêndice aos décimos quartos e décimo quintos livros, no qual Boccaccio discute a posição do jovem humanismo a sua época.  (...)”
Retirando do sétimo volume de Histoire de France de Jules Michelet, Burckhardt afirma que a “descoberta do mundo, a cultura do Renascimento acrescenta um feito ainda maior, na medida em que é a primeira a descobrir e trazer, à luz, em sua totalidade a substância humana”. (BUCKHARDT, p. 226)
Analisando a arte durante os renascimentos europeus, Panofsky preocupa-se com a determinação das mudanças decisivas, transformações essas que chama de inovações, como a imprensa, a pintura italiana, especificamente em Florença, Roma e Veneza. (PANOFSKY, pp. 18-19) Para explicar essas metamorfoses, o autor busca encontrar continuidades e rupturas nos estudos clássicos e na arte. (Idem, p.22).  Neste sentido, há o questionamento de que se “terá existido uma coisa chamada Renascimento que teria começado na Itália, na primeira metade do século catorze, alargado as suas tendências classicizantes às artes visuais do século quinze, para finalmente deixar a sua marca em todas as atividades culturais do resto da Europa?” (Idem, p. 26)
Apesar de haver vários retornos à tradição clássica no período medieval, somente a partir do século XV, há uma consciência desta revivescência e de quão distantes estavam os pensadores e artistas renascentistas da época clássica. Para Panofsky, “A expansão gradual do humanismo da  literatura para a pintura, da pintura para outras artes, e das outras artes para as ciências naturais, produziu significativas mudanças na interpretação original do processo diversamente designado por ‘revivescência’, ‘restauração’, ‘despertar’, ressurreição’, ‘renascimento’.” (Idem, p. 39)
A expansão do conhecimento da tradição clássica se fazia também por meio da circulação de manuscritos gregos, levados à Europa pelos árabes, sobretudo através da Espanha. Essas interferências de autores em hebraico, árabe e “modernos” ao Renascimento, forneceram fermentos para os pensamentos humanistas. De acordo com Panosfsky, “por um lado, os artistas ocidentais começaram, ou melhor, recomeçaram a inspirar-se nas iluminuras dos livros árabes, em que os arquétipos clássicos familiares não só tinham sido alterados de modo a conformarem-se mais com a posição concreta das estrelas do que com o ideal helênico da beleza, como também tinham sido submetidos a uma orientalização radical no que se refere à fisionomia, à indumentária e ao equipamento”. (Idem, p. 149)
Panofksy aponta que “com o andar dos tempos, e à medida que estes tipos orientalizantes espalham do sul da Itália e da Espanha até regiões menos intimamente relacionadas com o Oriente islâmico, foram gradualmente perdendo o seu caráter bizarro até se assemelharem, ao menos superficialmente, a uma segunda classe de imagens neotéricas – ou seja, imagens autônomas de qualquer Bild-Tradition clássica, mesmo se distorcida, mas livremente formadas a partir de descrições verbais. Quer tais descrições se encontrassem em textos há pouco traduzidos do árabe (como a que se dizia que tinha profetizado o nascimento de Cristo), quer nos escritos ocidentais em contato com as fontes árabes, como Michael Scot (o astrólogo da corte de Frederico II) e os seus numerosos discípulos, os seus ilustradores simplesmente ignoravam os tipos greco-romanos em favor do que parece ser a gente comum de diferentes classes e ocupações”. (Idem, pp. 149-150)
Comparando os Renascimentos medievais, com o Renascimento Italiano, Panofsky destaca que o segundo tinha conhecimento do distanciamento da tradição clássica, apesar de esta estar sempre presente. Esse último conseguira incorporar a perspectiva, a harmonia das proporções, a declarar-se “moderno” e defender o humanismo, realizando uma ruptura com o período medieval, mudando “nossa civilização”, sendo que “pela primeira vez, era o passado clássico olhando como uma tonalidade separada do presente e, consequentemente, como um ideal a que se aspira em vez de uma realidade simultaneamente utilizada e temida” (Idem, pp. 159-160)
Abordando o tema do humanismo na perspectiva das ideias políticas, Quentin Skinner, discute o “ideal de liberdade” nas origens do Renascimento. Para este, na “emergência do humanismo”, “se não cabem dúvidas quanto à existência de um importante elemento de continuidade levando dos primeiros livros de conselhos, dirigidos ao podestà, ao estilo político retórico que posteriormente se desenvolve entre os humanistas da Renascença, seria porém enganoso supor que tal continuidade assuma a forma de uma linha de derivação direta. Se assim pensássemos, estaríamos negligenciando a influência de uma forma de teoria retórica nova, e conscientemente humanista, que foi importada da França à Itália na segunda metade do século XIII, e que teve o efeito de causar ruptura e transformação nas convenções vigentes na Ars Dictaminis”. (SKINNER, 1996, p. 56)
Conforme Skinner, “As mudanças que afetaram o estudo da retórica da Itália, nessa época, baseavam-se na ideia de que o assinto deveria ser ensinado não apenas inculcando-se regras (artes), mas também estudando e imitando autores clássicos adequados (autores). Até então o currículo da Ars Dictaminis geralmente fora concebido na feliz fórmula de Paestow, como nada mais elevado do que um curso comercial. Pusera-se enorme ênfase no aprendizado das regras de composição; pouco espaço se dera para a protesta mais ‘humanista’ – que por essa época estava em voga nas escolas das catedrais francesas – de que também fossem estudados os poetas e oradores antigos na condição de modelos do melhor estilo literário. Tal abordagem estritamente prática recebeu especial destaque em Bolonha, nas aulas de Bocompagno da Signa. Esse professor atacou explicitamente o método francês que consistia em ensinar a retórica mediante o recurso a autores, dizendo-o ‘supersticioso e falso’. No começo de um dos seus manuais, A palma, orgulhosamente se gabava: ‘Não me lembro de jamais haver lido Cícero’, como fonte de técnica retórica. E deixou muitíssimo claro, em seus escritos, que considerava a retórica em termos inteiramente práticos. Um de seus compêndios, A mirra, está voltado apenas ao ensino de como redigir testamentos, outro, O cedro, tem por única meta descrever os procedimentos corretos para escrever lei e ordenações locais”. (Idem, p. 57)
O historiador da cultura política renascentistas afirma que “Embora a perspectiva de Boncompagno se tenha tornado ortodoxa, nunca se extinguiu por completo a tradição alternativa, e mais humanística, da instrução retórica. Ela sobreviveu na própria Itália em algumas das escolas de gramática, e floresceu na França por todo o século XIII. A despeito da predominância da escolástica, um dos principais centros em que esse tipo de estudo se praticava continuou a ser a Universidade de Paris. Aqui, o principal dictator era João de Garland, que ensinou Ars Dictaminis continuamente de 1232 até sua morte, vinte anos depois. Seu método de instrução estava firmemente baseado nos textos clássicos relevantes, tomando poemas inteiros e orações como exemplos de bom estilo retórico. Mas o centro de ponta do ensino de retórica à maneira humanista foi Órleans. Nessa cidade, o maior expoente da Ars Dictaminis foi Bernado de Meung, que começou sua carreira por volta do ano de 1200. Também ele insistia numa associação cerrada entre a retórica e a literatura latina, e estabeleceu uma tradição de ensino fundada não na explicação de regras retóricas, mas antes na discussão do tratado Da Invenção, de Cícero, e do livro pseudociceroniano Sobre a teoria da fala em público”. (Idem)
“Durante a segunda metade do século XIII, bom número de Dictatores italianos em destaque foram educados na França, onde se embeberam dessa visão tão diferente da retórica, retornando para difundir nas universidades italianas os novos métodos de ensino. Um dos primeiros a seguir essa trilha foi Jacques Dimant. Começou estudando retórica e literatura latina na França, e veio a Bolonha, para ensinar a Ars Dictaminis, pelo final do século XIII. O tratado sobre a Ars Dictaminis que ele veio a produzir por essa época, em conexão com sua atividade de ensino, estava quase inteiramente modelado no pseudociceroniano Teoria da fala em público. Mas o mais importante pioneiro dessa perspectiva foi Bonetto Latini. Foi viver na França, em 1260, depois que a vitória dos scienenses em Montaperti fez com que fosse expulso de sua Florença natal. No exílio, leu pela primeira vez os escritos retóricos de Cícero, bem como estudou seus tratados de teoria sobre as artes retóricas. Retomando a Florença em 1266, sua experiência no estrangeiro o levou a introduzir um sabor bem mais literário e clássico nos próprios escritos sobre a Ars Dictaminis. Não produziu apenas a primeira versão italiana de três dos principais discursos públicos de Cícero, também traduziu, e enriqueceu de um comentário, seu tratado Da invenção, que além disso apresentou como sendo a melhor obra jamais escrita da retórica”. (Idem, pp. 57-58)
“Esse método de estudar a Ars Dictaminis por meio dos autores clássicos logo se consolidou como uma nova ortodoxia. Isso afetou a própria Bolonha, até então o centro do trabalho mais prático, filisteu mesmo, sobre as artes retóricas. Já na década de 1270, Fra Guidotto de Bolonha traduziu a Teoria da fala em público para o italiano e utilizou-a como manual de instrução na Ars Dictaminis. No novo movimento atingiu o zêmite em começos do século XIV, quando apareceu o tratado clássico que veio a melhor exprimir a nova perspectiva humanista, a Breve introdução à arte da epistolografia, de Giovanni de Bonandrea (1296-1321). Essa obra era quase toda derivada do tratado Da invenção, de Cícero, e da Teoria da fala em público, e segundo Banker prontamente garantiu a seu autor ‘a posição de proeminência na instrução da retórica’ não apenas em Bolonha, mas em todas as universidades italianas”. (Idem, p. 58)
O aprendizado da tradição clássica entre o sul europeu é destacado por Skinner, afirmando que “Tão logo o ensino da retórica veio a basear no estudo de exemplos e autoridades clássicas, mais uma importante novidade intelectual afetou as universidades italianas. Numerosos estudantes, que tinham começado a aprender a Ars Dictaminis como nada mais que uma parte de sua formação mais ampla para a carreira de um advogado, começaram a se sentir mais e mais interessados nos poetas, oradores e historiadores clássicos, que lhes eram propostos como modelos de bom estilo retórico. Ou seja, passaram a tratar esses escritores não apenas como mestres em alguns artifícios estilísticos, mas como figuras literárias sérias, dignas de ser estudas e imitadas por si mesmas. Os esforços assim envidados por esses advogados do começo do século XIV, estudando os clássicos por seu valor literário e não mais por sua mera utilidade, fazem que seja correto considera-los os primeiros verdadeiros humanistas – os primeiros autores entre os quais ‘a luz começou a brilhar’, como mais tarde diria Salutati, em meio às trevas então generalizadas”. (Idem, pp. 58-59)
“Como afirma Salutati em seu panegírico sobre esses expoentes iniciais do renascimento das letras, os dois centros onde os raios do humanismo primeiro luziram foram as cidades de Arezzo e Pádua. Há pouca documentação direta sobre as primeiras atividades humanísticas em Arezzo, já que se perderam quase todas as obras de Geri, o maior poeta erudito daquela época. Mas não pode haver dúvida sobre os méritos intrínsecos ou a grande importância histórica que o assim chamado círculo dos ‘pré-humanistas’ de Pádua alcançou nos primórdios do século XIV. A primeira figura de destaque desse grupo foi o juiz Lovato Lovati (1241-1309), de quem o próprio Petrarca disse em seu livro Das coisas memoráveis, que era ‘certamente o maior poeta que nosso país já viu’ até aquela data. Sua principal contribuição consistiu em recuperar as tragédias de Sêneca e em dedicar um estudo específico a seus efeitos métricos. Entre os membros mais jovens de seu círculo estiveram vários poetas e eruditos de nota, inclusive Rolando da Piazzola, (...) autor de uma das primeiras exaltações dos Signori e de sua causa. Mas o mais importante de todos os discípulos de Lovati foi seguramente o advogado Alberto Mussato (1261-1329), que alcançou posição proeminente na política de Pádua, (...) durante a longa luta travada contra Casagrande de Verona. Mussato foi autor de duas histórias de seu próprio tempo, ambas inspiradas nas obras de Lívio e Salústio sobre a República romana. Delas, a segunda e mais ambiciosa, a Historia dos feitos italianos após a morte do imperador Henrique VII, ele ainda escrevia quando o monarca morreu, em 1329, no exílio. A mais notável, porém, foi Ecerinis, uma peça em versos latinos que Weiss considera ‘o primeiro drama leigo a ser escrito desde a era clássica’. Essa peça, composta em 1313-14, tomava por modelo as tragédias de Sêneca. É fácil perceber que se trata de uma obra de um poeta humanista e reitor, e ela é de tal qualidade que permitiu que Mussato fosse exaltado até mesmo como ‘o pai da tragédia renascentista’”. (Idem, pp. 59-60)
“Assim como marcou os primórdios do Renascimento literário, esse movimento exerceu considerável influência sobre o desenvolvimento do pensamento político da Renascença. Podemos discernir tal influência por duas vias. A primeira está no fato de que as obras desses literati pré humanista muitas vezes eram de teor forte e diretamente político. Encontramos sinais bem claros dessa motivação nos poetas de Arezzo do Duzentos. Deles, o melhor exemplo aparece na obra de Guido de Arezzo, que na década de 1260 escreveu uma crítica veemente aos florentinos por abandonarem seus ideias cívicos, e em especial por encorajarem o destrutivo jogo das facções, alegando na batalha de Montaperti, em 1260. Mas a tentativa mais empenhada de por a nova cultura literária a serviço das cidades-repúblicas se deveu ao pré-humanistas de Pádua, e em particular a Alberto Mussato, que claramente não se considerava um mero erudito e poeta, mas também um político e propagandista. Todo o propósito de seu Ecerinis, (...) está em ‘incentivar com lamentações a tirania’ e em celebrar o valor da luta pela liberdade e pelo autogoverno. O tema da peça é a ascensão e queda de Ezzelino como tirano de Pádua – e são abundantes as alusões à ameaça mais imediata, da Cangrande à liberdade daquela cidade-república. O drama, depois de expor como Ezzelino descendia do demônio, passa a descrever nos pormenores mais assustadores sua ‘selvagem tirania’, que foi marcada por ‘prisões, cruzes, tormentos, mortes e exílio’. Atinge-se o clímax quando Pádua é libertada do tirano, depois disso, o coro celebra ‘a morte da selvagem loucura da tirania e da reconquista da paz’. O valor da obra enquanto peça de propaganda política foi prontamente reconhecido pela tão ameaçada cidade de Pádua. A comuna solenemente outorgou a Mussato uma coroa de louros – iniciando a tradição de coroar os grandes poetas, que conheceria tão ampla difusão durante a Renascença – e foi promulgado um decreto cívico, que mandava ler-se a peça uma vez por ano durante a populaça reunida” (Idem, p. 60)
“A outra via pela qual o surgimento dessa nova cultura literária contribuiu para moldar o desenvolvimento da teoria política foi menos direta, mas estava fadada a ter importância bem maior: as novas influencias clássicas serviram para enriquecer e consolidar ambos os gêneros de escrita política que já haviam nascido do estudo da retórica nas primeiras décadas do século XIII, assim concorrendo para que adquirissem uma apresentação mais sofisticada, bem como um tom propagandístico mais explícito”. (Idem)
“Para se chegar a esse resultado contribuiu, pelo menos em parte, um aumento da confiança dos homens de letras. Isso podemos observar, em primeiro lugar, um bom número de crônicas urbanas que datam da segunda metade do século XIII. Um importante exemplo está na parte histórica da principal obra de Brunetto Latini, Os livros do tesouro, que ele escreveu em francês na década de 1260, quando vivia no exílio. O livro de Larini, se bem que tenha a forma tradicional de enciclopédia, no que diz respeito ao conteúdo é visivelmente a obra de um dictator da nova escola, combinando longas citações de Platão, Sêneca, Salústio, Juvenal, e especialmente Cícero, com informações e conselhos de feitio mais convencional. Um exemplo mais tardio é a Crônica de Florença composta em começos do século XIV por Dino Campagni, advogado e político formado da Ars Dictaminis. Para tratar daqueles anos cruciais que vão de 1270 a 1312. Compagni demonstra notável habilidade literária, valendo-se de um estilo retórico adequado e entremeado sua narrativa de discursos construídos, apóstrofes irônicas e lamentações dramáticas sobre o fato de Florença ter perdido a liberdade. Finalmente, as mesmas influências clássicas se podem discernir também na notável história e descrição de Milão que Bonvesin della Riva escreveu em 1288, a que deu título de As glórias de cidade de Milão. Bonvesin lecionava profissionalmente retórica e, se sob vários aspectos seu livro não tem igual, por outro lado é um produto inegável desse pano de fundo literário (...); contém muitas ‘exclamações’ elaboradas e apóstrofes aliterativas, no mais elevado estilo retórico”. (Idem, p. 61)
“O mesmo aumento de segurança de si que sentiram os literati também se pode detectar no outro gênero literário que se implantou no começo do século XIII, o dos manuais para o uso dos podestà e de outros magistrados urbanos. A melhor prova se encontra na parte terceira (e final) dos Livros do tesouro, de Latini, que tem por título ‘O governo das cidades’. Essa parte se apresenta de forma de um livro convencional de conselhos, tendo muito de seu material diretamente copiado do tratado de mesmo nome atribuído a João de Viterbo. Contudo, aos discursos e cartas modelares de praxe. Latini acrescenta boa dose de teoria retórica ciceroniana e de filosofia moral aristotélica, no estilo clássico que então entregava em voga. Como resultado, temos que as conexões entre as ‘ciências do falar e do governar’ bem se mostram muito mais íntimas e intrínsecas do que os espelhos do príncipe anteriores conseguiam sugerir – fato já observado no capítulo de abertura, no qual Latini habilmente articula essas duas ‘ciências’. Ele agora se sente em condições de insistir – com numerosas referencias a Cícero – em que a ‘principal ciência relativamente ao governo das cidades é a da retórica, isto é, a ciência do discurso’. O impacto dessa nova autoconfiança foi tal que Latini logo veio a ser considerado – como Giovanni Villani observava em sua Crônica, uma geração mais tarde – não apenas ‘um mestre consumado de retórica’, mas também ‘um grande filósofo’. Já que foi ele ‘o primeiro que ensinou refinamento aos florentinos, assim política adequadas’” (Idem, pp. 61-62)
“Mas o traço mais marcante que podemos observar nesses tratados e críticas está no carácter cada vez mais sistemático da argumentação política por eles proposta. Como já vimos, seus autores os escreveram num momento em que as cidades-repúblicas se confrontavam com o rápido avanço dos Signori e, paralelamente a isso, com uma perda de confiança no sistema eletivo de governo. Desfrontando-se com essa ameaça de que se extinguisse toda uma tradição política, esses autores reagiram oferecendo a primeira defesa, como valor central, da liberdade republicana, mas também para a análise das causas de sua vulnerabilidade e dos métodos mais adequados a tentar garantir que ela não parecesse.  (...)”. (Idem, p. 62) 
Embora valorize e retome a continuidade do pensamento medieval, no pensamento humanista, Skinner discute a vida intelectual dos humanistas que primeiramente atacavam a escolástica, “concentrando no direito romano. Fundavam esse ataque na sua convicção de que os textos do mundo antigo deveriam ser estudados e avaliados, sempre que possível, em seus próprios termos. Esse pressuposto foi a causa de severas críticas que dirigiram a Bartolo e a seus discípulos, que, valendo-se de métodos completamente diferentes, havia definido, no século XIV, a matriz de uma doutrina que se tornara dominante nas escolas de direito italianas. (...) o princípio fundamental da interpretação bartolista rezava que os escritos jurídicos da Antiquidade deviam ser analisados de modo, sempre que possível, a falar diretamente à experiência legal e política dos tempos atuais. Essa abordagem deliberadamente anacronizante levou os humanistas, por sua vez, a considerar toda a escola dos pós-glosadores com o mais seco desdém. Um dos primeiros e mais venenosos ataques deles ocorre numa carta de Lorenzo Valla e outro humanista. Píer Candido Decembrio. Comentando o tratado de Bartolo sobre os sinais de honra. Valla proclama que livros dessa espécie ‘não merecem em absoluto’ ter ‘ter tantos admiradores’, sendo ‘tão exageradamente mal escritos’ e seus autores ‘tão absurdamente ignorantes’. Começa ridicularizando Bartolo. Blado, Acúrsio e ‘toda a sua tribo’ por escrever ‘numa língua bárbara’, que ‘não era, de forma alguma a língua dos romanos’, tudo o que fazem é grasnar, feito gansos. E Valla conclui que, ao discutir o sentido ou o contexto histórico do direito antigo, Bartolo exibe um desconhecimento ainda mais escandaloso, já que ‘corrompe com sua perversidade as leis que interpreta’, ‘avança muitas outras coisas sem ter base para tanto’, e se expõe à crítica em, literalmente, milhares de pontos”. (Idem, 126)
“Esse repúdio à metodologia escolástica desempenhou papel-chave na constituição de uma jurisprudência genuinamente histórica. A insistência de Valla em considerar o Código de Justiniano o produto de uma cultura inteiramente distinta foi reiterada por Crinito e, mais ainda, por Poliziano, na Itália; e logo suscitou grande entusiasmo na França, onde as obras pioneiras de Budé e Alciato contribuíram para difundir um tratamento puramente histórico do direito, método esse que mais tarde seria desenvolvida por Le Douren, Connan, Baudouin e pelo notável Cujas. (...) este movimento haveria de exercer um profundo impacto na constituição do pensamento político e social do século XVI. Recorrendo-se os escritos jurídicos da Antiguidade como o produto de uma sociedade completamente distinta, alguns fundamentos se lançavam para um estudo comparado dos diferentes sistemas legais. E isso, por sua vez, deu a Jean Bodin o material histórico e a pespectiva intelectual que lhe permitiram modelar sua ‘ciência’ da ‘política’”. (Idem, p. 127)
“Os humanistas não combateram seus rivais escolásticos apenas no plano da metodologia: denunciaram, também, as preocupações que os distinguiam. Aqui, o princípio de que mais se valeram foi sua tese de que a filosofia deve ter algum uso prático na vida social e política. Isso os levou a condenar, por duas vertentes, a forma como os escolásticos estudaram a filosofia. Primeiro, criticavam as escolas por se empenharem em pontos dos mais triviais, prestando assim pouquíssima atenção à questão – essencial – de como devemos nos portar. Como se queixa Petrarca em seu tratado De sua ignorância, os escolásticos sempre estão dispostos a nos dizer muitas coisas, que – ‘mesmo se for verdade’ – ‘em nada contribuirão’ para enriquecer nossas vidas. E além disso se refestelam na mais completa ignorância de questões tão vitais como ‘a natureza humana, os propósitos para que nascemos e rumo aos quais dirigimos’. Essa crítica que Petrarca chamava ‘a arrogante ignorância’ dos escolásticos foi reiterada por todos os humanistas do começo do Quatrocentos. Um dos ataques mais contundentes veio, como era de esperar, da pena de Lorenzo Valla. Tendo aceito pronunciar um discurso em Louvor de Santo Tomás de Aquino, Valla tratou então desse título com muita ironia, afirmando que, se devemos reconhecer ao Doutor Angélico suas sagradas virtudes, não podemos nos impedir, porém, de observar que ‘o conhecimento desse santo homem [...] na maior parte das coisas, era de pouquíssima consequência’, uma vez que ele se dedicou quase por completo ‘aos derrisórios arrazoados dos dialéticos’, sem jamais perceber que tais preocupações não passam de ‘obstáculos no caminho para formas melhores de conhecimento’. (Idem, pp. 127-128)
“A segunda objeção dos humanistas aos escolásticos é que, mesmo quando eles se interessam pelos problemas sociais e políticos, o máximo que fazem é mostrar como são incapazes de lidar com esses. Sentem-se satisfeitos se conseguem, em seu habitual estilo bárbaro, expor sua rotineira série de distinções. Assim, não têm meios de perceber o quanto é fundamental, para a filosofia, aliar-se à eloquência, se ela tiver a menor intenção que seja de persuadir nossa vontade de exercer, por essa via, uma influência benéfica sobre a vida política. Como diz Petrarca em De sua ignorância, ‘zombo desses estúpidos aristotélicos’ ao ver como eles, ‘em vez de adquirir a virtude, consomem seu tempo, isto é (como o poeta resumiu num epigrama célebre), que ‘querer o bem é superior a saber a verdade’. Também essa linha de ataque foi seguida com redobrado vigor pelos humanistas de inícios do Quatrocentos. Salutati, por exemplo, descarta a lógica escolástica dizendo que ela meramente ‘prova uma função muito mais útil, já que ‘persuade a fim de guiar’. E Bruni, num estilo análogo, se concentra na primeira parte de seu Diálogo em fulminar ‘a arrogância somada à ignorância’ dos escolásticos, que ‘pretendem difundir a filosofia embora nada conheçam das letras’, e por isso ‘emitem, a cada palavra, um solecismo’”. (Idem, p. 128)
“Essas denúncias também cumpriram um papel positivo, contribuindo para cristalizar alguns valores e atitudes que melhor haveriam de distinguir os humanistas. Podemos agora entender, por exemplo, como foi que os humanistas apesar de sua forte propensão literária, deixaram como legado um renovado interesse pelas ciências da experiência e pelas artes práticas. (...)”. (Idem, pp. 128-129)


Bibliografia
BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo Companhia das Letras, 1996.
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Trad. João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989.
DOSSE, François. A História. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
PANOFSKI, Erwin. Renascimento e Renascimentos na arte Ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1960.
SKINNER, QUENTIN. As fundações do pensamento moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Nenhum comentário:

Postar um comentário